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Astuciosa.


Se eu tivesse lábios, certamente estaria sorrindo.
Poderia ouvir as engrenagens do meu cérebro trabalhando, tentando adivinhar o que o estava deixando bravo primeiro.
Talvez pudesse ser a cortina. Oh, sim. Eduardo a encarava como se não pudesse acreditar que os metros de tecido azul aparentemente bem caro estivessem pendurados em tiras assimétricas por todos os lados.
Ou talvez a sorte fosse do edredom, todo bagunçado. Ou ainda dos objetos de seu quarto, espalhados em todas as direções que consegui empurrar com o meu focinho. Eu realmente havia feito uma bagunça incrível e quase me parabenizei pela minha sagacidade.
A maneira como ele olhava para a confusão que eu havia criado me dizia que eu havia ido longe demais. Também dizia que eu havia conseguido o meu intento: ser chutada de sua casa.
Fora realmente uma pena que ele tivesse saído tão cedo do banheiro, do contrário, teria visto o porta retrato da sua maligna ex-namorada em uma porção de pedacinhos. Realmente uma pena.
- Catarina, o que você fez aqui?
O timbre da sua voz causou arrepios por todos os meus pelos e eu já me sentia pronta para ser pega pelo pescoço e colocada na rua, arrastada. Sem nenhuma delicadeza. Porque, na maioria das vezes, era justamente assim que acontecia.
Eduardo podia ser um cara legal e tudo o mais, porém, eu havia passado dos limites e lhe dava total razão para me expulsar de sua casa, na verdade, eu estava implorando para que aquele homem o fizesse. Se fugir não era uma opção. Sempre me sobrava a destruição.
Eu só havia usado essa estratégia uma ou duas vezes, mas o índice de eficácia era de 99%. E este número estava lindamente perto de aumentar. Infelizmente, o meu afeto por Eduardo não me permitira uma bagunça muito dantesca, entretanto podia assegurar que das vezes anteriores, eu conseguira realmente fazer a pessoa se arrepender de sequer ter pretendido me adotar. Eduardo já era carta fora do baralho.
- Por que você fez isso? - ele perguntou com um suspiro. Depois, deu duas passadas de mão no cabelo. Pronto, cara, vai, me coloca pra fora. - Mas tudo bem, aqui é novo pra você e tudo o mais, mesmo que eu realmente gostasse daquelas cortinas.
O olhar desgostoso para as cortinas esfarrapadas não me deu falsas esperanças. Merda, eu mal podia acreditar.
- Não faça isso de novo, por favor, minha linda.
Opa. Calma. Pensa direito, Eduardo. Olha de novo para a cortina. Olha a cortina!!! Coloque-me na rua, homem. Acompanhe-me até a saída. Mas não deixe, de maneira alguma, o meu plano B falhar, por todos os linces, Eduardo.
Em séculos, ele nunca falhara. A não ser esse 1%. Porém, o seu sorriso delicado enquanto me encarava não me deixava alimentar esperanças.
- Vamos arrumar tudo isso amanhã, ok? Por hoje vamos apenas dormir, está muito tarde, minha linda, nós dois estamos cansados. - Como assim, Eduardo? Como meu plano pudera falhar? - Amanhã será um dia melhor e vamos cuidar dessa bagunça toda, ok?
Não, ok não. Não estava nada, nem remotamente, ok. Por todos os gatos pardos! Onde estavam os gritos, onde estava o chute bem no meio do traseiro em direção à rua? Coloquei todo o meu empenho nessa desordem que Eduardo menosprezava, não aceitaria menos que um linchamento como agradecimento.
Mas não recebi sequer um olhar irritado.
Tudo o que o ruivo fez foi jogar a toalha para qualquer canto, colaborando com o plano B, mesmo sem querer, e se enfiar debaixo do edredom já devidamente amassado por minhas patas delicadas. Eu ainda estava pasma. Atônita, na verdade. Como o meu plano pudera falhar? Eu não conseguia acreditar. Não havia um plano C, jamais houvera, mas agora isso se fazia necessário.
Eu precisava de uma tática boa o suficiente para me livrar de Eduardo, aninhado nas cobertas, e evitar que eu pudesse ir longe demais com aqueles sentimentos estranhos que ele despertava dentro de mim.
Enquanto eu pensava, totalmente paralisada, seus olhos castanhos me encaravam esperançosos e, quando não fui capaz de captar a mensagem que eles tentavam me enviar, bastou que Eduardo fizesse um gesto.
Que decadência. Um simples gesto e lá estava eu, deixando que o edredom fosse levantado com suavidade e minhas patas se dobraram por debaixo de mim, me colocando em uma posição confortável para dormir. O que eu certamente não deveria estar fazendo, mas que não fui capaz de evitar, especialmente quando os dedos finos e calorosos de Eduardo começaram a coçar o topo da minha cabeça, fazendo um carinho delicioso nos meus pelos e ajudando-me a esquecer de qualquer resolução que terminasse em fuga.
Eu não deveria gostar tanto de sentir as suas mãos em mim. Nem deveria estar considerando aquela carícia tão boa. Tão malditamente boa. Tão viciante.
A cada toque, meu segredo ficava mais perto de sua exposição e quando isso acontecia, as pessoas nunca sabiam como lidar. Elas fugiam. Elas se decepcionavam e se machucavam. Física e emocionalmente. Eduardo era a única pessoa que eu não gostaria de decepcionar ou fazer sofrer quando finalmente tivesse o meu segredo revelado. E a última pessoa que eu gostaria de ver fugir de mim.
Esse era o motivo pelo qual eu deveria fugir antes, enquanto ainda me sobrava tempo e as emoções não haviam me vencido por completo.
- Você ficou com medo de que eu te desse uma bronca pela sua brincadeira? - sorriu, com os olhos encolhidos de leve pelo sono.
Brincadeira? Ei, cara, eu havia me empenhado de verdade para ter o meu trabalho chamado de brincadeira.
- Sua bobinha, eu jamais brigaria com você por isso. Todos nós fazemos uma besteira aqui ou lá, e você é adorável demais para que eu possa pensar em gritar contigo - um bocejo alto o fez interromper a sua frase e meu coração agradeceu por isso, perdendo o ritmo das batidas, confuso e entregue. - Agora que eu finalmente tenho você, será preciso muito mais que isso para que eu te deixe partir.
Meu corpo foi acolhido por seus braços quentes e seus olhos se fecharam diante de mim, deixando sua expressão calma e serena, como a de um garoto, ainda que, estudando a feição do ruivo diante de mim, pudesse estimar a sua idade em algo perto de vinte e seis ou vinte e sete anos.
Mesmo que eu tivesse interessada, novo demais para mim. Uma diferença de uns 300 anos. Não que idade importasse. Ou que eu tivesse alguma chance de cair no charme daquele adorável rapaz.
Oh, a quem eu queria enganar! Justamente por ser incapaz de enganar até mesmo a mim, que eu tomei a liberdade de me esgueirar para fora do abraço e do calor sublime do edredom azulado e saí da cama, andando pelo extenso corredor, na esperança de que houvesse alguma saída. Qualquer outra.
Durante aquela madrugada, eu não fechara meus olhos. O som dos meus passos era abafado pelo carpete em todos os cômodos e, ainda que tivesse percorrido até o mais escondido dos cantos, não havia encontrado sequer uma chance de escapar dali. Implorei aos felinos celestes que me ajudassem a achar ao menos uma janela ou porta entreaberta que me permitisse sair por ela e me misturar com a noite, escapando de vez de perto do enorme coração de Eduardo Molina, mas não fui atendida. Como sempre.
Pendurada na escada, paralisei observando pela enorme janela, que ia do chão ao teto. Ela mostrava as cores do céu modificando suavemente, se tornando mais arroxeada, e então rosada para começar a dar vida ao amarelo rajado de azul, que dava boas-vindas a mais um novo dia na capital paulista.
Minha mente completamente desperta decidira me fazer sofrer, reprisando todos os momentos mais odiosos da minha vida, lembrando-me como era doloroso quando me deixava render, expondo o que eu escondia tão bem. As lágrimas ficavam presas dentro do meu peito, o tornando ainda mais pesado, e talvez tenha sido justamente essa pressão que tivesse me dado a chance de ter uma nova ideia.
O meu jeito atrevido e arrogante sempre foi o que fizera os humanos se sentirem atraídos. Na maior parte das vezes, cansados da docilidade dos cães, buscando a independência charmosa que era peculiar a nós, felinos, eu era obrigada a tolerar falhas tentativas de ser domesticada.
Prontamente resolvidas com fugas para jamais retornar ou, em casos extremos, a execução do Plano B.
Foi assim que tive a brilhante e astuciosa ideia de um Plano C: Se eu fosse justamente o contrário do que era, me tornando uma gatinha dócil e submissa, meu dono perderia o interesse e não se preocuparia em me trancar, deixando alguma saída acessível para que eu desse o fora dali o mais rápido possível. Partir para um lugar calmo e ermo, distante o bastante do Saborart e os olhos
sagazes de Arthur, estava inserido no plano também.
O dia já havia raiado por completo quando voltei à cama de Duda e comecei a roçar meu rabo em seu rosto, sabendo que logo acordaria. O que realmente aconteceu, já que meu dono me segurou com as mãos ainda fracas, devido ao seu estado sonolento, e me acariciou, puxando-me para tão perto de si quanto fosse possível.
Eu deveria mesmo me sentir tão bem quando o calor de seu corpo passava para o meu? Deveria achar deliciosa a sensação de seus cabelos ruivos e desordenados acariciando os pelos da minha pata? E quanto àquela sensação de querer ficar naquele abraço por toda uma eternidade? Ela deveria existir?
Não. Para todas as perguntas: não! Mexi meu corpo, desconfortável por estar sendo hipnotizada tão facilmente, mesmo que estivesse disposta a colocar o Plano C em prática, mas extremamente despreparada para as coisas tão boas que sentia quando Eduardo estava por perto.
Proximidade era terrível e levava ao apego. E essa era, definitivamente, a última de minhas necessidades.
- Não vá, você está tão quentinha...
Seu abraço se tornou mais apertado e aquilo pareceu reverberar dentro de mim. Talvez o Plano C fosse a pior ideia que eu já tivera. E se Eduardo fosse o tipo de pessoa que apreciava carinho e doçura? Estava meio óbvio que ele era um cara carente além da medida.
Por todos os felinos! Como eu me livraria daquele ruivo? O dono da massa de cabelos vermelhos finalmente se deu por vencido e me colocou com todo o cuidado aos seus pés, coçando minha cabeça delicadamente, antes de caminhar desorientado para onde eu havia aprendido ser o banheiro.
Eu tinha duas horas para fazer aquele plano funcionar. Se em vinte minutos o Plano C não fosse eficaz, eu voltaria para o B, e então para o C, e os intercalaria sem medo. Que se danasse se Eduardo me considerasse uma gata bipolar. Na verdade, eu até esperava que ele considerasse isso como a doença do gato louco e me colocasse para fora.
Um som estranho no andar debaixo chamou a minha atenção e corri, na esperança de encontrar uma porta aberta e passar sorrateiramente pela fresta. Eu estaria salvando a mim mesma de sucumbir ao bom coração de Eduardo e o salvando de partir o tal bom coração quando descobrisse quem eu realmente era.
Porém, quando cheguei à enorme sala, a porta já havia sido fechada novamente e Arthur, dessa vez vestido com uma camiseta branca e com os cabelos molhados, caminhava com calma em direção à cozinha, com alguns legumes e verduras em suas mãos. A lembrança do cheiro delicioso da comida do ex-peladão me fez segui-lo para a cozinha, sendo prontamente notada e recebendo um afago desajeitado, pelo número de sacolas que carregava, e um sorriso luminoso.
- Vamos cozinhar, certo?
O que levava um cara a aparecer às sete da manhã na casa de alguém para cozinhar? Eduardo,
me socorra novamente porque há um cara insano na sua cozinha, ainda que felizmente vestido. Um trauma a menos para a minha vida eterna.
As panelas já eram retiradas dos apoios e os ingredientes se espalhavam pela mesa, numa ordem que apenas Arthur compreendia e parecia adorar, se o sorriso em seus lábios fosse um indicador.
- Madrugou na feira? - riu Eduardo enquanto se jogava na banqueta em frente ao amigo, já respirando fundo e fechando os olhos com prazer ao sentir o aroma delicioso da comida.
- Quem cedo madruga pega os melhores produtos.
- O ditado não é assim.
- Quem inventou o ditado não administrava um restaurante cinco estrelas, amigão.
Os dois começaram a rir e eu os encarei impaciente. Estava tudo muito bom e muito bem, mas já que não vão abrir nenhuma porta pra eu escapar, eu esperava ao menos ser bem alimentada.
Onde estava a minha carne suculenta?
- O melhor de toda a cidade de São Paulo - o orgulho na voz de Eduardo me emocionou e o vi erguer o braço para pegar a embalagem roxa em cima do armário. Bendito seja, salmão.
- Ainda assim, qualquer dia desses vou ter que comentar com algum de seus críticos que por melhor que você seja em seu restaurante, nunca cozinha tão bem quanto aqui.
A risada de Arthur deveria ser objeto de estudo. Como alguém consegue ser tão entusiasmado rindo daquela forma?
- Aqui tenho liberdade para cozinhar pelado. Isso se reflete nos meus dotes artísticos - respondeu o rapaz entusiasmado e seu amigo revirou os olhos. - E não é culpa minha se você mora mais perto do Saborart e das feiras do que eu. Não me sinto nem um pouco culpado em dormir aqui quando saio tarde do restaurante.
Ah! Isso explicava porque ele estava sempre na casa de Eduardo. E também porque ele sentia a necessidade de cozinhar pelado na casa alheia. Explicava... Entretanto, não me convencia a lhe dar nem um pouco de razão. Ainda acreditava que Arthur era completamente maluco. Embora tivesse um toque fenomenal para a cozinha.
Ouvi o cozinheiro murmurar um "que seja" e voltar sua atenção para a elaborada omelete que ele fazia, enquanto meu suposto dono despejava um pouco de ração num pote azul bebê. Não seja tímido, Eduardo, pode colocar um pouco mais. Eu não era do tipo que tinha frescura para comer.
- E o que você decidiu? Vai ficar mesmo com a Kitty?- A pergunta de Arthur fez com que eu encarasse os dois, pouco me importando com o cheiro do salmão invadindo as minhas narinas. Por algum motivo eu estava ansiosa pela resposta de Eduardo.
- Claro, Tui. Eu não vou deixa-la. Eu sinto que ela precisa de mim tanto quanto eu preciso dela. - Seus olhos castanhos me encararam e eu deixei que eles me cativassem por alguns momentos.
- Se o problema é companhia, pode encontrar alguma gata em um pet shop. Um lagarto, uma tartaruga... Não sei.
Sim, Eduardo tinha a escolha de me deixar e arranjar alguém adequado para ele. Algum animal que pudesse corresponder ao seu carinho da melhor forma, sem se retrair a cada toque, sem temer cada palavra que saía da boca de seu dono, desesperado de medo de que seu segredo estivesse por um fio.
- Não. Eu não quero nenhum outro animal, eu quero a Kitty.
Arthur me encarou sorridente, como se essa fosse justamente a resposta que esperava de seu amigo, de uma maneira assustadora, como se soubesse do meu segredo e garantisse, com seus olhos azuis, que ficaria tudo bem.
Entretanto, era mentira. Nada nunca ficava bem. Nunca.
Como em uma epifania, me dei conta de que não havia plano B, C ou qualquer outra letra do universo que fosse capaz de me proteger das emoções que Eduardo despertava. Não havia como fugir, por mais imperativo que isso fosse.
Eduardo me queria.
Aquele homem talentoso, dedicado, carinhoso e gentil, além de lindo, me queria.
E, para meu próprio azar, tinha que admitir: eu o queria também.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora