XVI

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Precisava de confiar nele. No começo era tudo parcialmente mais fácil. Desconsiderando que ele exterminou 2/3 dos meus amigos, e arrancou a cabeça do anjo na minha frente, Gabriel é uma boa pessoa. Não é?

Encostei a minha cabeça no vidro. O meu rosto estava baixo mas ainda podia ver a estrada, e sentir as vezes incontáveis que ele olhou para mim.

Nos afastavamos da pequena cidade, a cada kilômetro percorrido. Eu sentia a umidade da maresia, o que indicava que estávamos próximos ao mar. As curvas estreitas eram tão familiares quanto o meu próprio pai. Eu lembrava-me perfeitamente dos cascalhos grossos, da estrada perigosa, e dos pinheiros esguios. Foi há alguns anos que ali, a minha mãe morreu.

Contando que estava vestida com nada mais que um vestido branco, e uma meia-calça cor-de-pele, além das botas pequenas e o cachecol cinzento, imaginei que precisaria me agasalhar melhor. Comecei a procurar por algum casaco que podia estar perdido dentro do carro, mas nada encontrei.

— O que você quer?

Senti o meu rosto quente quando ouvi a sua voz. Não queria parecer mimada ou intrometida, eu conseguia lidar com o pouco de frio. Apenas abanei a cabeça, fixando o olhar no meu colo.

— Diz. — insistiu.

— Você podia ter avisado que íamos à praia. Eu teria vestido algo mais quente.

Ele abanou a cabeça para os lados. Silenciando-se.

— Eu aqueço você.

Eu sabia que era uma brincadeira, mas aquilo soou perfeitamente bem naquele momento. Gabriel sempre parecia demasiado sério, e sarcástico. Mas naquele instante os seus traços estavam suaves o bastante para que eu considerasse a ideia.

Ele parou o carro na areia. Não é bom para as rodas, mas ele não estava minimamente importado com isso. Ele tinha um bom carro, e escuro. Pensei em perguntar por quais meios ele conseguia o seu dinheiro. É óbvio que não herdou nada, visto que não tem um pai, ou uma família biológica. Preferi não tocar no assunto, e apenas observei-o enquanto ele dava a volta no carro para abrir a minha porta. Agarrei o seu antebraço para levantar-me e ele puxou-me, os nossos corpos quase embateram. O vento estava frio, e úmido, e um cheiro de chuva misturava-se com o cheiro do sal. Ele caminhou para a beira, e eu fui com ele. Não sentia frio. As minhas mãos estavam geladas mas o meu interior estava quente, algo que não precisava compreender. Nós estávamos quietos, ele não dizia nada, o meu olhar acompanhava o seu rosto enquanto o dele, acompanhava as ondas que quase nos tocavam os pés.

— Porque você me trouxe aqui? — sussurrei.

— Há quanto tempo não vem aqui?

— Desde que tivemos o acidente.

Ele assentiu, em compreensão, e voltou a calar-se.

— Traz recordações?

— Muitas. — respondi. Os seus olhos pairaram sobre o meu rosto, e eu juntei o meu corpo na lateral do dele.

— Você devia gostar de boas recordações.

— Eu gosto. Mas a principal recordação é que, ela está morta.

Ficamos os dois em silêncio, por bastante tempo. Estar quieta, numa praia, soava algo inútil. Mas não era inútil, estando com ele. Eu sentia-me completa, embora soubesse que nunca era o suficiente.

— Você estava lá?

Gabriel assentiu. A sua expressão ficou carregada de repente. As sobrancelhas contraídas, o maxilar tenso. Aquilo também pareceu uma péssima recordação para ele.

Crows { H.S }Onde histórias criam vida. Descubra agora