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Distante.


Minhas patas? Feridas.
Meu estômago? Os trovões daquela noite não se comparavam com os sons que ele fazia.
Minha mente? Completamente torturada pelas lembranças que eu fazia questão de afastar, mas que por mais que eu tentasse, nunca era bem sucedida em esquecer.
A chuva estava ficando cada vez mais forte e aproveitei o momento para me abrigar embaixo de um prédio enorme, que eu julgava ser um tribunal de justiça ou algo do gênero, julgando pela movimentação que eu vira ali. Além disso, vários homens de gravatas e mulheres com sapatos altos demais para conseguirem se equilibrar naquele piso escorregadio circulavam naquele lugar.
Acompanhando meu humor, a chuva não havia dado trégua nos últimos dias, como se o céu chorasse todas as lágrimas que eu mesma me impedia de chorar. Remoer os sentimentos não era a minha prioridade. Arrumar comida fácil e ficar longe de humanos que poderiam dizer as palavras mágicas, essas sim era prioridades.
O primeiro dia passou como o mais fácil. Lamber feridas e encontrar um pedaço de sardinha numa lanchonete suja ali por perto foram tarefas relativamente simples, considerando que eu estava me escondendo de qualquer humano em potencial. A sardinha estava péssima, mas eu não estava em posição de reclamar.
Ou sardinha ou voltar para Eduardo.
Então, até que sardinha velha me parecia bem atraente.
Minhas patas doíam demais, feridas de tanto andar. Só que, por mais que eu desejasse ter ido mais longe, não consegui. Cheguei até perto das rodovias, sendo iluminada por faróis impiedosos, mas dei-me conta - ainda bem - que não conseguiria me virar tão bem em outra cidade que não fosse São Paulo. Cogitei até mesmo tentar o interior. Diziam maravilhas de Campinas, mas voltei para a aglomeração paulista que me abrigava desde sempre.
Agora ali, sentada embaixo do estreito pedaço de telhado, tentando me abrigar das gotas de chuva que espirravam aparentemente em todas as direções, me perguntava o que me doía mais: meu estomago vazio, minhas patas, mutiladas por andar além do necessário, ou meu coração.
Sons foram ouvidos dentro do prédio e eu me encostei perto da parede, esperando que as sombras impedissem os humanos de enxergarem minha silhueta. Era tarde, perto das oito da noite, um horário realmente estranho para ainda haver alguém dentro daquele lugar. Geralmente as pessoas chegavam ali pela manhã e saíam as cinco, sempre com alguém fazendo um pouco de hora, mas nunca até tão tarde.
Abrigar-me entre as colunas daquele prédio havia sido uma ideia realmente genial. A não ser pelo frio da madrugada que entrava impiedoso por todas as frestas. E mesmo depois de um mês ali, ainda não conseguira encontrar uma maneira de entrar no prédio e me abrigar em algum lugar onde jamais pudesse ser achada por outro ser humano.
Durante as madrugadas, eu costumava dar uma volta pela vizinhança, conhecendo seus hábitos de longe, esperando perto das lanchonetes para recolher restos de comida e comportando-me de uma maneira quase degradante. Como se sardinha velha não fosse decadente o suficiente, eu havia comido carne do lixo.
O que seria de meu estilo felino se as coisas continuassem naquele nível?
As caminhadas não ajudavam apenas em aquecer-me, já que a umidade gelada do asfalto e calçadas diminuía a queimação que eu sentia na ponta das patas. As andanças me ajudavam a pensar em qualquer outra coisa que não fosse Eduardo Molina e a dor que suas lembranças traziam.
Eu tinha que ignorar as memórias.
Sonhar acordada com meu antigo dono ruivo não era o que eu deveria fazer como uma gata. E isso era apenas o que eu precisava ser a partir de então. Eu era uma felina. Embora fosse mais forte do que eu, por diversas vezes enquanto andava me pegava desejando ter mãos, lábios e tudo o mais que fosse necessário para pertencer a Eduardo.
- Eu não te eduquei para isso. O seu futuro poderia ser brilhante!
