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Nomeada.


Cortinas.

Eduardo precisava de cortinas. Urgentemente!
São Paulo até podia ser a terra da garoa, mas quando o Sol decidia castigar pelas manhãs, ele o fazia para valer. E sem nenhuma cortina para parar aquele tirano, as coisas ficavam bem ruins.
Me desenrosquei do peito dele, notando com um prazer confuso que havia deixado seu agasalho preto cheio dos meus pelos, e pulei do sofá, seguindo o já conhecido corredor de volta para a cozinha.
Sol nascido. Hora de partir.
Olhei para trás uma última vez, desejando notar se meu dono temporário estava bem, ou ao menos respirando, e continuei o meu caminho de volta à liberdade. Eu já pajeara Eduardo pela madrugada, impedindo-o de se afogar na própria baba e deixando que ele matasse a sua carência me abraçando por todo o tempo. Esse era um pagamento justo o bastante pelo alimento delicioso que ele me oferecera.
Elegantemente, fui à cozinha, mas quase perdi a última de minhas sete vidas quando cheguei àquele cômodo. Que merda era aquela? Miei alto para deixar claro o meu desconforto e ultraje daquela situação diante de mim. Por todos os felinos! Eduardo, tem um cara nu em sua cozinha. Me socorra!
- Opa! Um gato.
Eduardo, tem um cara nu, mas com uns desenhos bem legais pelo corpo. E ele está me olhando estranho. Depressa!
Os braços dele tinham diversas tatuagens num padrão esverdeado que era bem bonito de se apreciar e me distraía daquela coisa se balançando no meio das suas pernas. Oh, havia desenhos em seu peito também, poucos, todos em preto, mas igualmente interessantes.
Atraentes o bastante para me distraírem e quase me deixar ser pega, uma vez que o peladão estendeu os braços para me levantar e eu pulei de lado bem a tempo de impedi-lo, correndo para o outro lado da cozinha. Ele era louco se pensava que me pegaria naquela situação. Poxa, eu era uma dama, não podia ficar vendo os órgãos alheios daquela maneira. E o decoro? Onde fica?
- Vem, gatinho. Gatinho, gatinho... Pronto! - O maldito realmente conseguiu me pegar quando me encurralou contra a parede perto do armário prateado e eu fiz toda a questão de deixar minhas garras afiadas fincarem em seu braço, arranhando uma boa parte dele. Eu deveria era arranhar aquilo que ele tinha no meio das pernas para ele aprender a cobrir aquela coisa. Pensando bem...
Não. Ele que aprendesse sozinho, porque eu jamais colocaria a minha linda patinha naquilo.
Quando me soltou, cobrindo o braço arranhado com a outra mão, cai de pé no piso frio e o olhei em desafio, notando que o idiota ria de maneira boba. Maluco, certo?
- Entendi, você é uma gata. Uma garota. Bom, desculpe então.
Eduardo, esse cara está me olhando estranho. Cadê você? Acorda, me protege! O estranho tentou fazer um novo movimento para me pegar - talvez fosse um masoquista - e eu corri para o outro lado da cozinha, sendo seguida e começando a ficar nervosa. Mas como se finalmente os deuses felinos tivessem ouvido uma de minhas orações, Eduardo escolheu aquele justo momento para entrar na cozinha, segurando a cabeça com uma expressão de quem sofria uma dor terrível.
Se não fosse pedir demais, eu queria um prato daquela delícia de novo, roupas para o senhor pelado e um bom corte de cabelo também.
- Ressaca das grandes, hein, Duda? - brincou o homem nu, indo para trás do balcão e, finalmente, cobrindo aquela coisa. Ele entregou um copo cheio de um líquido escuro para Eduardo, que se acomodava em uma das banquetas, cobrindo o rosto com as mãos e coçando a barba, devastado. Seu agasalho ainda estava cheio dos meus pelos e eu me senti bem com isso.
Até mesmo eu, uma gata sem dono, aprecio marcar meu território de vez em quando. Não que Eduardo fosse meu território ou que eu quisesse fazer daquela casa meu lar, nem fazer de Eduardo meu dono. Ele já estava desperto e já tinha outra pessoa para olhar por ele. Legal, ótimo, trabalho cumprido. Parabéns aos envolvidos! Tudo o que eu tinha de fazer agora era partir. Eu já deveria estar longe, mas com todos na cozinha e o homem nu tão perto da janela, as minhas chances de fuga eram quase nulas.
- Alice ligou.
Pelo chiado do pelado, aquela era uma ocorrência comum. E muito, muito ruim. Ainda assim, ele deixou que o amigo continuasse o seu relato que não veio até que Eduardo terminasse de tomar o que quer que houvesse em seu copo.
- Por que ela sempre espera eu estar bem para me derrubar de novo, Arthur?
- Porque ela é uma vadia - apontou o pelado, agora conhecido por Arthur, enquanto retirava uma panela de seu gancho e com uma destreza espantosa, começava a preparar algo com um cheiro delicioso. Mas logo notou que Eduardo falava sério e sua expressão mudou de brincalhona para séria. - Eu não tenho nenhum compromisso até o restaurante abrir, quer companhia?
- Não. Eu estou bem. E tem o Jack, agora. Não estou mais sozinho, Tui.
Tui? Um apelido tão deprimente quanto o dono. E espera um pouco. Quem diabos é Jack?
Apenas um olhar de Eduardo denunciou que Jack era eu. Por todos os felinos! Ele ainda não notou que eu sou fêmea?
- Quem é Jack?
- Meu novo gatinho. Ele vai morar aqui agora.
As ações de Arthur pararam repentinamente enquanto ele encarava Eduardo como se ele estivesse louco. Seu cabelo curto e claro refletia na luz e ele parecia não estar realmente levando o amigo a sério, mas meu suposto dono apenas me encarava ternamente, daquele jeito perigoso para a minha sanidade.
- Ele não é ele. É ela. É uma fêmea, Duda.
- Fêmea?
Sua dúvida fere, Eduardo.
- Sim. Ela até me arranhou, acho que não gostou muito de me ver pelado.
Fiquei contente por Arthur ser mais observador do que parecia, mas logo minha atenção voltou para Eduardo que me encarava com atenção, como se procurando algum indício de que eu era, realmente, representante do sexo feminino. Mas, poxa, não estava óbvio?
- Não, não é fêmea.
Aquilo estava começando a me chatear quando meu projeto de dono se colocou de pé e se aproximou. Como assim ele não conseguia notar minha feminilidade de longe? Eduardo, querido, se não tem algo balançando no meio das minhas patas traseiras, então eu era uma fêmea. Simples assim. Não ensinam biologia nas escolas paulistas?
Num gesto rápido, Eduardo fez um carinho na minha cabeça, me distraindo, antes de me erguer pelas patas da frente, me colocando de pé e encarando meus órgãos. Arranhei-o com força, fazendo com que ele me soltasse e cobrisse a mão arranhada. Que ultraje! Que indelicadeza! Estranhamente estava me sentindo mal por arranhá-lo, mas foi ele quem começou. Não se tratava uma dama daquela forma! Encarei Arthur quando sua risada alta ecoou pela cozinha e notei que, mesmo rindo, ele continuava mexendo nas panelas. Hábil.
- Parece que todas as suas mulheres são de personalidade forte, não é, Sr. Molina?
- Não enche - resmungou Eduardo enquanto colocava a mão sob a água fria da pia. Eu achara o seu ato cruel, desnecessário e vulgar. - Eu estava bêbado ontem, achei realmente que ela fosse um macho, estava escuro e... - cansado de se explicar, ele simplesmente enrolou a mão em um pano de prato - Por isso eu dei o nome de Jack. Jack Daniels, entende?
A sobrancelha loira de Arthur se ergueu e eu achei interessante como ele não conseguia esconder as suas emoções. O seu rosto era expressivo demais e era óbvio que ele estava segurando o riso. Isso me fez gostar um pouco mais dele, apesar de ainda não ter colocado alguma roupa para cobrir aquela coisa.
- Me desculpe, querida. Eu não quis ser rude com você.
Eduardo veio em minha direção com a mão ainda enrolada e eu pude notar que ao arregaçar as mangas do seu agasalho para não molhá-las, ele revelou que também tinha uma tatuagem. Não tantas como seu amigo. Apenas uma.
Meus olhos estavam presos naquele desenho e eu não consegui desviá-los por mais que eu quisesse. De todos os símbolos do mundo, Eduardo tinha de escolher justamente aquele para gravar em seu corpo? Sua mão arranhada acariciou o topo da minha cabeça, tentando apressar as minhas desculpas, mas se eu fosse honesta comigo mesma, teria de confessar que já o havia perdoado. E esse era um motivo bom o suficiente para me lembrar de que eu tinha de partir. Isso e a tatuagem.
E a comida, claro. Afinal, quando Eduardo colocou um pequeno pote cheio dela na minha frente, eu não fui capaz de fingir que o aroma delicioso de salmão mexia completamente comigo e não me fiz de rogada antes de enfiar o focinho dentro da tigela.
Modos? Que modos? Talvez fosse estranho alguém que não tinha gatos ter tantos saches de ração em casa. Mas ninguém estava me ouvindo reclamar, estava? Continuei comendo como se não houvesse amanhã e ouvindo a conversa dos amigos acima de mim.
- Já que ela é uma garota, acho que precisa de um novo nome - disse Arthur.
- Estou pensando nisso. Mas a ressaca está grande- reclamou Eduardo e eu ergui os olhos o suficiente para vê-lo se arrastar para a banqueta novamente.
- Me deixe dar um nome para ela, então.
Não. Eduardo, não permita. Olhe bem para a cara dele e diga se ele não vai me dar algum nome estranho e de duplo sentido... Afinal, alguém que cozinha nu na casa de outra pessoa não tem muita coisa boa a oferecer.
- Fique à vontade.
Ergui a cabeça para receber a minha sentença e vi Arthur piscar para mim enquanto colocava o que havia preparado - e tinha um cheiro magnífico, ainda melhor que o do salmão - dentro de um prato na frente de Eduardo.
- Bichaninha!
Nem por cima do meu cadáver! Prefiro ser atropelada na Marginal Pinheiros a receber um nome desses. Eduardo como meu suposto dono, deveria fazer algo para impedir uma coisa dessas.
- Você é maluco se acha que eu vou dar um nome desses para a minha gata.
Obrigada, Eduardo.
- Arranje um nome melhor, então. - A destreza de Arthur com as panelas ainda me deixava chocada. Naquele momento, ele as virava com o que parecia, pelo cheiro, ser doce.
- Quando eu dei o nome da Una foi por causa da heterocromia dela. Isso a fazia ser única.
Eduardo se voltou para mim novamente e sorriu. Eu podia ver em seus olhos castanhos que ele sabia como me chamar e quando ele se voltou para o seu amigo com o mesmo sorriso, Arthur também sabia que eu já estava nomeada. Por isso, apenas esperei que Eduardo saísse de sua banqueta novamente e se ajoelhasse na minha frente. Minha cabeça se ergueu e eu tentei olhar no fundo dos seus olhos, mas não fui capaz, com todo meu tamanho diminuto. Mas não precisei encará-lo por muito mais tempo, porque seus dedos vieram para a lateral do meu corpo em mais um dos seus carinhos malditamente gostosos e me vi erguendo a pata esquerda para segurar em seu braço, entregue de uma maneira que não poderia jamais acontecer.
Quando me dei conta do que estava fazendo, me afastei chegando mais perto da parede e longe o bastante para que seus braços não me alcançassem mais. Realmente me afastando, física e emocionalmente.
- Ei, Kitty. - Meus olhos buscaram os dele no momento em que meu novo nome saiu de seus lábios.
Com um gesto simples, Eduardo me chamou para perto e me senti cativa e submissa como jamais fui, andando até ele. Deixei que meu rabo roçasse em sua pele e adorei a maneira como escapou uma risada de seus lábios, sentindo cócegas com meu afago sem intenção.
- Esse é um bom nome pra você, não é? Kitty! - Seus dedos roçavam a minha cabeça e eu ficava ainda mais rendida. - Tem classe, personalidade e é encantador. Como você.
Fechei os olhos apreciando as suas palavras, sentindo-as me abater e me odiando por me entregar tão facilmente por um punhado de carinho. Há anos sendo ignorada nas ruas, receber tanto em tão pouco tempo estava me abalando demais. Sim, essa era a melhor desculpa que eu poderia arrumar. E a melhor razão para eu dar logo um fim em tudo aquilo e voltar para onde era o meu lugar. Voltar para as ruas.
- Sinto informar, Duda, mas a sua Kitty não vai ficar por muito tempo - declarou Arthur.
Eduardo encarou o amigo que estava apoiado contra o balcão, distraído da sua culinária, para observar a nossa cena carinhosa no chão. Algo no rosto do ruivo deve ter indicado a sua confusão, já que Arthur continuou explicando.
- Kitty é uma gata de rua, ela vai fugir logo. Esses tipos não são domesticáveis, mesmo com todo o carinho e ração, eles não se habituam facilmente em lares.
Mesmo com a deliciosa ração e aquele carinho nos pelos da cabeça, Arthur tinha razão. Eu ainda não compreendia as razões que haviam me feito ficar por tanto tempo, mas sabia que assim que a oportunidade chegasse, eu deveria partir e não olhar para trás. Não era apenas o mais prudente a fazer, como o mais seguro. Para mim. Para Eduardo.
- Talvez ela vá. Todos vão, não é mesmo? Acho que não consigo manter muita coisa por perto. Pessoas, animais... - O tom de voz era ameno, mas senti que algo estava errado quando fui colocada de volta no chão e Eduardo foi para perto da porta que eu ainda não havia notado, oculta do meu ponto de visão pela geladeira.
- Eu ainda estou aqui, não estou? Mesmo depois de todos esses anos? - Arthur sorriu e foi para perto do amigo, se apoiando na dita geladeira, sem se importar com a sua nudez.
-Ver você pelado na minha cozinha não era bem o que eu planejava quando te conheci na quarta série, sabia?
- Justifico que esse é um dos poucos lugares em que eu ainda posso cozinhar à vontade - ele fez um gesto expondo ainda mais aquela coisa e eu praticamente vomitei o que havia comido. Mas logo a seriedade voltou às suas palavras. - Mas o que realmente aconteceu ontem à noite?
- Alice ligou. Disse que sentia a minha falta, que ainda tinha esperança para nós e que sabia que eu a amava... Que a aceitaria de volta. Eu fiquei perdido, Tui, não sabia o que fazer. Fui ao restaurante, mas estava cheio, então parei num bar e bebi algumas. Passei mal e parei num beco, foi lá que achei a Kitty, então voltamos para a casa.
Notei que Eduardo havia deixado de lado do relato todas as suas lágrimas, mas não me manifestei sobre isso.
- De carro? Você voltou para casa de carro? Você é louco, Eduardo? Você poderia morrer. Ou ser preso. Sabe-se lá o quê! Você está sem carteira justamente por isso, seu estúpido.
A bronca fez o ruivo abaixar a cabeça, envergonhado, e Arthur parecer realmente digno de dar um sermão daqueles, mesmo nu e apoiado à geladeira.
- Sinto muito. Eu precisava espairecer. - Explicou-se.
- Da próxima vez, espaireça a pé.
Quando Eduardo ergueu a cabeça novamente, estava sorrindo, agradecido, e eu senti que aquela amizade era mais forte do que eu pensava. Eles pareciam o tipo de amigos que estava sempre ali um para o outro, tempo o bastante para entenderem que broncas significavam o quanto se importavam. Além disso, palavras não eram mais tão necessárias quando conheciam a linguagem corporal um do outro tão bem.
- Alice não merece que você faça isso com você mesmo, Duda.
- A lista das coisas que Alice não merece é grande. Meu amor é uma delas. Mas continuo o dando a ela. Engraçado, não?- Antes que Arthur pudesse dizer alguma coisa, Eduardo abriu a porta. -Acho que preciso desenhar alguma coisa.
Sem terminar o seu café ou ao menos pentear aquele cabelo rebelde, mas macio e amaldiçoadamente atrativo, ele simplesmente saiu para o que parecia ser o jardim.
Arthur se voltou para mim e sorriu, deixando a porta aberta, como se me desse a oportunidade pela qual eu buscava desde que eu entrara naquela casa. Como se soubesse exatamente do que eu precisava. A porta estava escancarada e ele voltara para as suas panelas, cantando o que parecia ser uma música sertaneja, lavando os utensílios sujos e me ignorando. O rapaz deu as costas para mim, como se não quisesse ver quando eu fizesse o que deveria ser feito.
Foi então que tomei o meu rumo. Era hora de ir embora. Foi um prazer conhecer Eduardo, aprender mais sobre a anatomia masculina, comer coisa boa, mas tudo tinha um fim.
Ficar ali era arriscar colocar tudo a perder. Eu me apegaria ainda mais à Eduardo. Uma noite ao seu lado e eu já sentia aquela conexão inexplicável com ele. Outra noite poderia ser um erro sem dimensões. E me apegar me faria ficar, me faria viver ao seu lado e ser a sua gatinha, me fazendo vê-lo envelhecer e eu continuar, vendo-o partir e eu continuar, sozinha. Tendo que começar tudo do zero, de novo, com mais uma pessoa amada na lembrança, mais uma pessoa que partira depois de eu me apegar o suficiente para carregar comigo através dos anos, nas ruas. Mais amargura para me levarem por mais mil anos.
O sol do lado de fora estava estranhamente acolhedor, o que era surpreendente para os padrões paulistas de oito ou oitenta. Então, me deixei aquecer mais um pouquinho antes de me decidir sobre como escalaria o enorme muro que me separava da rua, deixando que as memórias me invadissem e me fizessem lembrar de todas as pessoas que eu já deixara me cativar. Não muitas, mas o suficiente para me fazer sentir a falta delas e, sem querer, deixei-me compará-las a Eduardo.
Ele era carente. Precisava de alguém que estivesse ali por ele, que pudesse lhe dar a certeza de que não partiria do seu lado. E essa não era eu. Talvez pudesse ser Arthur e suas coisas balançantes. Talvez a malvada Alice, aquela que o fazia chorar em becos escuros. Não eu.
Atravessei o quintal e notei uma construção pequena. Uma espécie de edícula, mas muito menor do que uma. Pintada de azul, como era de se esperar. Escutei vindo de lá o som de um lápis sendo firmemente arrastado contra o papel e, mesmo sabendo que aquela era uma decisão estúpida, eu parei à porta, olhando para dentro.
Era o prenúncio da bola. Como no conto da Princesa e do Sapo. Sempre haveria uma bola que me faria ficar ao lado da Princesa, ou Príncipe, no meu caso. E eu já estava cansada de reencenar aquela maldita história milhares de vezes, apenas ficando mais machucada a cada reprise. Eduardo estava sentado em uma cadeira alta, preta e confortável. Com uma prancheta em seu colo, ele rabiscava numa folha um belo rosto feminino. Um rosto que se repetia em vários desenhos espalhados pelo chão e pelas paredes do que parecia ser o seu estúdio de desenho. Então, num acesso de raiva, ele rasgou o rabisco, amassando e atirando para bem longe. Apoiou o rosto nas mãos, os cotovelos sobre os joelhos e começou a soluçar de uma maneira desesperadora.
A dor que ele emanava era quase palpável. Eu senti uma necessidade inexplicável de ir até lá, roçar o meu rabo em sua pele e colocar a minha pata no desenho negro em seu braço, sentindo-me se encaixar no rabisco de uma pata felina marcada em sua pele. Mas me contive. Eu tinha de partir enquanto era tempo. Antes de me deixar apegar.
- Oh, Alice.
Sem olhar para trás, saltei em algumas coisas espalhadas ao fundo do quintal, até ter uma altura boa o bastante para pular para o muro. De lá, foi fácil demais pular para fora, subindo a rua com toda a velocidade com que fui capaz, deixando a vizinhança para trás.
Deixando Eduardo para trás. E, com alguma sorte, as suas novas lembranças também.

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