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Conduzida.


Assim que tive certeza de que Eduardo havia realmente dormido, entrei em seu guarda roupa, certa de que lá acharia exatamente o que estava procurando. Sem pensar duas vezes, puxei o vestido de Alice de dentro do armário, com os dentes, e o arrastei pelas escadas, rezando para que dessa vez a minha transformação fosse silenciosa.
Eduardo merecia um soco no meio da boca. Como ele fora estúpido para proferir as palavras de novo?
E no momento lá estava eu, sentada na azulada banqueta da cozinha, vestindo o vestido que ficara péssimo em mim, longo e bege que me fazia parecer pálida e sem atrativos. Não que eu tivesse muitos.
Meu plano era ficar ali até que a transformação acabasse e eu pudesse voltar à minha forma felina. Além disso, aproveitaria meu tempo sozinha para pensar em alguma maneira de impedir que Eduardo utilizasse Kitty e Humana na mesma frase novamente. Ele não tinha ideia de como o processo de transformação era doloroso para me obrigar a fazer isso por duas noites consecutivas.
Minha sorte fora que a transformação daquela noite foi uma das mais silenciosas que eu já tivera, não acordando nem mesmo Marvin, que estava deitado no sofá da sala, completamente cheio de pelos dele, o que eu imaginava ser a sua noção de vingança ao meu dono.
Aqueles minutos sozinha me permitiam pensar em minhas próximas ações e, por mais que tentasse chegar a uma conclusão, minha mente continuava miseravelmente nublada. A única certeza que eu tinha era de que precisava fugir. Eu estava a apenas um passo de me prender de vez à Eduardo, o que era extremamente perigoso para nós dois.
Desviada dos meus devaneios, escutei passos lentos se aproximando da cozinha e logo notei que eles eram pesados demais para serem simplesmente de Marvin. Eu tinha perdido minha atenção por alguns minutos e não havia mais tempo de me esconder. Eduardo estava no hall e eu sequer o ouvira descer as escadas, de tão perdida em pensamentos.
Tarde demais. Já podia me ver sendo colocada porta afora, como Daniel fizera um dia. Mas, ao invés de já me preparar para a iminente partida, eu só conseguia ficar ali, estática, esperando por Molina.
Continuei imóvel, escutando o aparelho de som da sala ser ligado com cuidado e uma música suave invadir toda a casa. Eu conhecia aquela canção. Uma das preferidas dos cantores desafinados nos fins de semana naqueles barzinhos de esquina. A música era muito boa assim, na
sua versão original.
- Talvez tenha alguma mágica em você.
Minha cabeça se voltou para trás de uma vez. Perdida na melodia e na letra interessante da música, esqueci que Eduardo estava no andar de baixo e que seria questão de segundos até que ele me encontrasse. O que realmente acontecera naquele exato momento.
Sorri, como uma resposta, e não pude deixar de sentir meu coração bater mais forte.
- Eu estava pensando em você quando essa música começou - explicou meu ruivo dono enquanto se aproximava, fazendo-me recuar um pouco em minha banqueta, quase enroscando o pé no vestido longo. - Você realmente me parece do tipo que faz saídas à francesa.
Entendi logo que ele se referia à música e deixei que mais pedaços da composição entrassem em minha mente, fazendo-me fechar os olhos por alguns instantes. Quando os abri novamente, Eduardo estava ainda mais perto e fiz questão de deixar meus olhos baixos, evitando que ao olhar para eles, meu dono fizesse a comparação imediata e percebesse a verdade.
Sua mão grande e cheia de calos nas pontas dos dedos segurou meu rosto, parando tão próximo de mim que seu cheiro intoxicou todos os meus sentidos. Suave, Eduardo levantou meu rosto para que me encarar e seus olhos castanhos brilhavam mais intensamente do que nunca.
- Fiquei preocupado com você. Chegou bem à sua casa ontem? - assenti, afinal, de uma maneira ou outra, Arthur havia aberto a porta para mim naquela manhã e eu havia chego em casa. E notar que eu já considerava aquele lugar como minha casa era realmente preocupante. Sua mão continuava deslizando pelo meu rosto e seus dedos compridos aproveitavam para acariciar a minha garganta, deixando a minha pele mais quente do que o normal e a minha respiração ainda mais
entrecortada. - Esse seria um bom momento para perguntar como você sempre consegue entrar na minha casa sem que eu te ouça ou veja? Eu pago uma fortuna de segurança patrimonial e você a dribla como se fosse uma brincadeira.
Ao invés de parecer bravo, Eduardo ria, e o mero som de sua risada, fez com que eu risse também. Bem, a segurança patrimonial dele estava intacta. Eu sempre conseguia entrar naquela casa porque eu jamais saíra dela.
Aos poucos, nossas risadas foram morrendo e meu ruivo simplesmente ficou ali, encarando-me.
Sem fazer perguntas que eu não poderia responder ou dizer qualquer coisa que eu não poderia comentar. Apenas observando-me com seus cintilantes olhos castanhos enquanto eu sentia me perder e afogar dentro deles.
Outra música começou, mais uma preferida dos desafinados dos barzinhos, e uma das que eu mais gostava de ouvir nas madrugadas. Ao que parecia, uma das preferidas de Eduardo também.
- Vai parecer estranho se eu disser que adoraria dançar com você nesse momento?
Neguei veementemente. Era estranho, se fossemos realmente avaliar a situação, mas eu não me importava. Duda fazia aquilo parecer tão certo que simplesmente apoiei-me em sua mão estendida e, com toda a falta de graça que vinha junto com o meu corpo humano, demorei alguns segundos antes de desenroscar o vestido das pernas e acompanhar meu dono até o meio da cozinha, num espaço aberto que permitiria todos os nossos passos.
- Você sabe dançar, não é? - neguei mais uma vez com a cabeça, com ainda mais força dessa vez, e o ruivo ainda riu. - Como se eu soubesse! Mas não pode ser tão difícil, certo? Apenas me segure com força, eu vou tentar te conduzir.
Meu corpo foi puxado contra o seu com firmeza e seu perfume pareceu ainda mais intenso.
Vários centímetros mais baixa que ele, fui obrigada a apoiar minha cabeça em seu peito enquanto suas mãos apertavam a minha cintura. Meus braços estavam enrolados em torno do seu pescoço, como eu já observara outras pessoas fazerem, e esperei que estivesse correta em minha suposição de como me portar. O queixo levemente barbado de meu dono se apoiou no meu cabelo e mesmo sem ver o seu rosto, podia ter a mais plena certeza de que ele sorria, acima de mim.
- Apenas me acompanhe.
Rodopiamos duas ou três vezes e o vestido atrapalhou um passo mais ousado, mas logo, como uma verdadeira mágica, conseguimos nos colocar em sincronia, movendo nossos corpos com fluidez e leveza, como se fossemos um só. Deixando apenas que a voz rouca do intérprete da
canção nos fizesse pensar com as palavras bonitas daquela música.
Meus olhos estavam fechados e eu podia sentir o coração de Eduardo sob a minha bochecha.
Forte. Lento. Certo. E de alguma forma irracional, meu coração começou a bater no mesmo ritmo, como dois instrumentos afinados, tocando a mesma melodia.
Seus lábios sussurravam a música com um conhecimento surpreendente e suas mãos me
seguravam como se não quisesse, ou pudesse, deixar que eu me afastasse.
Foi quando notei as lágrimas em meus olhos. Elas dividiam espaço com um enorme sorriso,
então não foi difícil notar que elas eram lágrimas boas. Lágrimas de felicidade. Eu, que jamais
havia dançado com alguém em toda a minha existência, naquele momento dançava com o homem
mais incrível e especial que eu já havia conhecido. Dançar com Eduardo Molina era diferente de
todas as coisas que eu já havia sentido.
Ele era meu certo alguém. A música dizia que quando se encontra certo alguém que despertava
em você um sentimento, não se deve resistir, mas se entregar. Então, se a melodia estivesse certa,
eu deveria continuar exatamente onde eu estava. Me entregando, ainda que eu fizesse minha parte
em resistir, em prol do meu segredo e da sanidade de meu dono, ali ainda estava eu.
Entregando-me a um certo alguém que despertava em mim todos os melhores sentimentos.
Como o amor, por exemplo.
Eu sei. Isso era algo que eu realmente não deveria sentir. Sendo uma gata como eu, o melhor
seria me afastar e rejeitar a todo custo. Eu não era aquilo que se entregava a Eduardo naquele
instante, então por que perder tempo sonhando se logo todas as minhas esperanças iriam se
desmoronar?
Afastei-me, ainda que relutante, de Eduardo e este abaixou os olhos, notando que várias
lágrimas se acumulavam em meu olhar. Antes, elas eram realmente felizes, livres pelo calor do
melhor momento que eu já vivera até então, mas elas se tornaram lágrimas tristes e amargas.
E ter Eduardo à minha frente, tão lindo e humano, alheio a todo drama que me envolvia em mais
de quatrocentos anos, fez com que tudo ficasse ainda mais triste, deixando-me despreparada para o
que veio em seguida.
Os dedos quentes do ruivo encontraram as lágrimas que escorriam dos meus olhos. Então, suas
duas mãos seguraram com força a minha cabeça e Duda limpou o meu pranto antes de prender meus
lábios com os seus num beijo doce o suficiente para fazer a minha mente se liquefazer.
Sua boca tocava a minha tão suavemente quanto as asas de uma borboleta tocavam uma à outra.
A música estava terminando, mas seu calor ainda estava em mim, o que fazia com que eu me
sentisse acolhida, sem razões para chorar.
Entretanto, a realidade era mais cruel e mais profunda do que se mostrava ali. - Eu preciso saber o seu nome. Tenho que saber como se chama o certo alguém que está
mexendo comigo dessa forma.
Minha mão foi erguida até tocar o peito coberto pela camiseta de malha preta, sentindo as
batidas do coração dele, agora ainda mais fortes, intensas e vibrantes sob a ponta dos meus dedos.
Aquilo era tão errado que obriguei-me a me afastar e abaixar a minha cabeça. Eduardo estava
se apegando. Não apenas à Kitty gata, mas à humana. Aquilo era tão terrível! Tanto para ele quanto
para mim!
Porque minhas duas metades não brigavam entre si, pela primeira vez em séculos. Dessa vez,
elas estavam em total acordo: ambas queriam Eduardo Molina.
Afastei-me ainda mais, aproximando-me da sala e Eduardo não perdeu tempo em me
acompanhar, tentando segurar a minha mão, mas sendo frustrado no último instante. - Não, espera. Vamos conversar.
Sinalizei minha boca, a tampando, e isso foi o bastante para Eduardo entender que eu era
incapaz de me comunicar daquela maneira. - É, eu meio que já havia notado que você não pode falar - disse o ruivo e suas bochechas
ficaram tão rubras quanto os seus cabelos. Mas ao invés de eu achar a sua expressão envergonhada
estranha, eu só consegui achar o homem diante de mim ainda mais adorável.
Eduardo era perfeito demais para que eu pudesse sequer sonhar que ele poderia ser meu. De
qualquer forma possível.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora