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Ofendida.

Voltamos para casa de táxi, enquanto Eduardo reclamava por não poder dirigir graças a juízes estúpidos como o Dr. Nogueira, pai de Arthur, segundo entendi, que haviam suspendido a sua carteira de motorista. Recebi uma tigela grande de ração e outra igualmente grande de leite. Depois Duda saiu porta afora para o seu estúdio para, provavelmente, trabalhar no que deveria ser a sua.campanha, dada por Miguel.
Não precisei nem procurar uma saída.
Primeiramente porque eu já sabia que não havia nenhuma. Eduardo fizera questão de checar todas as janelas e portas antes de desaparecer para o pequeno estúdio no quintal. E depois, porque eu era uma gata de palavra.
Eu havia prometido mais três dias com ele caso não fosse colocada na caixa de transporte. E cumpriria. Tudo o que eu tinha de fazer era tomar cuidado para não deixar que Eduardo me cativasse mais do que já havia feito e esperar para que no final do terceiro dia, ele confiasse em mim o suficiente para deixar alguma porta ou janela aberta.
E dessa vez eu não faria mais promessas ou me deixaria levar pelas emoções. Eu me levaria apenas pela saída.
Dormi grande parte da tarde, sem nada o que fazer ou para onde correr e, quando acordei, o ruivo entrava em casa coçando os olhos, evidentemente cansado. Já era tarde e apesar de ter dormido bastante, eu ainda estava um pouco fadigada. Nada estranho, depois da manhã que eu tivera.
- Ei, Kitty - chamou ele quando passou pela cozinha, onde eu estava esparramada. Sem pensar duas vezes, o segui para o quarto. Enquanto se esticava na ponta dos pés, retirando uma grande caixa de cima do seu armário, Eduardo começou a tagarelar. - Percebi que você não gostou muito de Una, ela é meio mimada, não é mesmo?
Oh, Duda, eu adoraria ter uma opinião formada sobre Una, mas não pudera nem sequer conversar com ela e isso me deixava muito culpada. Entretanto, ela parecia ser uma boa gata.
Eduardo colocou a caixa rasa no chão e a forrou com um edredom azul claro que havia retirado de dentro do guarda-roupa, transformando-a numa pequena cama para que eu pudesse me acomodar confortavelmente.
Retirando os sapatos, ele se jogou na cama e eu me aninhei em meu novo local de sono, observando-o atentamente. Duda pegou um lápis e o seu bloco do lado da cabeceira, e começou a rabiscar nele, alheio a tudo, exceto ao desenho em suas mãos.
A maneira como seus olhos se estreitavam, atentos, e a sua boca se curvava, dando as mais diversas expressões ao seu rosto enquanto os seus traços tomavam forma, me fizeram assisti-lo encantada por um longo tempo, até me render ao sono novamente.
Fui acordada no dia seguinte pela maldita falta de cortinas no quarto de Molina. O que, no final das contas, era por minha própria culpa.
- Hora de acordar, Kitty.
Mentira. Hora de acordar era relativo. Cada pessoa tinha a sua e, honestamente, aquela não era a minha. Há séculos eu não dormia em um lugar tão gostoso, então nem uma matilha de cachorros babões seria capaz de me tirar dali.
- Eu te acordei para me despedir, minha linda. Eu preciso ir para a Euforic e volto só no final do dia, você ficaria assustada quando acordasse e não me encontrasse aqui.
A preocupação dele era adorável e lutei para não deixar aquilo me afetar ainda mais. Tentei também não deixar que minha vontade de fugir falasse mais alto do que a minha promessa de ficar por três dias.
- Tchau, Kitty - o nariz de Eduardo roçou nos meus pelos antes de sair correndo, agarrando uma pasta azul marinho que eu tinha a certeza de que estava cheia de desenhos incríveis. O som da porta lá embaixo anunciou que ele havia partido e naquela hora eu estava completamente desperta.
Detalhe: sem nada o que fazer, trancada naquela casa enorme.
O bloco de notas estava aberto na cama de Eduardo e não me contive, pulando para cima desta a fim de saber o que tanto o mantivera concentrado na noite anterior. A resposta era tão óbvia que me odiei por não ter pensado nela antes.
Com um lápis de cor vermelho, meu dono havia desenhado o perfil de Alice, os seus cabelos espalhados pelo vento enquanto ela olhava por cima do ombro, com as sobrancelhas arqueadas de uma maneira arrogante, mas desesperadamente linda.
