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Proposta.


Ao que tudo indicava, eu era uma péssima influência. Ou pelo menos era isso que Arthur Nogueira dizia enquanto deixava duas tigelas de ração perto da janela, uma vez que Una também começara a achar a paisagem interessante, ou apenas queria me fazer mais companhia do que o recomendável. Agora, ela colava o seu focinho extremamente rosado contra o vidro e mantinha os olhos de cores diferentes sempre brilhando quando o dia estava perto do fim e as luzes começavam a se acender.
Olhando para Una e notando o quanto a vida era simples para ela, pensei que Marvin talvez tivesse razão quando dizia que eu deveria deixar meus sentimentos de lado, ainda que eu me lembrasse dos efeitos da última vez que eu tentara assumir plenamente o meu lado felina. Do nojo de comer ratos e da repulsa de tentar deixar um gato me tocar.
Eu não era felina. Definitivamente.
Tampouco era humana.
E isso era o que me dilacerava o coração. Era justamente o que me fazia tão infeliz. Não ser humana, não ter pernas, lábios ou mãos para fazer Eduardo feliz, ou pelo menos tentar ser uma opção. Porém, eu não era humana e uma hora ou outra seria obrigada a aceitar isso e seguir em frente. Assim que minhas patas parassem de arder, ou não doessem mais, eu começaria uma nova jornada.
- Era de se esperar que depois de quatrocentos anos essa vista ficasse enjoativa, não é?
O susto fez com que eu desse um pulo alto, afastando-me da janela, antes de encarar o dono da voz. Encarei o gato castanho que me analisava como se a sua presença no apartamento de Arthur fosse algo muito normal e corriqueiro.
Talvez ele e Una não se dessem tão bem, já que a gata branca saiu de perto de nós, subindo as escadas para o segundo andar do apartamento, onde ficava o quarto de Arthur, sem sequer olhar para trás.
- Aposto que perguntarás o que eu estou a fazer aqui - falou. Meu olhar deve ter parecido mais irônico do que o comum, já que Marvin riu enquanto se aproximava ainda mais da janela. - Como consegui chegar aqui não é importante, menos ainda como soube onde você estava.
Eu não sabia que percepção Marvin Padilha tinha da situação, porém, eu achava que aquelas perguntas eram muito importantes, sim.
- Eu precisava encontrá-la de novo. Havia diversas coisas que a sua partida repentina impediu-me de dizer.
Já estava preparada para responder que eu não levava jeito para ser uma gata e que não estava interessada em tentar novamente quando Marvin, daquela maneira estranha que ele tinha de me compreender antes que eu pudesse me frustrar por não conseguir dizer, conseguiu ler em minhas expressões exatamente o que eu queria comunicar.
- Eu gostei de você, Kitty. Não apenas por sermos dois amaldiçoados eternos, mas também porque ninguém será capaz de compreender nosso infortúnio como um ao outro. Acredito que este seja um sinal de que poderíamos ser muito bons juntos.
A pata de Marvin tocou a minha e, ao contrário do que eu esperava, não me senti tão incomodada do que quando aquele gato havia me tocado antes. Talvez porque eu soubesse que Marvin era humano em essência, por isso seu toque não fosse repulsivo. Ou porque eu estava carente demais desde todo o acontecido com Eduardo e Alice.
Eu precisava me sentir querida.
Entretanto, por mais reconfortante que o toque de Marvin fosse, não se comparava ao de Duda e ao que ele era capaz de despertar. E odiei-me completamente por sequer compará-los.
- Não desejo ver-lhe ainda mais machucada, Kitty. Esse amor que sente por seu humano ruivo passou dos limites aceitáveis e seguros. Sabes que quanto mais insistir, pior ficará. Seu dono pode ser um bom rapaz, mas nunca se envolverá a uma gata amaldiçoada. Ainda que eu deseje o melhor a ti, minha querida, não quero que desperdice suas esperanças acreditando que ele poderá ser sua salvação, quando não poderá.
Eu sabia disso. E sabia que mesmo que Eduardo fosse meu príncipe encantado, aquele quem quebraria a minha maldição, ele jamais ficaria comigo. Como Daniel, ele me encararia com nojo, me chutaria, me colocaria fora da sua vida.