A voz grave de algum homem realmente furioso ecoou por todo o prédio e eu mesma fiquei assustada, tendo uma breve ideia de como a pessoa com quem ele brigava devia ter sentido medo.
Mas o que quer que fosse que ocorria dentro do tribunal de justiça não era da minha conta. Por isso apoiei-me nas patas da frente, observando do meu refúgio nas sombras as pessoas atravessarem a praça em frente. Um número reduzido, já que o horário de maior movimentação já havia acabado.
Eu estava sendo muito bem sucedida em escapar dos humanos, apesar do caso com a criança.
Oh, sim. Eu não deveria ter ficado tão chateada com o acontecido. Até mesmo porque gatos não ficam chateados e eu, como uma gata, deveria me afastar de todo e qualquer tipo de sentimento.
Mas naquela manhã, uma das mulheres de saltos altíssimos estava acompanhada de uma linda menininha que era mais esperta e observadora que a maioria e me achara em meu esconderijo, puxando-me para mais perto de si.
- Mamãe, olhe, uma gatinha! - disse a garotinha.
- Deixe-a aí, Julia, ela parece doente.
E, obedientemente, a pequena Julia atendeu ao pedido da mãe, me deixando no chão e acenou, triste, quando voltei às sombras.
Um dia eu havia me gabado de possuir charme e elegância dignos de uma felina da melhor estirpe. Esse dia havia chego ao fim. Eu era apenas uma gata suja e doente.
Eu chegara ao limite de roubar pedaços de pão que velhinhos simpáticos jogavam aos pombos.
A que maldito ponto eu havia chegado? Ao pior deles, afinal, eu deveria me lembrar de que no meu décimo dia ali, uma ratazana correra para fora do esgoto. Meu estomago se revirava apenas com a recordação da coisa nojenta que eu havia feito. Marvin dissera para que eu me levasse pelo instinto, afinal eram o que gatos faziam. E claro, gatos comiam ratos. Eu jamais faria aquilo
novamente, mas eu estava com tanta fome que não fui capaz de me conter.
A vida naquele lugar era horrível. O clima chuvoso estava deixando meus pelos eriçados e ridículos. Porém, estava longe de Eduardo e isso era tudo o que importava.
Enquanto eu estivesse ali, ainda que sofrendo e me rebaixando cada vez mais, estaria segura de qualquer decepção ou coração partido. O meu apego a ele se tornara insustentável e meu segredo era cada vez mais difícil de ser guardado. Eu simplesmente não podia permanecer ao seu lado, apenas esperando pelo momento em que ele olharia em meus olhos e descobriria a verdade.
Descobriria a aberração que eu era.
Resolvi então que era hora de deixar a metade felina vencer a humana e na terceira semana eu conheci alguém.
Um gato preto, de aparência não muito confiável, mas ainda assim um gato. Não tivemos muita conversa antes de segui-lo para o que parecia ser um beco, atrás da praça. Em minha defesa, poderia lembrar que eu era incapaz de me comunicar com qualquer espécie animal e com aquele gato não fora diferente.
Como todo macho, assim que o segui, o pobre ficou todo animadinho, achando que as coisas iriam esquentar entre nós e decidiu que eu havia permitido que seu rabo ficasse roçando o meu. O que, claro, eu não havia permitido. Menos ainda gostado. Enquanto o corpo do felino se aproximava cada vez mais do meu, tudo o que eu podia pensar era em Eduardo tendo A conversa
comigo, me dizendo que eu deveria estar pronta para fazer aquilo.
E eu não estava pronta. Embora tivesse de estar. Eu precisava ser uma gata, e se aquilo era o que gatos faziam, eu tinha de fazer.
Deixei então que o gato continuasse suas tentativas de coito mal sucedidas, mas bastava fechar os olhos, buscando tornar a situação mais confortável, que os olhos castanhos de Eduardo me vinha à mente. Seus cabelos ruivos implorando para serem tocados, seu sorriso fácil se abrindo para mim, suas mãos talentosas e carinhosas...
Talvez o meu companheiro tenha ficado muito chateado por me ver afastá-lo daquela maneira e dar o fora do beco, mas eu não estava arrependida. Os gemidos revoltados que ele emitia atrás de mim não me convenceram a voltar. .
Foi quando me dei conta de que jamais estaria pronta para alguém mais que não fosse Eduardo.
Era como o salmão. Depois de comê-lo, nada se comparara àquele sabor sublime, nenhuma sardinha jamais me satisfaria, nenhum atum seria o bastante. E depois de ter as mãos e os lábios de.Eduardo em mim, como eu poderia querer qualquer outro alguém? Felino ou não.
Quão insano era, da minha parte, tentar fazer com que as coisas fossem normais e felinas quando, dentro de mim, não havia qualquer nuance de instinto animal. Havia apenas sentimentos.
Os mais humanos deles.
A chuva estava ficando cada vez mais forte e os relâmpagos e trovões estavam me deixando um tanto temerosa. Junto dela, vinha um vento frio que arrepiava todos os meus pelos. Entretanto, não havia para onde fugir. Eu estava a salvo ali e, portanto, Eduardo também estava a salvo de mim e de toda a dor que eu trazia comigo.
Ambos estávamos a salvo agora.
Eu não poderia machuca-lo de onde estava. E a dor não poderia me atingir mais. Gatos não sentem dores em suas almas. Apenas dores físicas.
Eu era uma gata agora. Uma manx de rabo longo que sentia apenas dores físicas.
Mas que droga! A quem eu estava tentando enganar? Eu sentia falta de Eduardo. Mais do que eu poderia admitir. À noite, quando o frio ficava quase insuportável, eu fechava os olhos e podia sentir a sua mão grande e quente acariciando o pelo da minha cabeça daquela maneira única que só ele era capaz.
Era também quando eu percebia o quão longe ele estava e como tudo era melhor assim. Se ele havia me procurado, se em algum momento a mesma saudade que me assolava havia batido em seu peito, se por segundos que fossem, Eduardo sentira falta de sua pequena Kitty ou da moça silenciosa, eu jamais saberia. Mas em meus sonhos, Eduardo sabia que éramos a mesma pessoa,
que a sua gata altiva era a mulher a quem ele beijara com tanto ardor e, nas minhas fantasias, isso não era problema algum. Ele correspondia aos meus sentimentos mais profundos.
Sonhos e fantasias que se esvaneciam assim que eu abria os olhos e lembrava que não era nada mais do que um monstro felino.
Bem provável que Eduardo jamais me procurasse. Talvez, dentro de si, ele soubesse afinal que não éramos para ser. Nem toda a sua simpatia e amabilidade, nem toda a minha elegância e arrogância poderiam esconder a realidade: eu era algo ruim e inominável. Não uma gata, menos ainda uma humana.
Eu era simplesmente algo ruim que machucaria Eduardo. E essa era última das coisas que eu queria.
- Então é isso? Eu só posso me considerar seu filho se colocar terno e gravata e achar que sou maior que todos porque sou um homem da lei? - uma voz estranhamente familiar chamou minha atenção para a discussão que ainda continuava do lado de dentro do prédio antigo. - Ótimo, então eu não quero mesmo ser seu filho!
Os deuses felinos escolheram justamente aquele momento para me torturar e uma goteira apareceu no teto, pingando gotas frias de água bem na minha cabeça. Ir um pouco para a direita, ou esquerda não adiantaria em nada, já que a maldição da estrutura velha mostrava uma fileira de goteiras numa espécie de campo minado no teto. E os homens continuavam a discutir, para aumentar minha agonia.
- Então essa é a sua escolha? Prefere continuar insistindo nessa estupidez ao invés de assumir responsabilidades de um homem?
- Você acha que eu não tenho responsabilidades?
- Eu permiti no começo porque achei que era só uma fase. Eu acreditei que se cansaria e que assumiria o legado que os Nogueira têm nessa cidade. Mas a minha paciência acabou.
Mas que coisa! Será que aqueles dois não podiam discutir um pouco mais baixo? Ou ao menos se afastarem da porta. Ou melhor ainda, que fossem discutir na casa deles e deixasse que eu tivesse meus momentos de paz que já estavam complicados com a luta contra as goteiras.
- Não preciso da sua paciência, pai. Nem de nada que venha de você. Eu recuso essa vida que você quer para mim. E olha só, se isso é virar as costas para você, que seja! - gritou o primeiro.
Um silêncio tomou conta do lugar, até que porta se abriu de uma vez e bem no exato instante em que eu atravessava para o outro lado, fazendo com que o homem que estava tendo um desentendimento com o próprio pai encontrasse-me em seu exato campo de visão.
- Não ouse, Arthur Nogueira. Não ouse desafiar seu próprio pai! - o rugido veio do homem alto, vestido num impecável terno preto com gravata vermelha que era uma verdadeira versão envelhecida do homem que eu conhecera na cozinha de Eduardo Molina.
Arthur escolheu justamente aquele momento para encarar o chão e sua expressão, que até segundos atrás era completamente furiosa e determinada, se abriu em surpresa e antes que pudesse correr e deixá-lo apenas com a suspeita de que havia me visto, fui pega por suas mãos firmes e quentes.
Apesar de receber um olhar duvidoso do Sr. Nogueira, não fui sequer mencionada por nenhum dos dois homens, certamente mais ocupados em terminar o seu embate do que se preocuparem com a gata suja que Arthur tinha pego, do nada.
- Não ouse! - repetiu seu pai.
- Eu parei de me importar com qualquer coisa que você diz desde que percebi que só terei algum valor para você quando for o filhinho advogado perfeito que tanto espera. Eu não sou esse cara e nem quero ser. Eu sou o chef de um dos melhores restaurantes de São Paulo e me orgulho mais do que você se orgulha dessa merda de cargo de juiz. - Arthur respondeu furioso.
Apesar da determinação em sua voz, as mãos do cozinheiro tremiam.
O frio o havia feito vestir uma jaqueta jeans, ocultando as suas coloridas tatuagens e seus cabelos estavam penteados para trás, dando a ele um ar mais rebelde do que ele realmente possuía.
- E só me chame aqui de novo, quando quiser uma feijoada típica, uma especialidade do meu restaurante, ou pelo menos o prato do dia. De outra forma, espero que eu tenha sido claro o bastante: não quero seguir seus passos. Eu já trilhei meu próprio caminho e minha jornada é longa demais para eu parar de andar agora.
E sem dizer mais nada, comigo ainda firmemente segura em seus braços, Arthur desceu a escadaria em frente ao tribunal e seguiu, descendo a rua, com o peito subindo e descendo com toda a raiva que ainda circulava em seu corpo.
- Eu deveria te dar a maior bronca da sua vida por sumir assim, Kitty - disse ele, enquanto nos aproximávamos da pick-up branca e gigantesca da qual Arthur era dono. - Mas não estou em condições. Por enquanto, apenas saiba que ficamos malucos de saudades.
A porta do carro foi aberta e eu fui gentilmente colocada no banco de passageiros, ainda atônita demais para lidar com o fato de que eu fora encontrada justamente por Arthur. De todas as pessoas que poderiam estar discutindo ali, tinha de ser justamente o cara nu da cozinha de Duda. Tinha de ser justamente o melhor amigo do cara que eu evitava furiosamente.
Era a segunda vez que Arthur me encontrara e como ele mesmo havia dito, talvez fosse mesmo o destino. Nada me assustava mais do que o destino e todas as suas brincadeiras de mau gosto que sempre acabavam com meu coração em pedaços.
- Vai ficar tudo bem agora, Kitty. Para nós dois. Estamos indo para casa.
Casa.
Eu, que sempre fora uma gata de rua, acostumada as minhas próprias leis, finalmente tinha uma casa, um lar. Ainda que não devesse chamá-lo assim. Eu não deveria voltar, nem me dar mais uma chance porque antes mesmo da sinfonia ser tocada, eu já sabia como ela acabaria. Eu já sentia as lágrimas de vergonha e humilhação, de dor e mágoa, antes mesmo que elas escorressem. E, sinceramente? Eu não estava pronta para vê-las novamente. Não no olhar de Eduardo. Ainda assim, por mais errado que fosse, meu coração batia forte, contente.
Depois de tanto tempo distante, eu finalmente estava voltando para casa. De novo!

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora