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Encontrada.


Eu vi São Paulo crescer. Vi as ruas se alargarem e os comércios prosperarem. Vi negros, brancos e índios. Vi os imigrantes se misturarem a nordestinos e vi as pessoas se multiplicarem, se transformarem e então se extinguirem. Guerras, doenças, revoltas e carnavais. Eu estive pelas ruas em todos os melhores e piores momentos daquela cidade. Me habituei ao sol dar lugar à garoa fria e esta abrir passagem ao sol novamente. Algo tão confuso que, com o passar dos anos, se tornara a
coisa mais natural do mundo para mim. Vivi em diversas casas e caminhei por inúmeras ruas. Vi bairros nascerem e a modernidade tomar o que já era comum e costumeiro, para aí então a tecnologia se tornar conhecida e familiar.
Conheci como a palma de minha pata cada espaço, cada calçamento, cada aroma e cada novidade. E, em mais de quatrocentos anos, nunca pude dizer que tinha realmente vivido até aquele dia. Afinal, eu jamais havia sentido o meu coração bater tão forte. Jamais me sentira tão humana e tão eu.
Estava esticando minhas patas por perto da Haddock Lobo, cumprindo o meu ritual de todas as noites: a infinita ronda atrás de algo pra comer que não fosse degradante ou nojento. Eu tinha de me alimentar, certo? Nem sempre tinha a sorte de encontrar um restaurante com um lixo de qualidade, mas desde que eu encontrara aquele pequeno bistrô, com o nada criativo nome de Saborart, minhas refeições noturnas estavam tendo um toque a mais de classe.
Viver na rua pode fazer as pessoas perderem completamente o seu bom gosto, se sujeitando a comer o que lhes fosse dado. Mas eu não era desse tipo. Eu ainda sabia o que era ter estilo e nem mais mil anos na rua me fariam perdê-lo. Então me enfiei pelas lixeiras até dar a volta pelo restaurante, encontrando a escura porta da cozinha.
Eu sabia que aquele era o horário perfeito para encontrar o ajudante de cozinha com um vício por cigarros de cheiro herbal e horrível, mas que o deixava completamente disposto a me dar alguns cortes de peixe que muito me agradavam. Ele sempre saía para fumar no mesmo horário e saber a sua rotina era o que garantia meu jantar. Assim que o rapaz me viu, um sorriso estranho e vagaroso nasceu em seus lábios, fazendo com que ele estendesse a mão para me tocar, sendo frustrado no mesmo momento, pois por mais agradecida que eu estivesse, não permitiria qualquer tipo de intimidade. Vem, gatinha, vem comer seu peixinho.
A carne primeiro, a falsa passada de rabo em agradecimento depois, camarada.
Como eu exigira silenciosamente, com minha clara distância, o homem voltou para a cozinha e saiu de lá com alguns pedaços de atum cru. Ele os colocou entre nós e observou, enquanto eu fazia um pouco de charme antes de andar até eles e colocá-los na boca com a graciosidade que apenas nós, felinos, tínhamos. Não dediquei mais nenhum segundo de atenção ao cozinheiro. O meu intento havia sido cumprido: eu estava alimentada.
Mas não o bastante para me desligar do mundo. São Paulo podia ser meu lar, mas não era uma cidade pacata. A violência era uma parte grande demais daquele todo para que eu pudesse ignorá- la. Então, não me demorei com o jantar e percorri algumas ruas bem iluminadas até encontrar o beco que eu procurava. Meu abrigo.
Ficar na rua era se deixar transformar em presa fácil para algum desumano, bêbado ou não, que achava divertido brincar de chutar animais pela madrugada. E, sinceramente, naquela noite eu não estava com ânimo algum para brincar de futebol com ser inferior algum.
Foi fácil encontrar a grande caixa úmida que eu usava como casa e, assim que me aconcheguei da melhor maneira que pude, me deixei relaxar. O escuro e o silêncio do beco me embalavam em direção ao sono. Meu estômago estava cheio, eu estava viva. Dormir era a minha próxima providência, além de rezar a qualquer entidade felina que me ouvisse para que as coisas finalmente dessem certo.
Infelizmente, minhas preces não foram atendidas. Praticamente no mesmo momento, o som característico de vômito veio para me despertar. Aquilo ecoou pela escuridão e, mesmo que eu desejasse do fundo da minha alma ignorá-lo, não foi possível. Ele continuou por tempo o suficiente para eu ter de sair da minha zona confortável e me impor.
De todos os becos de São Paulo, o sem noção tinha que escolher justo aquele para esvaziar o seu estômago? Mas que droga! Antes que eu pudesse alertá-lo que aquele pedaço já tinha dona, os sons se transformaram e um soluço tímido, mais ainda assim audível, começou. Rosnei e miei para alertar ao chorão. Não importava de qual espécie ele fosse, ele deveria partir. Seus fungados e outros ruídos estavam atrapalhando meu descanso merecido.
Por mais ameaçadora que eu pudesse ter parecido, nada aconteceu. Os sons continuaram. Ah, eu merecia? Miei novamente, mais alto e com o dobro de irritação, e escutei passos. Isso aí, otário!
Aquela era a minha área e se ele quisesse chorar, que fosse para outro lugar. Mas ao contrário do que eu esperava, os passos não se afastavam, eles se aproximavam.
O pânico que eu senti ficou mascarado diante da minha raiva. Merda! Ele se aproximava enquanto eu tentava me ocultar nas sombras, mesmo sem ser tão bem sucedida assim. Quando quase consegui me esconder, senti duas mãos perfeitamente humanas, grandes e calosas demais, me erguerem, retirando-me da caixa e me deixando suspensa, da maneira que eu mais odiava. Aquela posição estúpida me fazia abanar o rabo, à mercê de quem me segurava. Então me debati, raivosa, querendo me libertar imediatamente.
O rosto do maldito que me segurava estava oculto pelas mesmas sombras que eu tentara usar a meu favor, e sem pensar duas vezes preparei as minhas garras. Eu não estava para brincadeiras naquela noite. Em noite alguma, por sinal.
-Você parece o Rupert, sabia? - disse a voz masculina sem firmeza. Eu ainda conseguia ouvir o choro nela.
A coisa mais feia desse mundo, para mim, era macho chorão. Independente da espécie. Por favor, como sexo dominante, era de se esperar mais de tipos como esses. Se é para ficar de chororô, deixe que nós, fêmeas, assumamos o controle.
- Pobre gatinho. Também abandonaram você. Está sozinho, não é, bichano?
Qual o problema daquele cara com gêneros? Ah, meu querido! Coloque tudo nos substantivos femininos. Pelo amor de todos os pumas, aquele ser não consegue ver que está tratando com uma dama? Miei de pura revolta e para meu infortúnio, ele entendeu aquilo como uma resposta.
- Eu também estou.- A tristeza na voz dele tinha um quê diferente que eu não soube interpretar, tampouco odiar. Era errado ter pena de alguém que te perturbava no meio da madrugada. Tipos assim merecem arranhões, não compaixão. - É tão difícil, não é? Ser sozinho?
Aquele homem não sabia o que era ser sozinho. Ele tinha pequenas amostras do que era ser solitário. Se ele vivesse até 90 anos, não experimentaria nem um décimo do que eu já sofrera por mim mesma, sem ter com quem contar, sem ter alguém ao lado. Não, ele não tinha a mínima ideia do que era solidão. Eu só queria que ele me colocasse de volta na caixa e desse o fora. Não era pedir demais, poxa!
- Não vamos mais ser sozinhos. Você vem pra casa comigo, amigão.
Eu não sabia por onde começar a rebater a loucura daquele homem. Com quem diabos ele pensava que estava falando? E, como assim, ele estava pensando que eu iria pra casa dele? Com ele? A rua era o meu lar e eu estava muito bem sozinha. Sozinha! A! Substantivo feminino.
Dei mais um rosnado ameaçador, mas não fui tão eficiente quanto tinha sido das outras vezes.
Tudo que o estranho fez foi me aproximar de seu peito, me encaixando da forma mais confortável que podia em seu colo quente. Recebi um carinho malditamente bom nos pelos da minha cabeça. O que eu reconheci como uma técnica bastante eficaz de distração. Afinal, meus olhos se fecharam instantaneamente, um pouco contra a minha vontade. E, quando dei novamente por mim, estava dentro de um carro, colocada com cuidado em um banco de couro maravilhoso. Um daqueles que só se via em outdoors, mas que pareciam feitos para serem arranhados até se esfarelar por gatas de garbo, como eu.
A porta já estava fechada, mas o calor dentro do carro me levava a admitir que, talvez, não fosse uma ideia tão ruim assim deixar que o homem me levasse para dar uma volta. Assim que ele abrisse a porta novamente, eu me mandaria de lá e jamais o veria de novo. Simples e eficaz. Não havia nem porque me exaltar. Talvez assim ele parasse de chorar. Ou quem sabe uma boa ação ajudaria a melhorar a droga de vida que eu tinha.
A dificuldade do homem para colocar a chave na ignição fez com que ele precisasse acender a luz no teto do carro. Até aquele momento, a escuridão me impedira de olhar seriamente para o desconhecido. Não pude ver muito, seu rosto estava inclinado e oculto, mas consegui ter um leve vislumbre do seu cabelo cor de fogo antes de seu dono finalmente conseguir encaixar a chave e desligar a luz.
Mesmo sendo madrugada e o horário já bem avançado, o homem ainda teve de esperar um pouco antes de tirar seu carro da vaga e entrar no tráfego junto com os outros carros. Só então, meu suposto companheiro de viagem se deu conta de que algo estava errado ali.
E não era o fato de ele estar levando uma gata desconhecida para casa.
- Oh, desculpe, cara, nem me apresentei. Meu nome é Eduardo, mas pode me chamar de Duda... Eu até prefiro.
Que seja! Prazer, Eduardo. Para começo de conversa, não crie intimidade, e me chame como quiser, mas deixe-me dizer uma coisa: você é louco e provavelmente deve ter fumado um cigarro bem forte para estar conversando com uma gata. E pior ainda por não perceber que eu era uma fêmea. Vamos lá! Nem era tão difícil. Era só olhar para meu perfil aristocrático, minha leveza e suavidade para perceber isso. Sem falar nos óbvios órgãos genitais, se todo o resto falhasse.
- Já disse que você parece o Rupert? Ele era o gato dos meus pais. O bichano também era cinzento assim, mas não tinha as orelhas caídas. E o seu focinho parece um tanto mais torto.
Mas que audácia! Eu estava ali para ser insultada? Que tipo de dia às avessas era aquele que eu estava tendo? Eu já não estava sendo castigada o suficiente pela vida? Eu realmente merecia esse pouquinho a mais?
Era mais do que claro que aquele tal Eduardo estava bêbado à morte. Ele chorara sem motivo e vomitara no beco. Sem contar o cheiro de álcool que ele emanava. E ainda estava dirigindo! Certo.
Eu estava sendo pseudoadotada por um tipo que dirigia bêbado, chorava em becos escuros e não sabia distinguir um gato macho de um espécime exemplar do sexo feminino como eu. Certamente eu estava em boas mãos. Com certeza. E com o carro em movimento eu não tinha nem para onde correr.
Para meu momentâneo alívio, o carro finalmente parou em frente a uma casa tipicamente colonial, com uma enorme parede cheia de hera que contrastava com o portão branco e elegante.
Quando fui tirada no colo de dentro do automóvel, uma olhada ao redor me fez reconhecer onde eu estava. Aquele lugar não era muito longe do parque do Ibirapuera, o que demonstrava que o meu projeto de dono não era nada pobre. Aquele era um bairro chique. Não que fizesse alguma diferença, a única coisa que eu deveria fazer era fugir e não observar o status do lugar.
Mas era complicado me concentrar quando ele afagava minha cabeça daquela maneira prazerosa. Eduardo estava atrapalhando todos os meus planos. O correto a fazer era descer do carro, sozinha, e me enveredar pelas sombras, para poder desaparecer por cima dos telhados.
Porém, ele estava me carregando e nublando a minha mente com aquele carinho idiota, me impedindo de ter forças para lhe dar uma bela arranhada no braço, pular do seu colo e correr.
Por isso não me movi. Apenas deixei que ele me carregasse para dentro da casa e o assisti fechar a porta, daquele jeito destrambelhado característico dos bêbados. O ruivo me colocou no chão para conseguir tirar a blusa de frio e guardar as chaves numa mesa ao lado da porta. Otário, se eu quisesse, sairia pela janela e não seria nada difícil achar uma numa casa tão grande quanto aquela. E como já vinha acontecendo desde que eu o escutara vomitar em meu beco, meus planos mudaram completamente e me peguei curiosa para saber como era a casa de Eduardo. Jamais Duda, não queria intimidade com o tipo.
Fazia muito tempo desde que eu vira o interior de uma casa humana, e a de Eduardo era grande.
Grande e azul. A cor estava espalhada por todos os lados. Um tapete. Um quadro. Um sofá enorme que lembrava o céu numa noite chuvosa. O misto de azul e branco era até aconchegante, para ser honesta.
- Bem-vinda ao seu novo lar.
Ignorei completamente as boas vindas e continuei a minha avaliação. Eu desejava ver o rosto de Eduardo, mas novamente tudo o que eu conseguia enxergar eram as pernas de seus jeans escuros, e quando erguia o pescoço, uma massa revolta de cabelos ruivos. Nada mais. Talvez fosse melhor procurar logo a minha saída.
Com passos cuidadosos, percorri o hall e atravessei um longo corredor, infelizmente sem janela alguma. Senti a presença de Eduardo atrás de mim, trôpego, indo na direção do que eu imaginava ser a cozinha e onde eu, sinceramente, esperava que tivesse uma grande janela para me permitir escapar de toda a loucura daquela noite.
A cozinha era um espaço enorme e bem iluminado, com diversos equipamentos prateados e reluzentes que eu não tinha a mínima ideia para quê serviam, mas pareciam se encaixar bem no espaço. Além disso, havia um balcão gigantesco rodeado de banquetas de estofado azul que eram atraentes e pareciam confortáveis.
Mas o que mais me chamou atenção foi a enorme janela em frente à pia. Minha rota de fuga.
- Está com fome, bichano?
Merda, é tão complicado assim para esse cara ver que eu sou uma fêmea? E não, eu não estava com fome e quem ele pensa que... Oh! A deliciosa ração do saquinho roxo!
Eu aceito que me chame de vendida por isso. Mas quando se é uma gata de extremo bom gosto , é completamente impossível resistir ao apelo que aquela embalagem roxa tem. No exato momento em que balançou aquele saquinho, Eduardo ganhou uma noite de sincera lealdade da minha parte. O milagre suculento de salmão! Meu sabor favorito! Sejamos honestos, aquele cara fizera por merecer a minha bandeira branca. Alguém que oferece aquela delícia e ainda mais daquele sublime sabor, jamais poderia ser uma má pessoa.
Com a habilidade de uma manada desajeitada de elefantes, Eduardo colocou a comida num potinho azul royal e o depositou à minha frente, enquanto abria a porta da geladeira, capturando uma garrafa quase vazia do que parecia ser vinho e virando o seu conteúdo sem graça direto em sua garganta.
- Vai ser bom ter um companheiro nessa casa, cara. Não vou ser tão sozinho e você não vai passar frio na rua.- disse ele, enquanto colocava a garrafa vazia em cima do balcão e vasculhava o refrigerador em busca de outra.- Vou arrumar uma cama pra você quando acabar de comer.
Cama? Ele disse cama ou eu estava muito atenta ao meu delicioso aperitivo que não entendi direito as suas palavras? Não. Eu estava fora desse negócio de cama. Quando um dono te dá cama, logo quer dar um nome e te levar ao veterinário. Trocando em miúdos: ser domesticada. E eu não nascera para isso. Mas nascera para me refastelar em um prato de petiscos de salmão.
- Acho que você precisa de um nome não é, garoto?
Uma coisa levava a outra. Eu tinha razão. Estava pronta para dar uma bela explicação para Eduardo de como as coisas funcionavam comigo, quando ele se ajoelhou à minha frente, acariciando minha cabeça daquele jeito tão dele, me permitindo olhar direto em seus olhos.
E foi quando eu soube que tinha me perdido. Eles eram castanhos. Firmes, mas tão doces que eu não consegui desviar os meus, rendida pela beleza deles. Incapaz de mirar outra coisa que não fosse ele, estudando atentamente a sua pele pálida e seus cabelos tão alaranjados e finos, espalhados pela sua testa em todas as direções possíveis, tive de conter a minha pata para não tocar os seus fios sedosos. Ele parecia tão doce e pacífico, e ao mesmo tempo tão bêbado, que eu inclinei a cabeça, me esforçando fisicamente para entender o louco contraste que aquele homem era. Um louco, mas maravilhoso contraste. A sua barba ruiva era um caso à parte, me convidando a tocá-la, mas lhe dando um ar misterioso que me repelia ao mesmo tempo. Certamente um contraste.
Algo que dizia para eu ficar distante. E que eu já sabia que seria obrigada a desobedecer.
- Acho que eu vou te chamar de Beto. É um bom nome.- E assim acaba o encanto. Como assim Beto? Minhas garras começaram a se formar e talvez aquela tenha sido a resposta que Eduardo precisava para mudar de ideia no mesmo momento. Bom mesmo, ou ele veria o que eu iria fazer com o nome que ele queria me enfiar goela abaixo.
- Talvez... Tom? Qual é, cara, Tom é um nome legal!
Tom até poderia ser um nome legal, claro. Para um homem! O que eu, claramente, não era. Eu era uma bela fêmea, de marca maior, uma Diva. E não conseguia entender como ele não tinha notado aquele fato ainda. Um miado descontente e alto resolveu o meu problema, por ora.
- É, acho que Tom não é um bom nome. Mas vamos pensar em alguma coisa juntos.
Eduardo me agarrou pela barriga, quando notou que eu havia acabado de comer, novamente balançando de bêbado, voltando para o que eu desconfiava ser a sala e se deitando em seu enorme sofá. Depois, me colocou em cima da sua barriga para que o encarasse mesmo naquela posição.
Seu rosto era lindo. Mesmo um tanto desfigurado pelo cansaço que o começo de uma ressaca trazia, Eduardo tinha traços másculos e adoráveis ao mesmo tempo. O homem era uma verdadeira contradição, mas eu não estava reclamando, longe de mim. Com a cabeça apoiada no encosto, ele resmungava em voz baixa, repetindo nomes, sentindo-os em seus lábios e tentando chegar a um bom o suficiente para mim. Nomes masculinos, devo ressaltar.
E, de repente, notei que seus olhos brilhavam de modo estranho. Não compreendi que era um choro até ver a primeira lágrima escorrer pelo canto do seu rosto. Silenciosa, mas dolorosa o bastante para ser logo seguida por diversas delas.
- Por que, Alice? Por quê?
Eu não precisava ser mais inteligente do que era para saber que aquele nome sussurrado não era para mim. Alice, fosse lá quem fosse, era a mulher que colocara Eduardo no chão, fazendo com que ele se sentisse machucado o bastante para chorar por ela, beber litros por ela e se arriscar dirigindo em uma cidade perigosa como São Paulo. Com certeza, Alice não era uma pessoa muito legal. E Eduardo não era uma pessoa com muito amor próprio para superar uma desilusão amorosa.
Aos poucos seus dedos me puxaram mais contra o seu peito, se aconchegando no sofá e me aconchegando a ele, até que eu estivesse tão próxima que podia sentir o calor do seu agasalho negro me aquecer.
Eu assistia a dor de Eduardo sem entender o que fazer para pará-la. A cena era de partir um coração, mas eu não tinha um. Era amarga o bastante para já ter aberto mão do meu há muito tempo.
Logo o pranto ficou mais suave, a sua respiração também estava mais regular e eu agradeci pelo álcool em seu sangue tê-lo feito dormir.
Esperei alguns momentos, me certificando de que ele havia, realmente, caído no sono, antes de me esgueirar para fora de seus braços e cair em pé, no chão. Era hora de fugir. Voltei à cozinha sem qualquer dificuldade, subindo na pia com um pulo elegante e me apoiando na janela, pronta para partir. Sem intimidade, sem laços. Sem dores futuras.
Eduardo me agradeceria por ter partido, eu sabia. Quando a manhã chegasse e junto a ela, o retorno da sua sanidade, ele agradeceria por não ter adotado um gato, como ele pensava. Ele não precisava de companhia, precisava beber menos. E também de colocar outras cores senão azul em sua casa. Ele não precisava de mim.
Entretanto, desci da pia e voltei para sala. Malditos princípios arcaicos que eu não conseguia abandonar mesmo depois de tantos anos na rua. Eu havia prometido que não tentaria fugir e lhe dera uma noite de lealdade. Isso significava que, por mais arriscado que fosse, eu deveria ficar ali.
Apenas uma noite. Assim que o dia raiasse, eu iria embora. Sem mais nenhuma crise de consciência.
Aquilo não tinha nada a ver com o aperto que eu sentira ao vê-lo chorar. Nem como eu achava os olhos dele realmente cativantes e hipnóticos. Nem seus cabelos ruivos que eram tão brilhantes e atraentes. Não tinha nada a ver com Eduardo. Tinha a ver com manter uma palavra.
Mas talvez eu não fosse tão boa assim em me enganar, já que voltei para o sofá, me enfiando no mesmo ponto de onde eu havia escapado momentos antes, sendo segurada com carinho nos braços de Eduardo, acalentada e aquecida. Ele dormia, então não saberia se eu fizesse o que estava morrendo de vontade de fazer desde que eu o vira por inteiro.
Deixei minha pata se enfiar por cima do seu braço até tocar a sua barba, sentindo o pelo eriçado e adorando a sensação de sua pele barbada sob meu toque. Repeti isso mais duas vezes antes de me dar conta do que eu estava fazendo e me odiar por isso.
Apenas eu sabia o que acontecera da última vez que eu me deixara levar daquela maneira. E a dor que havia me causado me fizera aprender a não cair nos mesmos truques, a não errar de novo.
A me proteger de tudo e todos, mas acima de tudo, de mim mesma.
Forcei as patas para baixo, tentando escapar do agarro de Eduardo, desejando ir para o chão e ficar o mais distante dele possível. Só que em seu sono mais que etílico, o ruivo me apertou ainda mais forte em seus braços, me deixando confortável e me aproximando de si para que pudesse sussurrar em minha orelha:
- Não estou mais sozinho, Jack. Obrigado.
Mesmo não me chamando Jack, mesmo sabendo que assim que o dia nascesse eu tinha de ir embora e não olhar mais para trás, e conhecendo todos os perigos que me afeiçoar demais a Eduardo trazia, eu não resisti a dar uma patada suave em seu rosto.
Um carinho, que em minha silenciosa linguagem dizia que eu estava ali agora. Que Eduardo não deveria mais chorar, ele não estava mais sozinho.
Não mais.

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