Fechei os olhos, praticamente podendo sentir os.pontapés e ouvir os gritos de Daniel. E eu nemo amava o suficiente. Com Eduardo aquilo seria ainda pior. Os pontapés e gritos me aterrorizaram, me traumatizaram. Mas com Molina, não era apenas a minha carne que seria ferida, mas meu coração. Ele se desfaria em mil pedaços.
Um carinho delicado foi feito nos pelos da minha pata e encarei elas juntas, sem saber o que esperar daquele contato, antes de voltar meu olhar para a janela.
-É sua decisão, Kitty, se acreditas que observar essa janela durante todo o dia, sentindo pena de si mesma é o que deveria fazer, tudo bem. Porém estou aqui para lhe ajudar. - Marvin falou com carinho. Bufei e tentei retirar minha pata da sua, porém ela estava firme sobre a minha. -Eu a entendo, Kitty. Já amei uma humana.
Meu olhar se afastou do vidro e encarei Marvin, tentando vê-lo como dono de um coração e não apenas como o felino cheio de si. Prossegui o encarando, esperando por sua história, mas não ouvi relato algum. O que ele estava esperando? Eu era uma gata curiosa e pelo que todos sabiam, curiosidade era a maior causa de morte dos felinos.
- Vamos fazer um acordo?
Eu era completamente contra acordos. Eles sempre acabavam com alguém se dando mal. E na maioria das vezes, esse alguém era eu.
- Comes um pouco, bebes o seu leite e eu lhe contarei quem era a humana e como me apaixonei por ela.
Os olhos verdes de Marvin pareciam sinceros e minha curiosidade estava cada vez maior. O gato não parecia ser do tipo que amava alguém e por mais que eu odiasse admitir, havia uma veia romântica demais no meu corpo felino que adorava ouvir histórias de amor. Mesmo as sem final feliz.
- Por favor.
Havia preocupação em sua voz e isso me tocou mais do que eu pretendia assumir. Então, elegantemente, com o rabo bem erguido, afastei-me da janela. Marvin ao meu lado parecia aliviado por eu finalmente ter me rendido e estar prestes a me alimentar. O sol brilhava forte, aquecendo a parte do carpete onde as duas tigelas estavam. Enfiei a cara no pote de salmão e engoli um pedaço, sem muita vontade, fazendo questão de mastigar com a boca bem aberta, sem a menor educação, apenas para que Marvin notasse que eu finalmente estava comendo e começasse a contar o que lhe acontecera.
- Seu nome era Patrícia.
A falta de continuidade no relato me obrigara a tomar um gole de leite, fazendo barulho para provar o que eu estava fazendo e notei que Marvin ainda me encarava, esperando que eu comesse mais do que aquilo. Mais um pedaço e um gole de leite foram necessários antes que eu finalmente pudesse ouvir mais do que ele tinha a dizer.
-A conheci na Vila Mariana. Era madrugada e eu estava transformado em humano, fumando um cigarro, um dos meus poucos prazeres humanos. Patrícia cantava Elis Regina, alto, nervosa, talvez para acalmar a si mesma. Era tarde demais para que uma moça tão bela ainda estivesse nas ruas. - Um sorriso felino se abriu em seus lábios. - Talvez fosse o destino que tenha nos colocado no mesmo lugar. Eu acreditaria se ainda possuísse qualquer fé no destino.
Sua frase me lembrava de Arthur. Ele acreditava que meu encontro com Eduardo fora destino, também. Assim como Marvin, eu não acreditava em destino. Mas sim em carma, e sabia o quanto ele poderia ser cruel. Sentia isso a cada segundo em que meu coração batia por meu ex-dono ruivo e adorável.
- Apaixonei-me assim que a vi. Havia algo de diferente naquela mulher que fazia-me sentir como se eu pudesse ser mais do que um simples amaldiçoado. Assim, comecei a me encontrar com ela em todas as madrugadas, estando no lugar certo, no momento certo. Foi apenas uma questão de tempo até que começássemos a conversar. Sentávamos em um bar, prestes a fechar as suas portas com garçons de caras fechadas, e ali conversávamos por horas. Eu sentia-me completo ao seu lado. Como se fosse forte o bastante para enfrentar qualquer coisa. Desde garçons bravos e cansados aos mil anos de maldição. Já sentiu-se assim, Kitty?
A imagem de Eduardo e eu em sua cozinha, nos beijando, fez com que eu abaixasse a cabeça.
Porque eu sabia exatamente como Marvin se sentia.
- Conhece a história da Princesa e o Sapo? - franzi os bigodes, confusa, mas não pude me lembrar. Viver nas ruas ensinava de tudo um pouco. Bastava saber escutar o que as pessoas tinham a dizer, mas admitia que ainda havia muitas coisas que eu tinha de aprender. - O conto de fadas onde o príncipe é amaldiçoado, transformado em um sapo e apenas com o beijo da princesa pode ser transformado de volta em príncipe, para que possam ficar juntos para sempre. Patrícia tinha uma queda por contos de fadas e esse era o seu preferido. - A tigela de leite foi empurrada em minha direção e depois de receber um olhar ácido de Marvin, me obriguei a beber um pouco mais. - Pensei que era um sinal. Acreditei em destino naquele momento.
O gato ficava observando eu me alimentar, enquanto parecia viajar para outro lugar ao contar sua própria história de vida e azar.
- Em uma de nossas noites, fui ousado o bastante e a beijei. Foi a melhor coisa que fiz em toda a minha existência. Lábios são macios e viciantes, não concordas? - assenti, tentando esconder um sorriso e deixei meu companheiro felino continuar. - Era amor. Passei inúmeros dias na rua, como um gato, mal importando-me com o cansaço e a fome que vinham após a transformação, aguardando ansiosamente a noite chegar para que eu pudesse ser humano uma vez mais, para estar com Patrícia novamente. Eu ainda me recordo de como ela era suave e especial, como fazia com que eu mesmo me sentisse especial. Como se eu pudesse merecer um pouco de amor.
Eu entendia o sentimento. Bem demais, muito mais do que eu gostaria de entender.
- Um dia revelei-me a ela. Contei o que eu era realmente. Deveria ser como a Princesa e o Sapo, não é, Kitty? Eu a beijaria e tudo ficaria bem. Porém, houve gritos, afastamento, lágrimas. Como se eu fosse uma aberração. Se tudo deveria ficar bem, por que então ela chorou e gritou que eu havia mentido? Por que encarava-me como se tivesse nojo de mim e odiasse-me por ser quem eu era?
Podia sentir a dor em suas palavras como se fosse a minha própria dor. Porque, na verdade, era realmente a mesma agonia que eu sempre sentia. Era o meu maior medo. Apenas me deixar revelar novamente para ser machucada, humilhada. Classificada como uma aberração, julgada e excluída.
- Patrícia foi embora e eu continuei a seguindo por vários anos, sem que ela pudesse avistar me. Eu observei como a mulher que eu amava cuidou para esquecer tudo o que havia acontecido. Assisti como ela se casou e teve um filho. Como Patrícia morreu. E essa foi a pior parte. - ergui os olhos para ele, notando que ali estava uma faceta de Marvin que ele certamente não mostrava a qualquer um. Talvez eu fosse realmente especial para ter aquelas informações sendo divididas comigo. - Eu a vi morrer, Kitty. Vi o seu corpo ser colocado em um caixão... E o que mais doeu em minha alma foi saber que não havia nada que eu pudesse fazer. Saber que eu passaria a eternidade lembrando da minha amada, vendo outras pessoas que me importavam, assim como ela, morrerem enquanto eu continuaria. Enquanto eu permaneço. Isso também dói em você?
Sim, doía em mim da mesma maneira. Era cruel ver aqueles a quem se amava irem embora, um a um diante dos meus olhos, e não ter absolutamente nada que pudesse ser feito para trazê-los de volta, ou partir junto com eles.
A eternidade era certamente a pior parte da maldição.
- Foi a partir desse dia que decidi não ser mais humano. As emoções de um humano machucam demais. Eu não as quero sentir nunca mais. E não quero que as sinta. Não quero que se machuque.
Por quê? Por que eu significava algo para aquele gato castanho? Com certeza as perguntas estavam escritas em meu olhar, já que Marvin respondeu:
- Eu realmente não entendo porque gosto de ti. Mas me importo e é por isso que estou aqui.
Você precisa de uma chance e sinto que não lhe foram dadas oportunidades o suficiente. Você precisa seguir em frente e deixar de lado todas essas dolorosas emoções humanas. Eu estarei contigo neste desafio.
Forcei um miado que pareceu uma risada e ele fez o mesmo.
- É de conhecimento público que não sou a melhor companhia existente, mas pense bem... Poderia ser Una a lhe ensinar a ser uma gata. Eu sou sua melhor opção, querida.
Meus miados risonhos continuaram e balancei a cabeça em negativa. Não tinha nada contra a pequena e fofa gatinha no segundo andar, mas tinha certeza de que ela não entenderia o meu problema.
- Eduardo é mortal, Kitty. Ele tem uma vida inteira pela frente e, por mais que me doa dizer isso, você não está inserida nela.
Essa verdade já me era conhecida. Ainda assim, cortou meu coração como uma faca. Eu não estava inserida na vida de Eduardo. Em minhas fantasias, já podia vê-lo se casando, tendo uma vida humana ao lado de Alice, ou de qualquer mulher merecedora de seu coração lindo. Podia vê-lo envelhecendo, indo mais longe e morrendo. Porque era isso o que acontecia com todas as pessoas. Elas morriam.
Diferente de Marvin e eu.
- A decisão cabe a você, Catarina.
E naquele momento eu sabia que era para valer. Podia continuar chorando pela porcaria de destino que tinha, esperando em vão que Eduardo entendesse que Alice não era o seu verdadeiro amor e viesse me levar para ficar ao seu lado. Ou poderia seguir em frente. Ser realmente uma gata, assim como Marvin escolhera.
- Eu estarei ao seu lado. Não somos como o sapo dos contos de fadas, minha cara. Poderemos tentar ter o beijo mágico e em alguns momentos até ter uma ponta de esperança num tocar de lábios qualquer. Porém, jamais seremos mais do que isso: gatos.
As palavras de Marvin só fizeram-me sentir ainda mais estúpida por tentar significar mais do que uma simples gata para Eduardo. Ele podia ter me beijado duas vezes e até ter achado minha versão humana atraente, mas nunca me escolheria a Alice. Ele não trocaria aquela megera pela gata.
Mesmo que as duas versões de mim o amassem enlouquecidamente, nenhuma delas poderia tê-lo.
- Não a deixarei. Eu lhe ensinarei tudo o que precisar saber. Basta decidir se quer ser uma gata ou continuar sendo massacrada por esses sentimentos. - ele se aproximou, tirando as tigelas vazias de perto de nós com as patas. Seu rabo tocou o meu e eu não tive vontade de me afastar. -Eu ainda não entendo porque a aprecio, Kitty, uma vez que você não dá muitas razões para que
alguém o faça. Mas eu gosto de ti, mesmo assim, e quero dar uma chance de te fazer uma gata para que possamos ficar juntos. Não poderemos ter nossos príncipes e princesas, mas ainda poderemos ter um ao outro.
Mais uma vez a sua pata estava em cima da minha, tocando-me com ternura e me dando uma prévia de como seria viver ao seu lado. Abaixei a cabeça até que a minha testa estivesse na curva de seu pescoço. O seu rabo se enrolou no meu e essa foi a minha maneira de deixá-lo saber, silenciosamente, sobre a minha decisão.
Eu não precisava mais encarar a janela para observar o mundo mudar. Eu mesma faria minhas próprias mudanças nele. Para isso eu tinha que me dar a oportunidade. Eu não ganhara uma chance de Eduardo, mas ganhava uma proposta bem tentadora de Marvin. Por que não aproveitar?
Não havia final feliz para mim, de qualquer forma. Gatas como eu sequer poderiam ter um final.
Talvez o destino estivesse à favor de ambos daquela vez e poderíamos dar certo.
- Um dia. Dê-me vinte e quatro horas para mostrar-lhe que podemos ser bons juntos.
Com a cabeça baixa, bastou fechar os olhos para que a recordação dos dedos trêmulos e quentes de Eduardo, me passando para as mãos estendidas de Arthur, me lembrasse que o próprio ruivo havia feito as suas escolhas.
Era hora de fazer as minhas.
- Um dia, Kitty. Eu tenho um ponto positivo ao meu favor: eu jamais lhe machucaria. Eu sei exatamente o que você é, que é o mesmo que sou. Isso pode dar certo, não?
Poderia dar certo? Eu não sabia, mas tinha de lhe dar algum crédito. Nós sabíamos o que o outro era. Sabíamos até onde podíamos ir, porque éramos a mesma coisa. Teríamos o mesmo fim.
Um dia era tudo o que Marvin teria.
Rocei meu nariz no focinho gelado de Marvin, esperando que o destino fizesse o seu melhor por mim, por Eduardo e pelo gato à minha frente. Então, aceitei a sua proposta.

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