Havia algo naquela mulher, mesmo tendo-a conhecido apenas por meio de fotos e desenhos, que não me deixava simpatizar com ela. Algo como ciúmes e inveja me invadia simplesmente por vê-la. Uma completa reação irracional.
Deixei o quarto tentando não pensar no quanto Eduardo ainda devia ser apaixonado por aquela mulher para não ser capaz de passar um dia sem expressar isso da melhor forma que podia.
Andando a esmo pela casa, notei que estava realmente trancada, mas Eduardo havia me deixado biscoitinhos de atum, leite, água e uma tigela repleta de meu sabor favorito de ração. Oh, como eu amava salmão!
Me jogando no sofá, sem me importar por estar enchendo o tecido com meus pelos, senti minha pata bater em algo plástico e duro. Para a minha surpresa, a tela enorme em frente ao sofá se acendeu como mágica. Oh, uma televisão!
Um casal conversava e olhei assustada para a tela, pensando em como faria para aquela porcaria desligar. Eduardo iria brigar comigo por mexer naquilo? Mas eu não sabia desligar as imagens, já que minhas patas não conseguiam apertar o controle remoto, ou seja lá como eles chamavam desde que eu havia vivido com Daniel. Eu apenas conseguia fazer com que as imagens mudassem, mas nada de se apagarem.
Desde 1986 eu não via uma televisão, ainda mais uma tão gigantesca quanto aquela. Era claro que eu não sabia o que fazer, então decidi por usar a minha expressão mais inocente para o caso de Eduardo chegar a qualquer momento, e fazer parecer que a televisão havia ligado sozinha. Pronto, eu não teria nada a ver com aquilo.
As imagens na televisão começaram a fazer sentido, então comecei a compreender a história da moça sofrendo por estar longe de seu amado pelo que parecia ser culpa de sua terrível mãe. A doce mulher queria fazer as pazes com seu amado e estava pronta para perdoá-lo, sem saber que ele não fizera nada contra ela. A história chamou a minha atenção, e me sentei confortavelmente assistindo o desenrolar da situação, por diversos momentos até torcendo pela sofredora.
Mais tarde eu vim a descobrir que aquilo era um canal de filmes que me dava dois minutos a cada meia hora para ir buscar um pouco de ração ou um biscoito, antes de ter de correr de volta para continuar a assistir. Aquela era a coisa mais legal que eu havia visto.
Cenas atrás de cenas, histórias atrás de histórias. Todas muito sofridas e interessantes. Mas nada nem remotamente parecidas com a minha.
Os filmes me mantiveram distraída até o início da noite, quando ouvi o barulho das chaves na porta da frente. Foi naquele momento que eu percebi que viver com Eduardo havia levado toda a dignidade de mim.
Lá estava eu, virando as costas para a televisão cheia de coisas divertidas e correndo do sofá para a porta, sentada, alerta, esperando Eduardo aparecer para me dar carinho. Droga! O cara mal havia se afastado de mim e eu já estava mendigando carinho como uma gata domesticada, esperando que meu dono me pegasse no colo, afagando meus pelos daquela maneira deliciosa que apenas ele fazia.
Eu estava fazendo exatamente o que eu sabia que não deveria: estava me apegando à Eduardo Molina.
Porém, toda a minha ansiedade se desfez quando a porta se abriu e não foi o adorável ruivo quem a atravessou. No seu lugar, uma mulher alta, de cabelos escuros e longos, com expressão séria, passou na minha frente com suas enormes e longas pernas, olhando para todos os lados antes de fechar a porta trás de si.
Se eu não tivesse visto todos os desenhos e a foto na cabeceira de Duda, jamais saberia quem era ela.
Alice.
O que ela estava fazendo ali? Por que estava andando pela sala de Eduardo como se tivesse todo o direito de estar ali? A maneira como ela andava, elegantemente, sem ao menos me notar, fazia o meu sangue ferver.
O que ela queria ali? Será que não havia machucado Eduardo o suficiente para ainda ter de visita-lo? O que ela pensava que estava fazendo? Entrega de sofrimento a domicílio?
Eu já havia visto a forma que Eduardo ficava por causa dela e não desejava assistir àquela cena novamente, afinal, ainda que não devesse me importar, me sentia mal por vê-lo sofrer daquela maneira.
Miei para atrair a sua atenção, ameaçadoramente, quase rosnando, e me dei conta de que não hesitaria em usar minhas unhas naquela mulher, se fosse necessário. Por mais que ela importasse para Duda, eu não me refrearia em machucá-la, caso fosse preciso.
Eu nem sabia o que havia acontecido entre os dois para tomar partido de Eduardo daquela maneira. Não tinha a mínima noção da história deles, mas ainda assim estava pronta para defendê-lo e ele nem significava nada para mim.
Ou significava?
- Ah, olha só. Eduardo arranjou um gato. Bem a cara dele.
As suas passadas compridas a trouxeram para perto de mim e eu já estava devidamente irritada por ela confundir o meu sexo daquela maneira. Macho era o caramba! Alice se agachou ao meu lado, estudando-me antes de dar uma gargalhada cheia de desdém.
Rosnei da maneira mais ameaçadora que pude e ela se levantou, dando um passo para trás.
Bom. Muito bom mesmo ou eu... Eu faria o quê? A arranharia? Porque como gata esse era o máximo que eu poderia fazer.
- Bravinho, gatinho?
Gatinho é a mãe, Alice, sua nariguda!
- Vou sentar-me bem aqui - disse enquanto se sentava calmamente no sofá que eu ocupava momentos antes, cruzando as pernas da maneira mais refinada que eu já vira. - E esperar o seu dono chegar. Temos assuntos a tratar, bichano. E cá entre nós, já que ele ia adotar um gato, ele poderia arranjar, pelo menos, um mais bonitinho ou menos estranho que você, não é mesmo?
Minha raiva era tamanha que eu mal podia me mover, emitir qualquer som ou o que fosse.
Eu era simplesmente uma gata. Podia dizer que era elegante, esperta, experiente ou qualquer outra qualidade que eu poderia achar que tinha, mas jamais seria mais do que isso: uma gata. E com aquela mulher, ainda que uma bruxa maldita, tão bonita, me dizendo que além de ser um gato, que eu era estranha e feia, fez com que a minha limitação ficasse ainda mais evidente.
Eu nunca seria mais do que uma gata. Uma felina desprezada e eterna.
Alice pegou o controle remoto de cima do sofá e se espreguiçou como uma deusa, como se tivesse todo e qualquer direito de estar ali. Para ela, intrusa, claro, era eu.
Tudo o que me restava era ficar ali, parada, observando toda a sua beleza clássica, toda a sua sofisticação, e ficando mais deprimida a cada segundo. Deitei-me em um canto do tapete, tentando ignorar o som da televisão que passava algum programa sobre a vida animal, como se Alice quisesse me afrontar ao assistir àquilo.
Uma hora inteira se passou. E eu odiei cada segundo, desejando apenas correr dali e chorar o meu próprio destino, mas me controlando como podia. Eu não estava viva por tantos anos à toa. Eu sabia me controlar e por isso continuei ali, imóvel, como se Alice não me afetasse em nada.
Quase agradeci a todos os deuses felinos por ouvir novamente o som das chaves na porta.
Eduardo não nos notou. Abriu a porta calmamente, com um sorriso confiante no rosto, que parecia dizer o quão proveitoso havia sido o seu dia na Euforic, e só depois de fechar a porta ele se virou para nós.
- O que está fazendo aqui?
A pele de Eduardo estava tão pálida que ele parecia ter visto um fantasma. A pasta caíra de
suas mãos, devido ao choque. Ainda assim, sua voz
estava firme, como se não estivesse chateado com a sua presença, mas apenas bravo.
- Temos que conversar.
- Acho que já disse tudo o que tinha a dizer, Alice. E um pouco mais que era completamente desnecessário, também.
Ela se levantou, empertigada, e ele se aproximou, intimidador.
- Sei que me quer de volta.
Havia quem me chamasse de egoísta e cheia de mim. Mas, certamente, essas pessoas não conheciam Alice.
- Vá embora, por favor. Não vamos dizer mais nada que possa nos magoar mais do que já fizemos, eu te imploro.
- Se não me quer de volta, porque o seu estúdio está cheio de desenhos meus?
Esperei que Eduardo lhe respondesse à altura, mas tudo o que meu dono fez foi abaixar a cabeça, mostrando a sua derrota. Ainda que eu não soubesse como ela tinha conhecimento dos desenhos, seu argumento levara a melhor sobre Duda.
- Você ainda me ama, Eduardo.
As suas palavras não levavam qualquer sentimento bom. Pelo contrário. A frieza delas fazia parecer que era uma ofensa Eduardo ainda ser apaixonado por ela. E isso me lembrou palavras parecidas vindas de uma pessoa diferente, mas que tinham a mesma frieza. As palavras de Daniel, enquanto me colocavam para fora de sua casa e de sua vida.
- Eu ainda posso deixar de te amar.
Ainda que todos os alarmes em minha mente soassem, dizendo que eu não deveria fazê-lo, não fui capaz de voltar atrás. Me aproximei do ruivo e rocei meu corpo e rabo em sua perna. A minha tentativa mais que desajeitada de um tapa no ombro para apoiá-lo naquela discussão.
Meu dono não precisava de mais sofrimento. E Alice não merecia nem um pingo dos sentimentos profundos que Eduardo nutria por ela.
- Ninguém deixa de amar alguém, querido.
- Então isso deve significar que você nunca me amou, não é? -Alice se aproximou e o ruivo recuou, em desespero. Seus dedos despenteavam os próprios cabelos, nervoso. - Não me interessa por que você veio, eu quero apenas que devolva minhas chaves e vá embora. Por favor.
- Vamos começar de novo, tudo bem? Nós podemos fazer melhor dessa vez.
- Não somos mais um plural. É você. Sou eu. Não há mais nós, Alice. E não vai haver nunca mais. - A dor em sua voz parecia reverberar em mim.
- Você está cansado. Durma, pense bem na minha proposta e conversaremos amanhã. Pode ir me buscar no banco, se quiser. Eu sempre adorei quando você ia me buscar no trabalho.
Sem resposta da parte dele, Alice se aproximou ainda mais, segurando o rosto fino de Eduardo em suas mãos de unhas bem pintadas. A visão de seus dedos compridos e suas unhas perfeitas fez com que eu olhasse minhas próprias patas, observando triste as minhas unhas de gato. Amarelas, compridas, estranhas. Feias.
Eduardo não teve nenhuma reação quando os lábios de Alice tocaram os seus, ali, bem acima de mim, num beijo delicado demais até para a própria mulher, que não foi correspondida. E assim que separou sua boca da de Eduardo, saiu, sem olhar para nós, dando ainda mais drama à toda aquela situação.
Quando Alice abriu a porta para sair, por um instante ela olhou por cima do ombro, como no desenho que Eduardo fizera na noite anterior, dizendo:
- E quando eu voltar a morar aqui, nos livraremos deste gato feio.
Insultar Eduardo não era o bastante, claro. Alice tinha que atacar a todos ao seu redor para se sentir plena. As mãos grandes de Duda me seguraram antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, acariciando-me antes de encarar a sua ex-namorada com um brilho ameaçador no olhar.
- Ela é uma gata. Fêmea. E muito mais mulher do que você jamais será.
A risada altíssima de Alice ecoou por toda a sala, me assustando.
- Isso é uma gata de rua, Eduardo, como você tem coragem de comparar isso comigo?
Solte-me, Eduardo, eu vou enfiar as minhas unhas na cara dessa nariguda.
- Eu queria que ela fosse humana, Alice, apenas para te mostrar que qualquer mulher é melhor do que você jamais será.
Não.
Não, Eduardo, não. Você não disse isso.
Um gosto estranho de sangue encheu a minha boca e a tontura fez com que eu fechasse meus olhos, desejando que tivesse entendido tudo errado. O pânico estava começando a se alojar dentro de mim.
Ele não disse a sério, gente, foi brincadeirinha. Ele nem sabe o que está dizendo. Cabeça quente, sabem como é. Não foi a sério.
- O que disse, Eduardo? - perguntou Alice. A ira não podia estar mais presente no tom de voz da morena.
- Que eu desejo que Kitty seja humana só para te mostrar como é ser uma mulher de verdade. Porque mesmo sendo uma gata, ela é tudo o que você não é.
Duas vezes, seu ruivo maldito? Por todos os felinos! Como ele pode fazer aquilo? Como ele pode dizer aquilo? Eduardo não tinha a mínima noção do que fazia. Ele não tinha a menor ideia do que acabara de despertar. Droga. Por que ele fizera aquela merda?
- Pois eu desejo o mesmo. E desejo que você aprenda que nenhuma mulher na face da Terra jamais vai se comparar a mim.
E sem dizer mais nada, Alice jogou as chaves de suas mãos no chão, numa saída teatral, enquanto Eduardo a observava, em silêncio.
A porta estava aberta, eu poderia quebrar minha promessa e simplesmente fugir.
Porém, era tarde demais, meu interior já começava a se convulsionar, alertando que meu segredo estava a poucos minutos de ser exposto. Era tarde demais.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora