Decidida.
Eduardo Molina, nós já tínhamos entrado em um acordo sobre a instalação de malditas cortinas escuras naquela porcaria de quarto.
Pelo amor de todos os felinos! Até que dia eu seria obrigada a acordar com o sol atacando a minha bela face daquela maneira? Meu dono era um cara rico, o que custava substituir as cortinas que eu havia estragado?
Credo, que avareza!
Retorcendo o meu corpo pela cama inteira, tentei me espreguiçar e, pelo menos, achar um lugar onde o sol não castigasse tanto, mas fui acordada pelo som alto da voz de Arthur Nogueira em algum lugar, cantando alguma música que eu nunca escutara antes, mas que não era uma melodia ruim.
Meu dono não estava em lugar algum do quarto e notei que eu não tinha saída a não ser descer para o café da manhã. O que meu estomago agradecia e muito, já que começara a roncar de fome.
Uma reação muito natural à transformação.
Quando finalmente cheguei à cozinha, não consegui esconder minha decepção ao não encontrar meu ruivo dono sentado em sua banqueta de sempre, conversando com seu melhor amigo. Em seu lugar havia um preguiçoso Marvin, estendido no estofado azul enquanto Arthur despejava ração em duas tigelas, provavelmente preparando o nosso café da manhã.
Fiquei parada ali por alguns segundos, esperando que Duda aparecesse de algum lugar, mas quando nada aconteceu, encarei Arthur, indagando silenciosamente que porcaria estava acontecendo.
- Você é tão óbvia, Kitty - disse ele. Se eu pudesse teria rolado os olhos. - O Duda te cativou mesmo, hein? - rindo como se não houvesse amanhã, Arthur demorou alguns minutos antes de se tocar que eu continuava com uma expressão que não deixava muitas margens para
brincadeira. - Eduardo tinha coisas a acertar na Euforic e só voltará depois do almoço. Então pediu para eu alimentar vocês.
Mesmo depois de se explicar, Arthur continuou rindo da minha obviedade e notei que talvez eu tivesse me apegado demais. Se até Arthur havia notado como eu procurava por Eduardo, o que mais me faltava?
Eu poderia continuar pensando sobre a vida, o amor e as infelicidades deste, mas quando a tigelinha cheia foi colocada na minha frente, esqueci qualquer divagação. Ainda que eu fosse uma gata elegante, quando a minha fome era gritante como naquele momento, meu nível baixava ao de um cachorro, aquele animal deprimente e sem classe.
- Certo. Você está se alimentando, Marvin também e os dois parecem seguros. Posso voltar para o meu restaurante.
O cozinheiro deu uma última olhada na cozinha, procurando ter certeza de que não esquecera de nada, voltando para perto da pia apenas para abrir a janela. Mal sabendo que estava dando a oportunidade perfeita para que eu acabasse com todos os meus problemas.
- Tchau Marvin, Tchau Kitty. Tenham lindos filhotes.
Marvin não havia dito uma só palavra desde que eu entrara na cozinha e também não dirigira o olhar para mim, talvez temendo revelar mais do que o necessário sobre a sua verdadeira identidade. E, só depois que o som da porta da frente se fechando foi ouvido, o gato castanho finalmente desceu da alta banqueta, pousando maciamente ao meu lado sobre as quatro patas.
Elegante como todo felino tem de ser.
Entretanto, o seu olhar era tão compreensivo que apenas encarar as suas íris verdes foi o bastante para me lembrar que eu não estava sozinha naquele gigante mundo cruel.
- Teve uma boa noite, querida?
Não respondi, como já era esperado. Porém, dessa vez, mesmo se eu soubesse como articular as palavras e dar voz à elas, não teria nada a dizer. Eu ainda não sabia explicar se a noite anterior fora boa ou não. Ao mesmo tempo em que estar nos braços de Eduardo fora simplesmente mágico e emocionante, saber que aquilo era impossível de se tornar real, que aquela era apenas uma fantasia temporária e que logo os pedaços ruins chegariam para estragar aquela linda lembrança, me fazia triste.
E então eu me via num impasse: ao mesmo tempo em que queria ficar ao lado de Molina, onde eu me sentia em casa pela primeira vez em anos, séculos na verdade, por outro lado eu queria ir embora, poupar nossos corações da maior dor que eles já sentiram. Poupar a mim mesma da humilhação e salvar Eduardo de toda a decepção.
- Nós somos animais, Kitty. - a voz repleta de sotaque de Marvin chamou a minha atenção, fazendo-me levantar o olhar para ele, enquanto me sentava no chão, deixando meu rabo planar antes de se assentar também. - Depois de quatrocentos anos, ou mil anos no meu caso, nós nos habituamos tanto a essa forma que em certos momentos nos esquecemos do que é ser humano.
Esquecemos sentimentos e nos tornamos vítimas dos instintos. Mas você não.
Inclinei a cabeça, tentando, a partir dos gestos, perguntar o que ele queria dizer com aquela declaração.
- Eu vi vocês ontem à noite.
Marvin conhecia o meu segredo, mas agora ele sabia como eu estava fora de controle. Como eu fizera todas as coisas que eu não deveria fazer, inclusive a pior delas: render-me aos meus sentimentos e me encantar daquela forma pelo meu próprio dono.
Algo que não era tão incomum para um animal. Mas absurdamente horrível no meu caso, que nutria algo muito maior do que uma simples gratidão por ser tirada da rua. Era maior, bem maior.
Marvin se aproximou ainda mais, quase fazendo a sua cabeça roçar a minha.
- Você é uma gata, Kitty. Mesmo que uma vez tenha sido uma humana e que, ocasionalmente, se deixe transformar, não há volta para você. Eu realmente gostaria que continuasse como aquela mulher linda que eu vira na sala na noite passada, mas aquela não é você mais. Você é uma felina, Kitty. Ninguém jamais entenderá o que acontece com sua transformação. Vão chamá-la de
aberração, vão humilhar você, desprezar você. E ainda que eu te conheça há algumas horas, não desejo que passe por isso. Eu já estive nesse lugar ruim, já fui humilhado, desprezado e considerado uma aberração. Foi doloroso demais para que eu deixe qualquer outra pessoa sofrer o que eu sofri. Especialmente você.
Afastei-me de Marvin, aproximando-me da janela, e observei o vento frio do começo da manhã paulista tocar meus pelos, dando um leve gosto de liberdade.
Era muito legal da parte do meu mais novo companheiro felino se importar daquela maneira, mas ele havia chegado atrasado. Eu já havia sido humilhada. Já havia passado pelo estágio de ser desprezada. Já sofrera o suficiente.
E também não era como se eu quisesse me apaixonar daquela forma por Eduardo. Acontecera.
Eu não tinha pedido para que meus sentimentos nublassem a minha razão a cada vez que os olhos
castanhos e aqueles cabelos deliciosamente ruivos estavam à minha frente.
Acontecera.
- Eduardo não vai entender. Eu adoraria ser otimista, dizer que tudo irá dar certo dessa vez, que vocês farão dar certo, mas não será assim - explicou Marvin, revelando que tinha ouvido a declaração que fizemos do lado de fora da casa. Sem muitos motivos, me senti envergonhada. - Ainda que pareça gostar de você, tanto da gata quanto da humana, isso não impede que Eduardo a machuque. Ou que você o faça primeiro.
Eu sabia de tudo aquilo. Marvin não precisava gastar o seu sotaque e saliva comigo. Eu tinha a mais plena consciência de que estava apenas cavando a minha própria cova. Mas, por mais que eu quisesse me afastar, havia algo em Eduardo que me impedia de ir longe. Ou de querer partir, de qualquer forma.
Era difícil argumentar que eram apenas a ração suculenta e o carinho que me mantinham ali.
Estava escrito na minha testa que era mentira.
- É hora de se decidir, Kitty. Não há meios termos para nós.
A pata de Marvin pousou na minha, no que deveria ser um gesto de apoio e, por aqueles instantes, deixei que ela continuasse ali.
- Você é uma gata ou não? Tem sentimentos ou instintos? Se decidires que deseja ser uma felina, estou pronto para ajudar-lhe a se adaptar. Caso seja uma humana, só posso lhe desejar boa sorte.
O que eu realmente queria?
Eu era uma gata. Há quatrocentos anos e por mais que eu acreditasse que estava em pleno controle, a verdade era que eu sempre me deixara levar pelo meu lado humano. Minha metade de outra espécie sempre vivera travando uma verdadeira guerra contra o meu lado felino. Certas vezes ganhando, em outras perdendo. Mas não havia nada que eu poderia fazer.
Havia todos aqueles sentimentos dentro de mim. Sensações que jamais me abandonaram, ainda que eu quisesse que elas se fossem. Memórias, dolorosas lembranças e sentimentos que me levavam a fazer coisas impensáveis para uma felina. Eu não conseguia ser guiada apenas pelos meus instintos.
Meu corpo poderia ser de uma gata, mas meu coração sempre seria humano.
Por mais que eu quisesse, não havia nada a fazer. Marvin sabia disso. Ele tinha de saber. Se ele era como eu, ele sabia como era doloroso viver com dois lados de si mesmo brigando, querendo assumir o controle. Sabia o quão exaustivo e complicado era. Marvin tinha de saber.
Eu não saberia ser apenas a humana. E tampouco saberia ser apenas a gata.
- Você tem de decidir. Não poderá ser humana para sempre, querida. E não pode deixar-se cativar a ponto de se render. Já pensou se descobrem o que você é? O mundo não está preparado para aceitar pessoas como nós, Kitty - sua cabeça tocou a minha e ergui meus olhos para encarar a profundeza verde e felina que eram os olhos do gato à minha frente. - Eu fiz a minha escolha e não me arrependo dela. É a sua hora de escolher, Kitty.
Marvin estava certo. Por mais que eu detestasse admitir, não poderia deixar continuar me apaixonando daquela forma. Ainda me lembrava de Daniel e de como as suas palavras ainda doíam em minha carne, como se as mágoas que ele me trouxera fossem verdadeiros cortes não cicatrizados, ardendo e de vez em quando até mesmo sangrando, apenas para me lembrar que eles
ainda estavam ali. Para me lembrar de quem eu verdadeiramente era.
Uma aberração.
Eduardo não merecia que seu tão bondoso coração fosse partido por uma coisa como eu.
Não aquele homem que conseguira ser apaixonante em questão de dias. Não, Eduardo. Ele já havia se machucado o bastante com Alice para que eu o ferisse ainda mais sendo quem eu era.
Molina não precisava de ainda mais sofrimento. Eu não tinha esse direito.
- E o que me diz, Kitty? O que vai ser?
Se fosse possível, naquele momento, uma lágrima rolaria pelo meu olhar.
Porém, não havia volta.
Assenti, abaixando a cabeça na minha maneira felina, esperando que Marvin entendesse que eu não possuía outra escolha. Ninguém mais merecia sofrer com a minha maldição. Aquele era um fardo que apenas eu era obrigada a carregar.
- Há certas coisas que você precisa aprender... - começou ele, falando mais consigo mesmo do que realmente comigo. - Como a sua raça, como se portar, como deixar seus sentimentos não te influenciarem e tudo o mais. Somos gatos. Feitos de classe, estilo e instinto. Apenas isso.
Classe. Estilo. Instinto.
Empertiguei-me, tentando mostrar ao meu companheiro que eu era capaz de fazer aquilo, mas que eu só precisava de um pouco de empenho. Em um misto de sorriso e torcer de bigodes, a cauda de Marvin Padilha se entrelaçou à minha, como um gesto amigável que me deixou emocionada.
- Acredito que você seja uma manx, apesar do rabo longo, sabe. Geralmente manx não tem rabo. Você é mesmo uma raridade, garota.
Eu não tinha ideia da minha raça e fiquei repetindo a palavra manx em minha mente, tentando
decorá-la. Por todos os felinos, eu vivera mesmo quatrocentos anos sem sequer saber a minha
raça?
- Tudo bem, estou notando que precisarei ensinar-lhe muitas coisas a mais do que eu imaginava. Vou apenas ao quarto buscar alguns apetrechos e já retorno.
Minha cabeça se inclinou novamente, assentindo, e assisti o gato castanho sair da cozinha, deixando-me em frente à janela escancarada.
Era a minha chance.
O momento que eu havia esperado por longos dias.
Em um pulo elegante e ágil, consegui colocar-me em cima da pia. Ali seria ainda mais fácil para alcançar o gramado atrás da casa, onde ficava o estúdio de Eduardo, e partir para algum lugar longe o bastante daquela confusão. Onde eu não pudesse causar dor a mais ninguém.
Antes de partir, porém, olhei para trás.
Eu podia, sim, ser uma gata, mas meus sentimentos me venciam antes que eu pudesse sequer lutar contra eles. Por isso, me vi desde aquele momento, sentindo falta de Arthur e suas tatuagens coloridas, da forma como ele se divertia com suas panelas e como era fiel e carinhoso com o melhor amigo.
Talvez sentisse falta de Marvin. Alguém inesperado e interessante que eu adoraria conhecer melhor se a necessidade de fugir não fosse tão imperiosa naquele momento.
Mas, acima de tudo, eu sentiria falta de Eduardo. Sentiria falta de tudo que era relacionado a ele. Desde os cabelos brilhantes e vermelhos, passando pelas sardas delicadas e os olhos castanhos e doces. Sentiria falta de seu talento e de seu carinho. Sentiria falta dele.
E, justamente por isso, pulei para o gramado.
A liberdade tinha um gosto doce em minha língua, ainda que dividisse espaço com a amargura da tristeza. Eu deveria pensar que era melhor assim. A distância curaria todas as feridas.
O muro alto não foi nenhum obstáculo para minha fuga e com mais um salto impressionante, pude chegar até o meio dele, para assim escalar o resto. Já no chão, deixei que todas as imagens e lembranças daquela casa se esvanecessem enquanto minhas patas deslizavam no cimento da calçada, do lado de fora.
Porque eu sabia que Marvin tinha razão. Era hora de ser uma gata! Por isso fiz questão de deixar que minhas necessidades ficassem na frente dos meus sentimentos. Correndo pelas ruas até ter certeza de já ter passado da vizinhança de Eduardo Molina, voltei para a Avenida Paulista, sentindo a movimentação e aglomeração acalmarem a minha tristeza.
Eu tinha de fazer aquilo.
Tinha de ser uma gata e longe de Eduardo.
Para o nosso bem.

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Kitty
RomantizmATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...