Amada.
Nunca, em todos os meus quatrocentos anos, agradeci tanto por não ser capaz de me comunicar. Nunca.
Eu já estava na companhia de Marvin há mais de doze horas e, a cada segundo, mais e mais entediada. Se eu fizesse uma lista de todos os dias mais chatos da minha vida, aquele estaria em primeiro lugar. E eu devia tudo à Marvin Padilha.
Como um verdadeiro cavalheiro, o felino insistente fora me buscar em casa e me ensinara como entrar e sair do apartamento de Arthur com facilidade. As janelas do segundo andar costumavam ficar sempre abertas e era bem fácil atravessá-las. Com cuidado e rezando para não gastar a sua última vida, andamos pelo beiral do prédio até conseguir descer a um andar mais baixo e seguro
para pular.
Temi que o nosso encontro fosse ser um daqueles encontros aventureiros, mas depois de passar todo o dia visitando prédios históricos e conhecendo as ruas onde as melhores histórias da cidade de São Paulo foram protagonizadas, decidi que preferia, mil vezes, o encontro aventureiro do que aquele marasmo que estávamos enfrentando.
Nada contra São Paulo. Por todos os felinos, eu adorava aquela cidade!
O problema era Marvin e sua incapacidade em notar que eu estava de saco completamente cheio. Se ele queria me levar para sair, se queria um encontro decente, teria que ser bem melhor do que aquilo. Porém, ao contrário de mim, o gato parecia achar que estava tudo correndo às mil maravilhas. O que, evidentemente, não estava.
Perto do meio dia, Marvin julgou que eu estivesse com fome e nos levou para comer perto de uma peixaria. O melhor que eles tinham era atum. Não era nada mal, mas poderia ser melhor.
Poderia ser salmão, mas até eu mesma entendia que não se podia ter tudo.
Decidi por fim que eu talvez devesse me empenhar mais para fazer aquele encontro parecer remotamente decente. Talvez devesse roçar meu rabo no dele enquanto andávamos, para lhe dar uma sensação de intimidade, pelo menos. Mas não sabia em como isso iria ajudar, por mais que ele desejasse significar mais, Marvin era apenas um amigo. Eu até desejava me dar uma chance de ser uma felina e dar ao próprio Marvin uma chance comigo, mas era incapaz de pensar em qualquer homem que não fosse Eduardo.
Mesmo que eu tivesse decidido por ser uma gata, meu coração continuava querendo ser humano. Especificamente querendo ser daquele humano.
E isso era completamente errado.
Marvin, no entanto, estava tentando. Eu jamais tiraria o seu mérito por isso. Era encantador ver o seu esforço, até mesmo me roubando um novelo de lã, como um presente para mim. O bichano me entregou e esperou, encarando com animação, que eu me enrolasse nele como qualquer outro felino faria.
Seria aquele um teste?
Desesperada por passar, joguei o novelo para cima, vendo como ele caía nas minhas patas, fazendo a linha áspera se enrolar em mim de um jeito que não me deixou animada, como faria com Una, por exemplo. Aquilo apenas me deixou irritada por me ver toda enrolada daquela forma.
Se para ser uma gata eu precisasse fazer aquilo com frequência, então eu declinava da forma mais elegante possível. Valeu, mas não.
O nosso programa continuou daquela maneira: histórico e felino. Ficamos um tempo no Parque da Independência, atravessando os jardins belíssimos, em silêncio, apenas aproveitando o dia chegando bem perto do seu final.
Encarei Marvin, tentando me dar uma chance, e rocei meu rabo de leve no seu. Ele estava dando o máximo de si para me fazer superar meu coração partido e começar de novo, da maneira correta, mas tudo o que eu fazia era odiar aquele encontro. Eu era mesmo uma gata mal agradecida.
- Sabes qual é a melhor parte em ser um gato?
Fiz que não com a cabeça, observando a enorme construção à nossa frente. O museu do Ipiranga se erguia em todo o seu esplendor. Em todos os meus anos em São Paulo, eu jamais chegara tão perto daquele prédio e agora me arrependia por não tê-lo feito antes.
Era magnífico. Pomposo, mas de uma maneira incrível. Era tão belo que eu não conseguia desviar meus olhos. Eu estava encantada com aquele lugar. Entretanto, várias placas ao redor anunciavam que o mesmo estava fechado para algumas reformas.
- Podemos ir para onde quisermos, quando quisermos - disse ele. O seu bigode se curvou com o que pareceu ser um sorriso e ele se apressou, correndo até perto de uma janela entreaberta, onde um dos funcionários da obra do museu deixara um tijolo, impedindo que a mesma se fechasse.
O espaço não era grande, mas gatos eram reconhecidos por sua habilidade de se enfiarem em locais onde, logicamente, não caberiam. E quase não fiquei surpresa quando, depois de se esgueirar e se espremer, Marvin finalmente conseguiu entrar no museu. Com um gesto simples, pediu para que eu o seguisse, o que fiz, me sentindo um pouco mais otimista no momento.
Depois de toda a chatice daquele dia, qualquer convite para qualquer aventura, por mais boba que fosse, já estava plenamente aceito.
Busquei não perder o corpo de Marvin de vista, seguindo o rastro castanho com certa dificuldade. Era domingo e o museu estava vazio, mas a quantidade de coisas amontoadas ali para a reforma tornavam o local um perigoso labirinto e, sem Marvin, eu com certeza já teria me perdido.
Subimos diversos degraus de escadas, até estarmos no que me parecia ser o último andar. A construção ainda não havia chegado naquele local e, com exceção dos enormes tecidos tampando uma coluna ou outra, tudo ali parecia perfeito.
Por alguns instantes, foi como se eu tivesse voltado no tempo. Nada de tecnologia, nada de correria... Nenhum humano. Por aqueles breves momentos, enquanto andava pela enorme sala, me senti mais segura do que jamais havia me sentido em toda a minha vida.
A janela estava fechada, mas o vidro estava limpo o bastante para que pudéssemos ver os jardins lá embaixo, se espalhando da maneira mais bela possível, deixando-me boquiaberta com a maravilha que era aquele lugar. O sol estava começando a sua mágica, tingindo o céu com todas as cores possíveis e eu senti Marvin se aproximar, observando as janelas à nossa frente, apreciando o espetáculo da natureza.
Ele não disse nada. Apenas deixou que sua cauda se enroscasse na minha enquanto o seu corpo pendia para mais perto de mim, tocando-me como um companheiro teria todo o direito de tocar sua companheira. E eu era isso agora, não? Era a sua companheira, para o bem ou para o mal. Porque ainda que procurasse por toda a cidade, ninguém seria capaz de me compreender tão bem quanto Marvin. Ninguém entenderia o meu drama como ele entendia. Éramos amaldiçoados e só nós mesmos compreendíamos a dor de ser quem éramos.
- Sinto muito se isso foi ruim demais - comentou Marvin. Eu não precisava de muito para entender que ele estava se referindo ao nosso dia juntos.
Minha pata tocou a sua, como se o confortando e agradeci a todos os felinos por não precisar mentir dizendo que tinha sido legal quando não fora. A única coisa que eu poderia fazer era confortá-lo e esperar que ele fizesse melhor na próxima vez. Ou que me trouxesse ao Ipiranga logo de cara.
- Eu tentei, Catarina.
Meus olhos se arregalaram e eu o encarei, notando que ele apenas sorriu. Apenas outra pessoa havia me chamado daquela forma. Na noite em que eu beijara Eduardo pela segunda vez, ele havia me inventado aquele nome e eu me vira o apreciando mais do que deveria, como a tola apaixonada que eu era.
- Porém não foi o bastante, foi? - ele continuou.
Não. E nunca seria.
Todo aquele dia apenas me mostrara que, ainda que eu estivesse presa no corpo de uma gata, a minha alma nunca seria felina. Eu havia me adaptado a certos aspectos da vida nas ruas, como uma gata, mas nunca seria inteiramente uma. Eu ainda pensava e sentia como uma humana. E isso era o que fazia as coisas machucarem tanto.
- Pode me dar mais uma chance?
A culpa não era de Marvin. Eu mesma fizera aquele encontro ser uma porcaria. Ao invés de me entregar à experiência, tentar me divertir, tudo o que eu fizera fora desejar que as coisas fossem diferentes. A companhia, o encontro. Eu mesma.
Marvin merecia mais uma chance. Eu tinha de conseguir ser uma gata.
Doía demais estar ali, admirando o espetáculo mais incrível da natureza, pensando em Eduardo. As luzes alaranjadas que riscavam o céu, como o sol se escondendo, lembravam-me de seus cabelos. Eu não queria mais comparar o toque de qualquer outra pessoa ao dele e notar que nada me satisfazia mais do que Eduardo Molina.
Como eu poderia superar aquele amor se ele estava em mim de uma maneira mais profunda do que poderia ser possível? Era como um sangramento que não se podia estancar.
Inclinei minha cabeça, tocando o seu nariz com o meu e Marvin entendeu que aquela era a minha maneira de lhe dizer que sua segunda chance estava concedida.
- Eu queria que você fosse humana, Catarina.
Seu imbécil!
Dei um pulo para trás, indignada e Marvin encarou-me como se estivesse fazendo a coisa mais normal do mundo. Ele tinha ideia do que estava fazendo? Aquelas eram as palavras que iniciavam a minha transformação. Em meia hora, no máximo, eu viraria uma humana nua no meio de um museu em reforma, tudo por culpa daquele maldito gato estúpido.
Ah, ele que esperasse até eu virar humana! Eu castraria aquele filho de uma gata má!
- Não me olhes assim, querida. Sei muito bem o que estou a fazer.
Sabe? Eu também vou saber quando arrancar aqueles olhos verdes fora! Mas, como o gato esperto que era, Marvin se afastou, deixando-me sozinha na sala para que levasse meu tempo com a transformação, dando-me alguns momentos de privacidade.
Em minha mente, eu blasfemava como um marinheiro quando senti a primeira pontada da transformação. Odiava o fato de aquela maldição doer tanto. A dor era tão grande que quando senti o primeiro osso se estendendo, gritei sem querer e Marvin voltou à sala. Eu não queria que ele visse a cena. Era um show de horrores, mas aparentemente, ele não se importava.
Encolhi-me contra uma das paredes e gemi terrivelmente, miando e gemendo ao mesmo tempo, sentindo minha voz mudar, junto com o meu corpo. Os pelos desaparecendo, o corpo se formando, as patas se transformando em mãos e pernas, pés e braços. E então, da mesma forma como a dor da transformação começou, subitamente, ela parou. Então, soube que, mais uma vez, eu era humana.
Assim que me levantei notei que eu não fora a única a passar por uma transformação.
À minha frente, um lindo homem de cabelos castanhos e rebeldes, caindo na testa, me encarava de volta com olhos verdes firmes e brincalhões. Devia ter um metro e oitenta, mais alto que Eduardo, mas em nada me intimidou com a sua altura. Ele vestia apenas uma calça de moletom cinzenta e eu agradeci por não precisar ver nada mais íntimo. Porém, estava sem camisa e não pude deixar de admirar como o seu abdômen era todo definido. Suas mãos longas e grandes estendiam uma camiseta branca na minha direção e não me fiz de rogada, a aceitando e vestindo imediatamente enquanto o encarava interrogativamente.
- Sempre venho aqui para me transformar. Geralmente fico no telhado, a fumar um cigarro, então deixo minhas roupas escondidas embaixo de uma estátua de Dom Pedro. - ele apontou para a porta e eu assenti. Pouco me importava onde ele guardava as suas coisas. Eu queria saber por que estávamos humanos. E como sempre parecia me ler tão bem, Marvin começou a se explicar: - Você nunca conseguirá ser uma gata, Kitty. Eu tentei, achei que era adequado para ti, se adaptar à sua maldição e todo o mais... - a versão humana de Marvin tinha covinhas adoráveis que se aprofundavam quando ele sorria e todo o seu charme humano parecia se potencializar com aquele sotaque português que ele não o abandonava. - Seu coração jamais permitirá que isso aconteça.
Você nunca irá se adaptar e não quero mudar quem és, apenas quero deixar que as coisas fiquem mais simples para você.
Eu agradecia por isso, mas ele tinha de notar que éramos seres amaldiçoados. Fácil e simples eram palavras que não constavam em nossos vocabulários.
- É por isso que se apaixonou por Eduardo... Porque ele é um humano! Ele tem mãos, lábios e pernas. E se é disso que precisas para ser feliz, então também terei mãos, terei lábios e pernas e a amarei assim.
Marvin estendeu as mãos para mim e admirei seus dedos compridos e macios, ao contrário das mãos de Eduardo, calejadas e marcadas de tinta. Estendi minha palma para ele e deixei que a segurasse, voltando-a para cima e me fazendo aproximar de seu corpo. Sua pele era quente e
quando ele ergueu a minha mão até seus lábios para beijá-la, notei que as palmas de minhas mãos estavam feridas como minhas patas.
Porém, isso não parecia importar à Marvin.
Seus cabelos castanhos eram lindos e mesmo na semiescuridão daquela sala, quebrada apenas pelos postes de luz no jardim, eles pareciam ainda mais brilhantes e adoráveis. Afastei uma mecha teimosa de seus olhos e notei que seu rosto era realmente belo. Masculino, com um maxilar forte e boca firme, mas adoravelmente juvenil, com seus olhos brilhantes e a covinha nas bochechas. Mais perto dele, notei que havia até mesmo uma leve barba começando a cobrir o seu rosto e achei isso ainda mais atraente.
Seu rosto se inclinava, deixando seus lábios na altura dos meus e automaticamente me deixando nervosa.
Era simples com Eduardo. Ele simplesmente se aproximava, olhava para mim e tudo o que eu
precisava fazer era fechar os olhos e deixar que ele me beijasse até fazer com que eu perdesse os sentidos e correspondesse aos seus lábios, dando tudo de mim para o homem a quem eu amava.
E ali, admirando os lábios de Marvin, não me sentia tentada a fazer isso: fechar os olhos e deixar que seus beijos me tirassem o sentido.
Nossas mãos se soltaram e senti a sua palma subindo pelo meu braço até se enveredar pelos meus cabelos, segurando-me pela nuca, trazendo-me mais perto ainda de seu corpo. Meu coração devia bater forte, eu devia suspirar, minhas pernas deviam fraquejar. Era assim que eu me sentia quando Eduardo estava perto de me beijar. Mas nada disso acontecia com Marvin humano.
- E se o seu beijo, minha princesa, transformar-me em um príncipe? Afinal, não somos dois sapos?
E se? Eu poderia tentar. Talvez, mesmo que não funcionasse, eu pudesse sentir algo quando o beijasse, algo perto do que eu sentia quando beijava Eduardo. Talvez a solução para esquecê-lo estivesse naquele beijo, no toque dos lábios de Marvin Padilha.
Finalmente tirei minhas mãos do lado do corpo e as coloquei na nuca de Marvin. As duas, rodeando o seu pescoço com meus braços. Então, fui puxada para ainda mais perto, com uma mão na minha cintura, aquecendo-me com o calor que emanava de sua pele, mas não despertando mais reações que isso.
Fiquei na ponta dos pés, me aproximando mais, já que a minha própria altura não era lá essas coisas, quando finalmente senti os seus lábios tocarem os meus.
Estranho.
Essa era a melhor forma de descrever. Os seus lábios amassavam os meus fazendo com que se abrissem, mas não parecíamos sincronizados. Estávamos apenas nos empenhando, dando o melhor de nós para fazer tudo dar certo, mas parecíamos fazer as coisas ficarem ainda mais erradas. Ergui ainda mais os pés, buscando mais contato. Coloquei mais firmeza no meu aperto e no meu beijo,
abrindo a boca, deixando com que a sua língua me explorasse melhor, mas ainda assim, nada aconteceu.
Não havia sequer uma fagulha do que Eduardo despertava. Não havia a menor química.
Isso só podia significar uma coisa.
Fechei os olhos e deixei que a imagem de Eduardo me viesse à mente. Podia ver as suas lágrimas ao me deixar ir embora e o seu sorriso enquanto desenhava para mim no vidro da janela.
Podia até mesmo sentir seus dedos na minha pele, na minha carne humana, inflamando onde tocava, despertando o meu coração e o fazendo bater cada vez mais rápido, cada vez mais errante.
O beijo de Marvin pareceu me levar ainda mais pelo sonho e, de olhos fechados, não era a Marvin quem eu beijava, mas sim Molina. Seus olhos castanhos e suas mãos calejadas pelos lápis, seu corpo quente e protetor, seus sussurros calmos e delirantes.
Aos poucos, Marvin me soltou, ainda me segurando em seus braços, mas deixando com que eu voltasse a apoiar meus pés firmemente no chão. Seus olhos verdes me encaravam com curiosidade, mas seu rosto não estava brincalhão e metido a espertinho como sempre era. Marvin estava sério.
- Não sentiu nada, não é?
Eu não queria mentir, nem tampouco queria ferir os sentimentos de Marvin. Eu gostava de sua companhia, gostava de como ele era um ótimo amigo, mas não podia fingir que ele era Duda.
- Sinto muito por isso, não devia ter levado tudo tão longe... - ele abaixou a cabeça também, se sentindo culpado. Com um aperto no peito, segurei sua mão, colocando-a em meu rosto, depois de beijar a sua palma calmamente, como ele havia feito comigo mesma mais cedo. Eu não podia falar que apesar de não me sentir como ele se sentia comigo, eu ainda era agradecida por todos os seus esforços, por tentar me dar um rumo quando eu não tinha nenhum.
Eu não queria pensar em Eduardo o tempo todo. Não era como se eu quisesse ficar presa naquele amor sem futuro, mas havia algo que me puxava de volta para ele, por mais longe que eu tentasse ir. - É ele, Kitty. Eu tenho certeza de que Eduardo é o único que faz a metade gata e a metade humana entrarem em acordo, para te tornar completa. Posso passar toda a eternidade tentando ensinar-te como ser uma gata, ou nos transformando como loucos, mas isso não teria a menor
serventia. Sempre será Eduardo. Estamos apenas a perder nossos tempos.
Coloquei dois dedos em seus lábios, fazendo-o se calar. Não era assim. Eu poderia esquecê-lo.
Apenas um encontro não definiria nada. Eu poderia me empenhar mais. Eu lhe dera uma, duas chances, mas, agora, apenas precisava que Marvin me desse uma também.
Uma chance, Marvin, e eu faria melhor.
Ergui-me na ponta dos meus pés de novo e ele foi pego de surpresa quando meus lábios tocaram os seus. Mesmo assim, Marvin foi gentil o bastante para me dar a chance que eu pedira silenciosamente, fechando os olhos e me instigando a fazer o mesmo, aproveitando o beijo.
Entretanto, como da primeira vez, não senti nada.
- Desculpe-me. Não posso fazer isso, Catarina. Não posso tocar o seu coração. Eu bem que queria, mas não posso fazer-te completa.
Fui abraçada com força e apertei meus braços ao seu redor, sentindo o seu corpo se moldar ao meu, mas não sentindo nada mais do que o carinho terno e fraternal que emanava de nós dois.
Sincronizados, dessa vez. Marvin era um felino incrível e um humano adorável. Merecia encontrar uma humana, ou uma gata, se assim fosse, que pudesse dar a ele todo o carinho que ele precisava e que pudesse libertá-lo daquela tão terrível maldição.
Mas não era eu.
- Eu disse que faria isso ser mais fácil para ti e tudo o que fiz foi estragar tudo. Eu gosto de você, Kitty, e gosto o bastante para entender que não sou o homem que você precisa, menos ainda o felino. Sinto muito.
Num abraço apertado, dei um beijo em seu peito, onde podia alcançar, e senti Marvin sorrir, sabendo que aquela era a minha forma silenciosa de dizer-lhe que estava tudo bem.
- Continue me beijando assim e posso esquecer que quer aquele ruivo estranho e irei deitar-te nesses lençóis, fazendo você ter as melhores sensações que já sentiu.
Dei uma risada estranha e ele fez o mesmo, conduzindo-me pela sala com carinho, parando a uma distância segura da janela, onde poderíamos ver as estrelas, mas não poderíamos ser vistos por qualquer desavisado que olhasse para cima da praça.
- Há alguma possibilidade de Eduardo ser capaz de acabar com a sua maldição?
Eu estava com a cabeça apoiada em seu ombro e me empertiguei no momento exato em que ouvi a sua pergunta. Como ele sabia que eu conhecia a forma de acabar com a maldição? Arregalei os olhos e ele soube de pronto que eu conhecia a verdade. Ainda assim, fiz que não com a cabeça e ele acreditou na minha resposta, sabendo que aquele assunto me deixava desconfortável.
Ainda com a cabeça apoiada na minha, Marvin começou a contar como o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, havia sido planejado e todos os poréns maçantes que envolviam a construção de um dos lugares mais bonitos que eu já tinha conhecido.
Depois de mais vinte anos contados em vinte morosos minutos, senti a dor da transformação retornar. Afastei-me com dificuldade e retirei a camiseta pela cabeça, devolvendo-a para Marvin, enquanto me curvava de novo contra a parede, buscando alguma posição mais confortável, mas isso era completamente impossível quando se sentia tanta dor. Meus ossos pareciam se quebrar e minha pele ardia com os pelos aparecendo, além do meu rosto, que se retorcia.
Não queria que Marvin presenciasse a minha transformação. Não queria que ele tivesse a prova
máxima de que eu era um monstro, ainda que ele também passasse por tal ato horrendo e desconfortável.
Alguns momentos de humanidade tinham como castigo a mais dolorosa das transformações, como uma forma de evitar que eu quisesse passar por ela novamente e me tornasse humana permanentemente.
Como se eu tivesse qualquer opção!
Quando as palavras eram ditas, eu não tinha como fugir, reverter ou chorar. Tudo o que eu podia fazer era esperar que o tempo passasse e eu atendesse ao desejo daquele que dizia, mesmo sem saber o que realmente acontecia.
Finalmente a dor parou e encarei Marvin, esperando que ele também fosse um gato castanho, mas lá estava ele: alto, moreno e muito humano para o meu gosto. Miei interrogativamente e ele deu uma risada que realmente me assustou.
- Desculpe, minha querida, mas nós mais velhos, temos nossas vantagens. E mais de uma hora de transformação é uma delas.
E assim, Marvin se abaixou, segurando-me em seus braços fortes enquanto descia as escadas, saindo pela porta dos fundos, entreaberta e cheia de materiais de construção do museu, como se nada tivesse acontecido e como se o local não estivesse fechado.
- Não acreditei em você, Kitty. Sei que Eduardo pode reverter a sua maldição e é o que faremos. Você só viverá em paz quando essa sua jura for destruída. Não há nada que eu possa fazer por mim, mas se há uma chance para você, eu a farei ser mais do que uma simples chance. Eu
prometo.
Marvin apenas sorriu luminosamente em resposta ao meu olhar assustado e continuou atravessando o Parque da Independência, determinado a cumprir a sua missão.
- Vamos te fazer livre.
E dessa vez, apesar de todos os quatrocentos anos de decepções e tristezas, eu acreditei.
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Kitty
RomanceATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...