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Desenhada.


Morar com Eduardo havia me feito perder toda e qualquer gota de dignidade que eu tinha.
Isso mesmo. Ali estava eu. Do lado de fora da casa, miando como uma desesperada até que meu dono pudesse me ouvir e abrir o portão. O muro era muito alto e eu não conseguiria escalá-lo sem a ajuda de uma árvore, ainda assim havia chovido muito durante a tarde, o que deixara o tronco escorregadio.
Claro, porque Kitty e sorte são inversamente proporcionais.
Eduardo devia ser surdo. Uma vizinha já havia aberto a janela e eu poderia jurar que um "cala a merda dessa boca" viera do alto da rua, mas meu dono ainda não se compadecera de sua pobre, e agora rouca gata, que passava frio na porta de sua casa.
Poxa, eu só queria voltar para a minha caixa quentinha.
O dia já estava amanhecendo e eu provavelmente já sofria de uma grave e desnecessária hipotermia Mesmo assim o portão não fora aberto. Eu já estava mais do que certa de que meu dono havia desmaiado bêbado no sofá e nem percebera que eu não estava na casa.
Um claro indicador, um definitivo sinal, de que eu já deveria estar bem longe daquele lugar, que eu não deveria ter retornado. Mesmo assim, lá estava eu. Morrendo de frio e me humilhando.
O que eu não fazia por um afago e meio sachê de salmão.
Meus pensamentos estavam tão direcionados para o sabor sublime da minha ração preferida, tão totalmente focada nos sons de dentro da casa, à espera do meu dono, que não me atentei aos sons da rua. Por isso, não notei quando a caminhonete branca parou ao meu lado. O dono dela sacava a chave da casa do melhor amigo de dentro do bolso de sua calça jeans um tanto justa demais.
Arthur tinha uma chave. Alice tinha uma chave. Eu achava mais do que digno me arranjarem ao menos uma mini entrada separada para a minha pessoa. Se até a megera maldita tinha livre acesso àquela casa, qual o preconceito comigo?
- Olha só quem ficou para fora essa noite! Vem, eu te levo pra dentro.
Assim que entrei na casa, deixei-me levar pelo calor acolhedor e não pensei duas vezes antes de me jogar no enorme tapete, deixando que o tecido felpudo e quentinho fizesse a sua mágica em mim. O cansaço por miar a madrugada inteira também levou a melhor sobre mim e me rendi a ficar alguns minutos deitada, descansando, enquanto ouvia a barulheira de Arthur começar na cozinha.
Meus planos consistiam em passar, pelo menos, mais vinte minutos repousando minha cauda naquela exata posição, mas o cheiro delicioso de não sei o quê, vindo do melhor amigo de Duda na cozinha, acabou com qualquer planejamento.
Meu estomago já emitia uns sons realmente assustadores e não esperei um segundo sequer antes de correr para a cozinha, a espera de qualquer pedacinho que caísse perto de mim, sem me importar com o que era feito. Oh, pelos felinos sagrados, que fome!
A transformação sempre me deixava faminta daquela forma. Nas poucas vezes em que ela acontecera, eu me lembrava de ter comido por um batalhão de fuzileiros navais.
- Você está no cio, não está? - perguntou o cozinheiro quando comecei a rodeá-lo, à espera de comida. - Una também age assim quando está no cio. Sai e volta miando como uma desesperada, se trancando para fora do apartamento. Sem contar a fome.
Um enorme pedaço de ovo mexido caiu aos meus pés e eu quase derrubei lágrimas de contentamento. Olhei para cima e recebi um enorme sorriso de Arthur, antes de sua atenção voltar para as suas panelas. Algo do que ele parecia não se cansar nunca, já que cozinhava o dia inteiro no seu próprio restaurante, pelo que eu havia entendido de sua rotina.
- A Kittyzinha do Dudu está querendo namorar...
A canção bem humorada, mas terrivelmente desafinada, foi logo acompanhada de risadas, como se aquela fosse a coisa mais engraçada do mundo.
O ovo não durou muito, mas por sorte eu havia deixado restar um pouco de ração da noite anterior e em apenas duas lambidas, já não havia nada na tigelinha azul. Minha fome não havia se apaziguado em nada, por isso subi no balcão, esperando ser presenteada com mais algum pedaço de qualquer coisa.
Meu rabo passou suavemente no braço tatuado de Arthur, decidida a vencê-lo pelo carinho para conseguir comida e estava quase conseguindo um grande pedaço de pão e um afago na cabeça, quando a porta da cozinha, a que levava direto ao lado de fora, onde ficava o estúdio de Eduardo, foi aberta, com um ruivo cansado a atravessando.
E mesmo recebendo o pão e um carinho delicioso, vindo de uma mão grande e de toque calmo, não dei a mínima importância para isso, mais preocupada em observar os olhos castanhos e os lábios macios do meu dono, ainda me recordando de como eles pareciam incríveis vistos de tão perto, como na noite passada.
- Eu ainda me pergunto por que você insiste nisso, Arthur Nogueira.
- Porque se eu não vier fazer o seu café, você passa o dia sem comer, preso nos seus desenhos - respondeu Arthur de maneira gentil e suave, conflitando completamente com o mau humor que Eduardo parecia estar exalando naquela manhã. - Você parece estar sofrendo com ressaca, amigão.
Eduardo simplesmente apoiou os braços no balcão, deitando a cabeça neles, completamente rendido. Enquanto isso, Arthur corria para a geladeira, juntando alguns ingredientes que talvez fossem resultar no suco roxo que eu o havia visto entregar ao meu dono na minha primeira manhã naquela casa.
- Alice veio aqui ontem.
- O quê? -a cabeça do loiro ainda estava enfiada na geladeira, então ele não escutara a declaração de Eduardo que ergueu a cabeça e a repetiu. - Mas que merda aquela vagabunda veio fazer aqui?
Oh, Arthur. A cada segundo aquele cara subia mais no meu conceito. Una era uma gata de sorte por ser da posse daquele homem.
- Ela queria conversar.
- Alice é uma vadia, Eduardo. Eu vou deixar bem claro isso, ok? Alice é uma vadia que está cansada de ralar das nove às cinco num banco lotado e quer subir na vida fácil, então ela vai arranjar um trouxa, que no caso seria você, para se apaixonar, casar e tirá-la dessa vida de miséria e ralação. Entendeu?
Se eu tivesse mãos, eu certamente estaria batendo palmas para Arthur.
- Eu não...
O cozinheiro desistiu de juntar qualquer ingrediente e fechou a porta da geladeira de uma vez, fazendo um barulho alto que quase me assustou.
- Ela chegou aqui cheia de empáfia e disse que queria voltar. Provavelmente jogou na sua cara que você ainda a amava como se deixá-lo a amar fosse um grande e nobre favor que ela te presta. Eu a conheço, sei a boa vadia que ela é.
Eu podia jurar que Alice já tentara fazer o mesmo com o próprio Arthur, mas ele fora inteligente o bastante para se afastar enquanto ainda tinha tempo, ou orgulho próprio. Eduardo não tivera a mesma sorte.
Quando a cabeça de meu dono se abaixou, confirmando sem palavras que o amigo estava certo, Arthur não teve coragem de continuar despejando a sua fúria com Alice, ainda que estivesse apenas sendo sincero. Em duas passadas largas, ele logo estava do lado de Duda, colocando uma mão em seu ombro.
- Uma hora você vai ter que superar isso.
- Sei que sim - seus olhos castanhos e intensos se ergueram. - Mas não foi só isso que aconteceu ontem.
A expressão curiosa e ansiosa de seu amigo fez com que meu dono pedisse para esperar alguns instantes enquanto corria para o estúdio, voltando em seguida com um pedaço de papel muito grande, quase como um cartaz, virado, para que não pudéssemos ver o que estava ali.
-Estou curioso, Duda.
- Eu sei. Mas me ouça, ok? - o mau humor e o cansaço de Eduardo se foram por alguns minutos enquanto ele encarava Arthur com um brilho diferente no olhar, que o deixou ainda mais bonito do que realmente era. -Ontem, depois que a Alice se foi, eu bebi a garrafa de vodca que estava na geladeira. Talvez eu tenha bebido um pouco demais porque quando voltei para sala, tinha
uma mulher aqui.
- Que mulher?
Ainda em cima do balcão, aproximei-me de onde Eduardo estava parado, em pé, segurando o papel, ansiosa para saber o que ele tinha a dizer. Louca para ouvir sua primeira impressão sobre o meu verdadeiro eu.
- Nem eu sei. Eu não a conhecia. Ela estava nua, cara, vestindo apenas o meu casaco, descalça. No meio da minha sala.
- Uou! E como ela era?
A curiosidade ainda mais forte nas palavras de Arthur levou Eduardo a virar o papel e deixar com que eu e seu melhor amigo víssemos o que havia ali. Com cores vibrantes e traços incrivelmente precisos, o ruivo tinha desenhado algo tão realista que eu nem sabia como descrever.
Os lábios, o nariz pequeno e os cabelos compridos e daquele tom intermediário entre o louro e o castanho que ele conseguira reproduzir como uma fotografia estavam ali, perfeitamente desenhados.
Era eu. Meu eu humano. Mas de alguma forma era ainda melhor, porque Eduardo fizera com que eu parecesse alguém realmente linda, com aquele olhar brilhante e felino e a pele delicada, mesmo apenas em um desenho. - Ela parece ser uma mulher muito bonita.
- Ela era linda. Realmente linda. A mais linda que eu já havia visto.
Aquela declaração fizera algo dentro de mim se acender antes mesmo que eu pudesse tentar conter minhas próprias emoções. Eduardo me achava linda e eu sabia que se tivesse meus lábios naquele momento, certamente estaria sorrindo.
Mas a realidade logo me lembrou de quem eu realmente era. Os pelos em minhas patas não deixavam com que eu me enganasse por muito tempo. Eu tinha certeza de que quando Eduardo associasse a mulher em sua sala, a beldade em seu desenho, a quem ela realmente era, faria como Daniel e não hesitaria em me colocar para fora.
Arrepiei-me ao lembrar dos gritos de Daniel ao me jogar na rua, e logo voltei a me concentrar na conversa de Eduardo e Arthur, que agora segurava o desenho, estudando-o mais de perto.
- Preciso de mais detalhes, Molina. Ela estava mesmo nua?
Opa. Calma aí, cozinheiro. Não vá pensando besteiras porque eu era uma dama, gata ou o que quer que fosse, de família. E o respeito?
- Bem, ela estava, mas eu estava tão bêbado que dei pouca atenção - declarou o ruivo. Uma única sobrancelha de Arthur se ergueu e Eduardo ficou completamente vermelho como seu cabelo. - É, ela tinha pernas bem legais e... Hmm... - seus dedos fizeram movimentos na frente do corpo, imitando seios e eu soube que se estivesse em minha forma humana, estaria ainda mais vermelha do que ele estava. - Mas o que me impressionou mesmo foram os olhos dela. Ela tinha olhos de gato, Tui.
- Eu estou vendo. São incríveis. Se você os desenhou tão fielmente quanto sempre faz, tenho certeza de que os olhos dela são bonitos pra caramba - Eduardo continuava vermelho, o que fez Arthur, que conhecia melhor do que eu acreditava, gritar, ensurdecendo até os vizinhos: - Oh, meu Deus, Eduardo, você transou com a garota?
- Não, eu não...
- Seu safado!
Quanto mais vermelho Eduardo ficava, mais Arthur ria e se aproximava, provocando o amigo que estava tão sem graça que começara a abanar as mãos, negando tanto com os gestos quanto com sua voz estrangulada.
- Eu só a beijei. Eu não podia... Eu nem a conhecia... Arthur eu não...
- Você a beijou?
O tom era acusatório, de brincadeira, mas tudo o que eu conseguia ver era o sorriso orgulhoso do meu dono por ter beijado a bonita garota do desenho. Por haver me beijado.
- Sim. Eu a beijei e foi incrível.
Incrível. Meu coração podia bater um pouco menos acelerado e meu rabo podia se controlar e não entregar a felicidade que aquelas simples palavras traziam ao meu corpo felino.
Eduardo se sentou à minha frente, em suas azuladas banquetas, e apoiou o rosto nas mãos, o escondendo.
- Eu nem sabia ao certo o que estava fazendo, só sabia que queria beijá-la e fiz isso. E não me arrependo um só segundo, Tui. Eu ainda posso sentir o gosto dela em mim.
Meus olhos se fecharam e tudo o que eu desejei foi poder dizer a ele que o mesmo acontecera comigo. Que seu gosto ainda estava em mim. Mas o que eu podia fazer? Eu era apenas uma gata.
- E depois?
- Eu arranjei uma troca de roupas para ela e me ofereci para leva-la em casa, mas ela recusou, saindo daqui antes que eu pudesse organizar meus pensamentos. Daí, quando finalmente fui atrás dela, ela estava quase no fim da rua - ele fechou os olhos, talvez se recordando do
momento, antes de continuar. - Ela olhou para trás, mas não voltou.
O fogo nem estava aceso mais, por isso Arthur se deu folga das panelas e assumiu verdadeiramente o papel de melhor amigo, se sentando na banqueta ao lado da de Eduardo, tentando entender a história.
Aproveitei que nenhuma das atenções estava voltada para mim e comi um bocado de bacon que estava perdido em cima da mesa, afinal, eu ainda estava com fome e ninguém se manifestara para me alimentar até aquele momento.
- Você deixou que ela fosse embora?
- O que eu poderia fazer? Eu nem a conhecia. Eu ainda não tenho a mínima ideia de como ela apareceu na minha sala.
- Você não está preocupado com ela andando por São Paulo, descalça?
- Estou, droga! - a frustração era palpável em Eduardo. - Ela não disse uma maldita palavra. A moça era um verdadeiro mistério que surgiu e desapareceu como um passe de mágica - Mais uma vez seu rosto foi oculto por suas mãos, que subiram até os cabelos ruivos para
despenteá-los um pouco mais. - Eu adoraria encontra-la de novo só para ter certeza de que ela era real e não apenas um delírio bêbado.
Impossível. Aquele fora um acidente e eu tinha certeza de que não se repetiria tão cedo.
Palavras impensadas no calor do momento. Jamais aconteceria novamente.
E apenas eu sabia o quão triste isso era.
- Eu adoraria ouvir a sua voz.
Eu desejava o mesmo havia quatrocentos anos.
- Então ela era gostosa assim mesmo? - provocou o loiro.
- Demais! - a admissão saiu antes que Eduardo pudesse prever e suas bochechas ficaram rubras novamente. Se eu fosse admitir também, diria que achara aquilo um verdadeiro elogio.
Eduardo namorara Alice, a mulher mais deslumbrante que eu havia conhecido e se eu era considerada bonita para um homem que conhecera por inteiro a Rainha da Beleza, então talvez eu não fosse tão feia e estranha quanto pensava.
- Kitty, pare de comer todo o bacon!
Arthur puxou a embalagem, antes cheia de bacon, com uma careta decepcionada, observando os dois mínimos pedaços que eu ainda não tivera tempo de abocanhar.
Eduardo aproveitou o momento para puxar-me delicadamente para um carinho no topo da minha
cabeça com toda a sua peculiar delicadeza, e não resisti a me aproximar ainda mais, miseravelmente entregue.
- Acho que você não percebeu ainda, Duda, mas Kitty está no cio. É por isso que ela está comendo assim e talvez ela comece a apresentar mudanças de humor. Talvez ela até tente te morder.
Uma vez Una mordeu o dedão do meu pé tão forte que até hoje eu devo ter marcas dos dentinhos dela.
Credo, Una.
Mas eu não estava no cio. Eu não tinha cios, nem nunca tivera. Era apenas a transformação que me deixava faminta. Apenas isso. Malditos humanos e suas conclusões precipitadas.
- Cio? E o que eu tenho de fazer?
Eduardo me tirou do balcão e colocou-me no seu colo, voltando a coçar meus pelos enquanto meu rosto estava perto do seu peito, deixando-me ouvir perfeitamente as batidas suaves de seu coração. Ele encarava Arthur realmente esperando alguma orientação sobre o que tinha de fazer durante o meu suposto cio. Poxa, uma gata nem podia sentir fome sem que as pessoas pensassem
que ela já estava ficando louca?
- Acho que precisamos arrumar alguém para ela cruzar.
Eu iria cruzar, sim. Cruzar minhas duas patas na cara de Arthur. Pronto, ele acabara de perder todo o respeito que juntara comigo. Por todos os felinos! Não dê ouvidos a este insano, Eduardo, ele não sabe o que diz. Eu não precisava cruzar.
Não queria mais ninguém me tocando.
Não como queria Eduardo. Os beijos dele da noite passada ainda mexiam comigo e, apenas por estar em seu colo, perto demais de seus lábios, já sentia vontade de ser humana novamente, apenas para ter lábios e poder repetir tudo. Fazer tudo outra vez e poder beijar seus lábios até que eles pudessem devolver a minha capacidade de falar.
E isso era errado. Era impossível.
- Ok, então. Vamos achar um macho para Kitty.
Eduardo, não! Ruivo burro! Aquilo era absurdo. Eu não queria cruzar com ninguém. Eu não precisava de um macho. Tinha 400 anos de independência a zelar.
- Ei, acho que conheço um candidato. Ele e Kitty farão um par perfeito.
Arthur ergueu meu rosto para sorrir diretamente para mim e seus olhos se fixaram nos meus. O contato durou apenas alguns segundos, porque o loiro, assim que penetrou meu olhar, se afastou rapidamente e se voltou ao desenho enrolado em cima do balcão. Sua boca se abriu por alguns instantes e seu cenho se franziu, observando-me com confusão antes de balançar a cabeça.
- Então você conhece um bom gato para ela?
- Oh, sim. E garanto que nenhuma gatinha cheia de marra é páreo para Marvin Padilha.
Foi a vez das minhas sobrancelhas se erguerem. Arthur realmente estava me menosprezando.
Cheia de marra, certo? Pois ele aprenderia era que ninguém era páreo para mim. Quatrocentos anos na rua tinham lá as suas vantagens.
Marrenta? Pois bem, Arthur não perdia por esperar.

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