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Desejada.


Eu certamente mataria Marvin Padilha e Arthur Nogueira assim que a primeira oportunidade aparecesse. E com requintes de crueldade, se possível.
Fora uma atitude completamente odiável da parte dos dois pronunciarem as palavras mágicas, e ao mesmo tempo, como se tudo para eles fosse uma grande brincadeira, me deixarem sozinha para passar pelo doloroso processo.
- Suas roupas e maquiagens estão no segundo andar.
Rosnei com raiva, mas nenhum deles pareceu se importar, fechando a porta como se eu não passasse de uma gata mimada. Meu corpo nem se incomodava tanto com a dor das transformações mais, uma vez que eu passava por elas quase diariamente. E, naquele dia, uma segunda feira, o único dia da semana em que o Saborart não abria para o jantar, pensei que poderia ser diferente e eu pudesse ter alguma folga daquele horror que era a transformação.
Bem, eu estava errada, certo?
Quando meu corpo estava livre de pelos e eu podia sentir meus dedos humanos, levantei-me corri para o segundo andar, acreditando que logo os dois conspiradores estariam de volta, tendo se ausentado do apartamento apenas para me dar alguma privacidade. Ao contrário dos vestidos que Arthur e Marvin pareciam me adorar vestindo, hoje havia uma blusa de botões muito bonita em um tom de cor de rosa suave e uma calça jeans escura que eu não tinha muita certeza se serviria em mim.
Não havia me deixado sapatos daquela vez, por isso, depois de vestida, desci as escadas descalça e com os cabelos soltos, já que também não achara nada para prendê-los para cima como eu gostava.
Ao mesmo tempo em que eu chegava ao último dos degraus a porta foi aberta, fazendo-me ter certeza de que os dois espertinhos haviam apenas me dado um pouco de tempo para me sentir confortavelmente depois da mudança. Contudo, não foi a voz de Arthur ou Marvin que ouvi quando a porta foi aberta.
- Tui, cheguei para buscar a caixa que você pediu.
A intimidade que Arthur e Eduardo tinham um com o outro fazia com que deixassem as chaves das casas um do outro em suas mãos sem hesitar. Era por isso que era comum encontrar Arthur nas manhãs na casa de Eduardo, e que o mesmo entrasse no apartamento de Arthur sem precisar bater antes.
Porém, dessa vez, Arthur não estava lá, já que saíra na companhia de Marvin e Una para me deixarem à vontade. Oh, como eu era iludida. Nem sequer pensara que aquilo era um estratagema dos dois malditos para me deixar a sós com Eduardo Molina.
Continuei parada, no mesmo lugar na escada, esperando que ao não ouvir nenhuma resposta de Arthur, ele fosse embora, sem me ver e tornar tudo ainda pior. Depois de nosso encontro e da demonstração de posse de Alice, os meus sentimentos ficaram ainda mais atribulados e toda vez que meus pensamentos tomavam o rumo de Eduardo, imagens dele com Alice se misturavam em minha mente, fazendo meu coração ainda ficar mais despedaçado.
Se é que era possível.
Algo em minha simples respiração deve ter alertado Eduardo sobre a minha presença. Dessa vez não tive outra opção a não ser terminar de descer as escadas e deixar que ele me visse por inteiro, ainda que estivesse descalça e completamente descabelada.
Ele, ao contrário, estava lindo como sempre. Sua camiseta branca estava repleta de pingos de tinta e seu rosto e cabelos também haviam sido atingidos, manchados com diversos pontos verdes, amarelados e cinzentos.
Ao me ver, seus olhos brilharam ainda mais do que o normal, fazendo com que por alguns segundos eu me perdesse na beleza daquela maré castanha e não fosse capaz de mais nada além de assisti-lo apaixonadamente.
- Às vezes me pergunto se você é real.
Eu não queria, mas os meus lábios sorriram, me mostrando que mesmo que eu tentasse não me render àquele homem, o meu corpo o fazia por mim. E foi assim que me vi dando um passo para frente, chegando mais perto dele, que sequer hesitou antes de se aproximar também.
Meu coração batia tão rápido quanto as asas de um beija-flor. Eu podia senti-lo martelando o meu peito sem piedade e acelerando a minha respiração, me deixando como uma tola na frente de Eduardo.
- Você é linda demais, especial demais para ser real. Você é um sonho.
Suas mãos se ergueram, segurando o meu rosto bem perto do meu pescoço e eu me senti derreter apenas por sentir as suas mãos em mim, incendiando o meu corpo inteiro em questão de segundos. Dei mais um passo para frente, sentindo agora não apenas o calor de suas mãos, mas também de seu peito tocando o meu, sujando minha camisa com as gotas de tinta ainda frescas no tecido da sua camiseta.
- Eu não deveria querer você tanto assim. Eu nem sei o seu nome ou porque está aqui, mas esse desejo já está me consumindo... - sussurrou ele bem perto do meu ouvido. Eu sabia o quanto era errada toda aquela situação, mas eu não sabia como resistir.
Ele tinha uma namorada. Eu era uma gata suja. E mesmo assim era como se existisse uma força de atração me puxando para mais perto dele, como se aquela fosse a coisa mais correta do universo. Meus dedos cederam à tentação, finalmente tocando o cabelo vermelho e desalinhado, endurecido com a tinta que grudara nos fios e sentindo um novo sorriso bobo se formar em meus lábios. Oh, Eduardo, como eu sentira a sua falta.
Seus dedos deslizaram do meu rosto até pararem em minha cintura, ambas as mãos, sentindo minha pele através do algodão da camisa. Meus olhos se ergueram buscando os seus e me coloquei na ponta dos pés para poder observá-lo melhor, mal notando que meus seios pressionaram ainda mais o seu peito e que minha boca estava perto o bastante da sua para que ele a tomasse como bem entendesse. Como eu bem desejava.
A sala estava numa semiescuridão. A luz da cozinha e da rua lá fora, que entrava pela enorme janela, eram as únicas formas de iluminação e eu me senti confortável daquela maneira, como jamais me sentira antes.
- Desde que eu a vi novamente, aquele dia, eu não consigo tirar você da minha cabeça. Isso é errado, moça, mas eu não consigo não pensar em você.
Eduardo pensava em mim? A alegria que consumiu meu coração era radiante, minha mente estava tão leve que tudo o que pude fazer foi sorrir largamente, puxando-o para mim, pela gola da camiseta, mal me importando em sujar as mãos. Eu apenas desejava tê-lo cada vez mais perto de mim. Eu tinha de lhe dizer que ele também esteve em todos os meus pensamentos.
Mas não havia como fazê-lo. Os únicos sons que saíam da minha boca eram estranhos e jamais lhe dariam a dimensão do que ele me fazia sentir.
Por isso toquei meu próprio peito, depois minha cabeça e repousei minha mão no peito dele, indicando a partir dos meus sinais que eu também havia pensado nele. Além do saudável ou recomendável. Aparentemente, tudo o que eu fazia era pensar nele.
- Que bom que pensou em mim, também - disse ele com um sorriso, daquela sua maneira fofa, puxando-me para mais perto e deixando seus lábios tocarem os meus de uma forma única e apaixonada.
Eu estava beijando Eduardo Molina.
Meus olhos se fecharam suavemente, enquanto os lábios dele prensavam-se contra os meus, delicadamente, provocando-me a abrir mais a minha boca, dando plena passagem para que ele pudesse me beijar da maneira como nós dois necessitávamos. E eu o fiz.
Esqueci que havia quatrocentos anos de maldição nos separando, deixei Marvin, Arthur e seus planos mirabolantes de lado, deixei até mesmo Alice desaparecer de meus pensamentos.
Era Eduardo me segurando tão docemente em seus braços, me beijando como eu sempre quisera ser beijada. Como se eu realmente valesse a pena. Como se eu merecesse de verdade.
- Como algo tão errado pode ser tão bom? - sussurrou contra meus lábios e eu fui forçada a abrir os olhos, vendo que os seus ainda estavam fechados, mas sua expressão era de contentamento, nem um pouco arrependido de estar beijando outra mulher enquanto a sua namorada devia estar em casa, à sua espera. - Você está confundindo a minha cabeça, me enfeitiçando.
Suas palavras foram amenizadas pelo seu sorriso radiante, enquanto colocava uma das mechas do meu cabelo para trás, tirando-a do meu rosto, afastando-me com cuidado de perto dele.
Sorrindo.
- Eu preciso ir ou vou passar a noite toda beijando você.
Eu não me opunha em nada àquela opção. Mas sabia que em alguns minutos o meu corpo voltaria a ser de uma gata e essa era a última coisa que eu queria que Eduardo visse. Justamente agora que eu podia sentir que não era a única que estava repleta de desejo naquela sala. A forma como seus dedos não deixavam meu corpo e seus olhos brilhavam, mais escuros que o normal, me fazia ter certeza de que eu era desejada.
Antes que pudesse me conter, já estava na ponta dos pés novamente, tentando ter mais um pouco da melhor sensação que inundava meu corpo. O perfume de Eduardo entrava por minhas narinas e me fazia sentir mais viva do que nunca. O seu corpo no meu, trazendo calor e proteção, suas mechas ruivas em meus dedos... Tudo era mais perfeito do que eu poderia sonhar e se eu pudesse fazer um pedido, só pediria que o tempo parasse.
O relógio do universo podia simplesmente quebrar para nos manter nos braços um do outro por toda a eternidade... Para me manter humana e manter Eduardo como meu. Para sempre.
O nosso beijo era lento e apaixonado. Nossas respirações eram entrecortadas e meu coração batia no ritmo do dele, como algo destinado a ser. Como se nada naquele beijo fosse errado. Como o final feliz de uma bela história.
Mas o beijo de Eduardo não me transformava em uma princesa. Logo eu seria um sapo, ou uma gata, melhor dizendo, novamente. Não havia final feliz. Não importava o quanto Arthur e Marvin se empenhassem.
Empurrei seu peito delicadamente e Eduardo piscou por duas vezes até a sanidade retornar por completo à sua mente, fazendo com que o homem sorrisse levemente e desse dois passos para trás, deixando com que suas mãos me soltassem, mas ainda sem desfazer a expressão de contentamento que fazia seus olhos brilharem, lindos.
Seus lábios se abriram e fecharem por várias vezes, até Eduardo perceber que não precisava dizer nada. Eu também não diria nada, por meus próprios motivos, então ficou declarado, mesmo sem palavras, que manteríamos aquele silêncio confortável.
Acenei, timidamente, e ele sorriu largamente, antes de sair, fechando a porta e me deixando ali, completamente rendida e apaixonada. Sentindo-me mais feliz do que nunca, mas ao mesmo tempo como uma tola. Fora apenas um beijo. Em nenhum momento ele prometera que ficaria comigo ou que não amava Alice. Mas ainda assim, a minha imaginação era um tormento e me fazia imaginar uma porção de finais alternativos. Finais impossíveis no qual eu não precisava voltar à minha
forma felina e podia permanecer ao lado do homem a quem eu amava.
Como eu dissera, finais impossíveis.
Diversos minutos depois, a porta se abriu novamente, fazendo com que eu me levantasse do sofá, onde até então eu estivera deitada perdida em pensamentos românticos, para encontrar a dupla planejadora com as expressões mais confiantes possíveis.
- Suponho que seu encontro com o senhor Molina tenha sido muito agradável, não é, Kitty? - disse o chef calmamente enquanto eu sorria, incapaz de negar a felicidade que me preenchia. - Ele está apaixonado, Kitty. Ele quase morreu de ciúmes quando soube que você estava ficando aqui com seu irmão por alguns dias até o apartamento de vocês terminar de ser reformado - Arthur piscou pra Marvin, provavelmente achando que a desculpa que eles haviam dado para a minha presença ali tivesse sido completamente genial. Em minha opinião, ela era apenas ridícula. - Ele vai libertar você dessa maldição felina, Catarina. E você vai curar todas as cicatrizes de Alice e vai libertá-lo da maldição de um amor cruel. Como tem de ser.
Sentei-me de uma vez nas almofadas macias, ao sentir as dores da transformação começar e o processo não demorar a ter início. Como sempre, a mudança foi rápida e logo estava eu em minha forma felina novamente.
- Duda volta amanhã para ver a sua gata. Ele gosta das duas Catarinas, isso é uma coisa boa, não?
Arthur nem imaginava o quanto.
E aquela simples frase, por mais que não devesse, trouxe toda a esperança para dentro de mim.
Talvez, depois de quatrocentos anos, eu finalmente estivesse perto, de verdade, de me libertar da minha maldição.
Eu estava, realmente, perto de ser livre.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora