22

170 20 1
                                    

Descoberta.


Os seus olhos não tinham mudado em nada desde a última vez em que eu o vira. Eles ainda expressavam o mesmo ódio e nojo de nosso último encontro. E ainda que hoje ele estivesse bem mais velho, provavelmente perto dos setenta anos, com os cabelos brancos e diversas rugas vincando o seu rosto antes rosado e juvenil, a sua essência continuava a mesma. Ele ainda era um homem bonito, porém ainda era o homem que me odiara e me considerara uma aberração, mesmo que eu lhe tivesse ofertado o meu coração. Lhe mostrado o meu segredo.
Daniel havia mudado. Porém, eu não. Eu não envelhecera um só dia, uma só hora. Eu continuava sendo a mesma que fora durante aqueles anos em que ficáramos separados. A mesma que eu fora nos anos antes dele.
O choque me calou, matou minha risada, e temi que Daniel fosse imprudente o bastante para fazer qualquer coisa que me denunciasse. Olhei ao redor, avaliando os outros clientes do chique restaurante, esperando que ele não fizesse nada, não naquele momento, não quando eu estava tão perto de ter a minha maldição quebrada pelo homem que eu sempre sonhara.
Por todos os deuses felinos. Não!
Mas antes que o próprio Daniel pudesse se levantar e vir até a nossa mesa, apoiado em uma bengala de madeira muito refinada, todo o restaurante se virou para a entrada, acompanhando a discussão que começava na recepção. Todos ali se calaram, escutando os gritos de uma mulher que berrava com o atendente simpático que nos recebera, que a impedia de entrar, sem reservas, no restaurante.
- Senhora! Senhora! - o recepcionista gritava, correndo atrás da mulher que não se permitia parar. A confusão chamara a atenção até mesmo de Eduardo e eu, que estávamos mais preocupados em segurar as mãos um do outro como se não houvesse amanhã. Ambos encaramos a entrada, nos deparando com Alice, parada no meio do saguão, à apenas alguns metros de nossa mesa, olhando tudo à sua volta, procurando algo. Procurando por nós!
Os olhos frios e escuros escaneavam cada mesa, buscando. Quando ela finalmente nos encontrou, não se deteve, caminhando tempestuosamente até nós. Oh, sim! Porque eu certamente merecia que coisas como aquela acontecessem. Justo naquele momento.
- Então é com essa coisa sem graça e fedendo a tempero que você está me traindo? Oh, Eduardo, eu esperava mais de você.
Como se já não me bastasse ter Daniel há apenas alguns metros, reconhecendo-me, ainda era obrigada a ter Alice causando uma cena no meio do restaurante. O que mais me faltava?
Os seus gritos ecoavam por todo o local e por mais que Eduardo tivesse se levantado, segurado o braço de Alice, sussurrando contido e tentando levá-la para um local onde pudessem conversar mais reservadamente, ela não deixou que ele fizesse qualquer maior movimento para tirá-la dali.
Puxando o braço de suas mãos, ela se aproximou ainda mais de mim, ameaçadora, resolvida em fazer do momento que tinha tudo para ser o melhor da minha vida, em outra experiência ruim para ser remoída em minha eternidade.
- Alice, por favor.
- Olhe bem para ela, Eduardo. Olhe! O que essa fulaninha tem demais?
- O que diabos você está fazendo aqui? Não há mais nada entre nós, por favor, não torne tudo ainda pior.
Seu tom de voz era baixo, mas Alice estava determinada a fazer daquilo um verdadeiro espetáculo. Os clientes certamente estavam entretidos com a baixaria.
- Não sou tão estúpida quanto pareço ser. Eu sabia que tinha uma reserva aqui. Eu sabia que havia um motivo para você estar me deixando! - dramaticamente, Alice se virou para o ruivo e continuou. - Nós fomos feitos um para o outro, Eduardo. Você me ama. Nós vamos nos casar.
Eduardo estava embasbacado demais para responder, por isso simplesmente fez que não com a cabeça, assegurando-a de que ela só podia estar louca, aquela era apenas uma invenção de sua imaginação fértil e maldosa.
- Você não pode estar pensando em ficar com essa garota, Eduardo. Quem ela é? Ela não é ninguém, ela não tem sequer um sobrenome. Ela não é nada.
O restaurante ficou em silêncio, observando algo além de nós enquanto eu continuava encolhida em minha cadeira, ameaçada pela presença de Alice, que continuava me encarando como uma predadora.
- Ela é uma gata! - a voz de Daniel soou alta o suficiente para que todos no restaurante pudessem ouvi-lo, virando-se para ele e observando como a confusão ali ficava maior e mais dramática a cada segundo. Daniel caminhava com dificuldade, pela sua avançada idade, aproximando-se enquanto o silencio ainda reinava no saguão. Até mesmo os garçons estavam parados, esperando o desfecho daquela cena. - Ela é uma maldita gata. Isso não é humano, só está coberta de carne e beleza porque estamos no solstício de inverno.
O desprezo em sua voz, enquanto apontava com desdém para mim, magoou-me além do que eu podia admitir. E eu que achara que Daniel já havia me machucado o bastante. Eu estava enganada.
Eduardo e Alice encaravam o recém-chegado com confusão, achando que se tratava de um maluco se aproveitando da confusão. Mas ele não era louco. Eu era uma aberração.
- Você a encontra. Ela é toda arisca e de repente passa a se comportar. Passa a te deixar encantado, é doce. Eu sei muito bem como funciona, garoto. Você cria amor por ela e, de repente, de vez em quando, aparece uma mulher linda, não se sabe de onde, que não fala uma só palavra, mas te encanta como uma sereia no meio do mar. Eu sei, conheço a história porque aconteceu comigo. Isso é uma aberração, garoto. Fuja enquanto pode.
Eu negava com a cabeça, sem voz devido ao pânico, agora em pé, trêmula, dando calmos passos para trás enquanto mantinha as mãos na frente do meu corpo, negando com elas também.
Era verdade, eu era uma gata. Mas não era uma aberração. Não. Eu não era. Não.
- O que você está dizendo?
- Essa maldita dura para sempre. Ela nunca morrerá! - dizia o velho enquanto golpeava a minha mão erguida com a sua bengala, fazendo com que eu acuasse ainda mais, arrancando sons surpresos de nossa plateia, e então golpeando mais uma vez, fazendo com que eu abaixasse ambas as mãos, dolorida, chocada demais para me defender.
- Essa coisa é uma gata? O senhor está maluco? Ela é só uma prostitutazinha que acha que pode sair por ai roubando o homem das outras. - Alice destratou o homem que tinha idade para ser seu avô e se afastou na minha direção, segurando-me pelo cabelo enquanto eu fazia um som bem parecido com um miado, me afastando de perto dela, mas ainda sendo segura.
Os dois me feriam e Eduardo não sabia o que fazer, contra quem brigar, incomodado com toda a atenção que estávamos recebendo. Sem pensar, segurou Alice, afastando-a de perto de mim, lançando também um olhar gelado para Daniel, deixando claro que a situação estava acabada.
- Este foi o maior absurdo que já ouvi - declarou.
- Duvida? Isso voltará a ser um gato quando o relógio der meia noite. Você tem trinta minutos antes que isso aconteça.
- Certo.
A resposta era simples. Uma única palavra. Mas teve o poder de reunir todo o sarcasmo que eu nem fazia ideia de que Eduardo tivesse. E com um olhar raivoso para Alice e eu, mandou que saíssemos do restaurante enquanto pagava a conta.
- Isso vai destruir você. Eu odeio essa aberração nojenta! - gritou Daniel para Eduardo, que encarou o velho como se pudesse lhe socar a cara se não fosse sua idade e o respeito que esta lhe inspirava. Porém, Daniel não estava livre do olhar furioso de Duda, que virou as costas para ele antes que fizesse algo desrespeitoso como xingar ou bater naquele idoso.
Fui então obrigada a andar ao lado de Alice para a saída, sentindo o olhar de todos sobre mim, me fazendo ainda mais humilhada. As pessoas me julgavam silenciosamente, alguns até sussurrando suas opiniões, tirando suas conclusões, criando suas próprias versões da minha história.
O restaurante tinha um serviço privado de táxis e por isso já havia um, de portas abertas, à nossa espera. Alice entrou nele sem cerimônia e, sabendo que Eduardo desejaria que eu fizesse o mesmo, sentei-me ao seu lado, sem outra opção. A megera continuou disparando ofensas, fazendo com que meu coração se partisse ainda mais e meus olhos se enchessem de água.
Eu sabia que aquilo aconteceria uma hora ou outra. Eu sabia que seria descoberta. Mas jamais imaginara tamanha humilhação. Jamais pensara que criaria tanta esperança para vê-la sendo soprada para longe de tal maneira.
- E você acha mesmo que ele me deixaria para ficar com você? Acha que ele perderia alguém como eu em troca de alguém assim? Como você?
- Você o deixou, o traiu, machucou seu coração e ainda acha que tem algum direito sobre ele? - disparei furiosa, cansada de me calar quando podia dizer tudo o que eu sempre quisera dizer àquela mulher. Estava cansada de escutar suas porcarias e não poder revidar. Ao menos por aquela noite, se Alice queria me ofender, que estivesse preparada para um contra-ataque.
- Eu sou o que você jamais será, sua imbecil. Quantas vezes ele já voltou para mim? Eu só preciso estalar os dedos e Eduardo está de volta. Não se iluda. Nenhuma vagabunda terá o que é meu. Eu nasci para ser rica, para ser uma Molina.
Eu estava prestes a perder toda a minha compostura e me embrenhar no cabelo dela, brigando como uma qualquer, arranhando toda a cara de vadia de Alice, mas antes que eu pudesse fazê-lo, a porta do carro se abriu e Eduardo entrou, nos encarando com raiva.
Meu coração batia acelerado.
O meu medo não residia em perdê-lo para Alice, não de todo. Eu tinha medo de que ele tivesse acreditado em Daniel, que realmente tivesse dado ouvidos à sua história aparentemente maluca, mas verídica.
Por que justo naquele momento? Por que logo quando eu estava tão perto?
O endereço da casa de Eduardo foi rosnado para o motorista que não perdeu tempo em se enfiar pelo transito incessante da cidade de São Paulo, rumo ao destino fornecido.
- Edu... - nós tentamos ao mesmo tempo, mas ante o olhar do ruivo, não prosseguimos.
- É verdade o que aquele senhor disse? Ele te conhece, Catarina?
Eu não podia mentir. Não para Eduardo. Eu o amava demais para fazê-lo. Mas o que eu poderia dizer? Assumir que era uma gata? Fazer com que ele me odiasse para sempre? Eu estava numa situação em que não sabia para onde correr, e ter Alice conosco, dentro do apertado carro, tornava tudo ainda pior.
Ela tinha razão. Quem eu pensava que era para criar esperanças de que Eduardo ficaria comigo? Eu era uma gata amaldiçoada. Eu não era ninguém. Eu não era nada.
Não respondi à pergunta. Apenas escondi meu rosto nas próprias mãos e comecei a chorar.
- Catarina, eu preciso que me responda - dizia ele enquanto o carro seguia.
- Isso é absurdo, Eduardo. Ela não pode ser mais patética do que isso.
A voz de Alice me deu mais um choque de realidade e me odiei por criar tantas esperanças vãs.
Quem era eu para pensar que o meu final feliz estava tão próximo? Nenhum de nós disse mais nada, guardando nossas energias para quando chegássemos em casa e, quando o dinheiro foi entregue ao taxista e Eduardo abriu a porta para nós, eu soube que havia feito uma péssima escolha.
Eu estava na casa de Eduardo.
Eu não deveria estar ali. Faltava pouco para meia noite. Eu tinha de voltar para Marvin e Arthur.
- Eu não... não... - tentei argumentar enquanto entrava em sua casa, empurrada por sua mão posicionada calmamente na base das minhas costas.
- Eu não farei nada de mal a você, apenas preciso saber a verdade.
Sentei-me no sofá, derrotada.
- Você vai me odiar, Eduardo. Não me force a fazer isso, por favor! - meu choro era intenso.
Alice mantinha um sorriso maligno em seu rosto. Aquela era a chance de que precisava. Eu cairia e ela poderia ter sua glória a partir disso. Ela teria Eduardo de volta assim que eu virasse uma maldita gata cinzenta na frente dos seus olhos.
Eduardo teria nojo de mim. Ódio, talvez. Nunca mais iria querer me ver e então ela estaria livre para consolá-lo. Alice o conhecia, saberia a maneira exata de fazê-lo sentir-se bem, sabia quais botões apertar, onde pressionar para tê-lo de volta.
Eu não estaria mais em seu caminho.
- Faltam dez minutos para a meia noite, Catarina. Você ficará aqui para me provar que aquele velho estava errado. Que o que ele disse foi apenas um absurdo.
- Não...
- Você não pode ser uma gata. Seria surreal demais. Se você fosse uma gata, teria de ser Kitty. Isso tem de ser apenas uma coincidência. A droga de uma coincidência! - ele dizia, como se estivesse lendo alto seus pensamentos. E para o meu infortúnio, estava perto demais da verdade. - Você não pode ser Kitty.
Tentei me levantar do sofá, mas sua mão apertou meu ombro, me obrigando a sentar-me novamente. Seu aperto ao meu redor era firme. Eu não poderia fugir.
Sentia muito por partir seu coração. Eu sentia tanto! Mas era exatamente o que aconteceria quando meus dez minutos chegassem ao fim. Eu voltaria a ter bigodes e rabo.
Eu seria odiada, repudiada.
Eu não teria o meu final feliz e teria de ver Eduardo me dizendo adeus da pior forma possível: me jogando na rua. Não seria a primeira vez. Já acontecera antes, quando Daniel o fizera. Eu ainda me lembrava de como doera ver o seu olhar, repleto de nojo e raiva. Ainda me recordava de todas as suas palavras e como me machucava vê-lo me mandar embora daquela maneira.
Porém, doeria ainda mais dessa vez.
Doeria porque eu não amava Daniel como amava Eduardo. Doeria porque eu não teria de dar adeus apenas ao meu final feliz, à esperança partida de ser libertada, à promessa não concretizada de Marvin e Arthur.
Doeria porque eu daria adeus definitivamente à Eduardo Molina e a tudo o que ele representava. Eu seria obrigada a dar adeus ao meu coração.
Eu não conseguia olhar o relógio, na posição em que estava, com Eduardo à minha frente. Mas pude sentir em minhas entranhas o exato momento em que o ponteiro chegou à meia noite. Meu corpo tremeu e senti a dor lancinante em meu corpo.
A transformação tivera início. O meu final feliz tinha um término.
O aperto de Eduardo se soltava, eu me enroscara no sofá, sentindo todos os pontos do meu corpo doerem, arderem, inflamarem e então formigarem. E então, de repente, como sempre, tudo estava acabado.
Os olhos escuros de Eduardo e Alice estavam focados em mim.
Era o fim.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora