Eterna, ou quase isso.
Os ajudantes de cozinha nem se preocupavam mais com o gato castanho entrando pela porta dos fundos do restaurante. Menos ainda com o homem ruivo que o acompanhava. Estavam acostumados com o melhor amigo do chef e dono do restaurante. Só não estavam acostumados com os olhos castanhos, antes tão doces, cada dia mais caídos e tristes.
Eles não sabiam. Não havia como saberem.
Mesmo Marvin e Arthur que conheciam a história, jamais saberia o quanto doía em Eduardo.
Eles sentiam a sua dor, sentiam, assim como ele, a falta da gata e da humana, mas jamais sentiriam tanta saudade quanto Eduardo.
Eles não foram obrigados a ver a mulher que amava desaparecer na frente dos seus olhos.
Todas as noites, quando fechava os olhos, se lembrava do sorriso, da expressão de calma no rosto de Catarina. Seus braços abertos, aceitando o seu fim e deixando que a liberdade a consumisse.
Deixando que se desaparecesse, que delicadamente se transformasse em uma poeira brilhante, soprada pelo vento.
- Eu tenho uma reunião com Miguel e Elisa em vinte minutos, é bom que tenha um motivo ótimo para me trazer aqui.
Arthur entregou a colher de pau que mexia o caldo até aquele instante para um auxiliar e limpou as mãos no pano de prato pendurado em sua cintura, aproximando-se do amigo.
Em todos os anos de amizade, jamais vira seu quase irmão tão desconsolado. Desde o momento em que ele voltara do museu, paralisado, em choque, não sabia o que fazer. Nem mesmo a morte de sua mãe havia sido tão dolorosa.
Doía nele ver os olhos castanhos do amigo sempre tão tristes e rasos d'água, mas doía ainda mais saber que não existia nada que pudesse dizer ou fazer para tirar dele aquela tristeza.
Até aquela manhã.
Marvin se enrolou aos seus pés e Arthur sorriu para o gato, seu novo amigo. As coisas não haviam sido mais fáceis para ele. Apesar de se sentir contente por Kitty finalmente ter sido libertada da maldição, Marvin não conseguira esconder mais os sentimentos. Ele amava a gata cinzenta de uma maneira mais profunda do que todos poderiam ter imaginado. Apesar de todo o seu apoio e esforço para que ela fosse feliz ao lado de Eduardo, dentro de si, havia dor por entregar nas mãos de outro alguém a pessoa a quem amava.
E agora estavam ambos sem ela. Eduardo sem a sua humana Catarina, Marvin sem a sua felina Kitty.
Porém, não por muito mais tempo.
Arthur não disse nada, apenas seguiu para a porta de mogno de seu escritório, sabendo que seus dois amigos o acompanhavam e não pode tirar o luminoso sorriso de seu rosto, animado com a certeza de que o mesmo sorriso logo se estamparia no rosto de ambos atrás dele. Abriu a porta e deu um passo para trás, deixando que seus amigos entrassem em seu escritório.
Marvin nunca mais fora humano desde que Kitty se fora. Eduardo não sorrira mais, preso no estúdio, repleto de lápis escuros, desenhando a mesma silhueta felina, os mesmos olhos penetrantes, vezes sem fim.
Afastando-se, Arthur deixou que os quatro tivessem seu momento.
Para todo fim, havia um começo e apenas agora Eduardo se dava conta disso.
Os olhos de Marvin se focaram na gata cinzenta de porte aristocrático em cima da mesa, lambendo a pata com tédio, como se quisesse dizer que já estava cansada de esperá-los. Porém, os olhos de Eduardo estavam presos na mulher sentada na cadeira de Arthur, que apoiava os pés calçados em saltos de verniz vermelhos, com os cabelos jogados para um dos lados do ombro, sorrindo para os dois recém-chegados.
- Vocês demoraram um bocado, hein?
Abaixando os pés, a mulher se levantou e segurou a gata em seu colo, abraçando-a, caminhando até o meio da sala. Era impossível. Mas o sorriso sarcástico no rosto dela era parecido demais com o da mulher por quem se apaixonara. A gata em seu colo era uma cópia fiel de Kitty e isso fez com que Eduardo se sentisse ainda mais perdido.
- Mas... Como?
- Você me libertou da maldição - sorriu ela. - A gata e a humana precisavam ser amadas da mesma forma, serem valorizadas da mesma maneira. Então eu pude voltar para você. Porém, Eduardo, não foi você que amou minhas duas formas. Marvin também soube apreciar a gata autoritária e a humana confusa. Por isso Kitty também voltou.
Era impossível de acreditar, mas era real.
Elas estavam bem ali, na frente deles e pertenciam a eles mais uma vez.
A dor havia acabado, não havia mais porque chorar. Kitty e Catarina estavam bem. Estavam vivas. E eram deles, como deveria ser.
A pequena gata cinzenta pulou do colo de sua nova dona e se enrolou nos pés desta, antes de dar um passo corajoso à frente, apenas um. Ainda era a mesma teimosa arrogante de sempre e podia esperar que Marvin desse o próximo passo.
Um miado fora o bastante. Os olhos de Marvin se arregalaram. Ele a entendera. Ela se comunicara com ele perfeitamente. Com ele. Como felina.
"E aí?" ela dizia. E aí? O que ele faria?
Porém, Marvin sabia, pela primeira vez, exatamente o que fazer. Ele já havia perdido a sua gata uma vez, sabia exatamente o quanto a sua falta era dolorida e o quanto o peso das lembranças, mesmo as boas, era insuportável.
Sua pata castanha se adiantou e antes que pudesse continuar, Kitty estava enroscada nele, ronronando e demonstrando que ela também sentira a sua falta.
Marvin jamais seria capaz de colocar em palavras, ou miados, o quanto sentira falta de tê-la tão perto. E mesmo que pudesse, não admitiria tão fácil, Kitty já era metida o bastante para que deixasse aquela informação escapar.
Então, como num estalo, Marvin soube exatamente pelo que esperara em mil anos. Aquela era a hora de sua escolha. Era ali onde Marvin teria de escolher o caminho de sua maldição. Fora por aquele momento que atravessara o oceano, que viera para um país estranho e vagara por tantos anos. Era por Kitty.
Passara mil anos trocando de formas, sem ser capaz de encontrar algo que lhe desse a certeza de qual forma escolheria. Até que aquela gata chegasse e fizesse tudo em sua vida ganhar, repentinamente, um sentido. Até que ele decidisse quebrar a sua própria maldição e decidisse escolher o certo.
E Kitty era o certo.
Ela era o que fazia tudo valer a pena. A sua gata era tudo pelo que havia esperado. Era com quem escolheria passar o resto de seus dias e, mesmo que ela os fizesse bem difíceis, isso tornaria tudo mais divertido.
Marvin fechou os olhos e pronunciou, com o coração aberto, as palavras que sempre temera pronunciar. Mas dessa vez, sabia que não teriam arrependimentos. Estava pronto. Finalmente.
"Eu escolho a forma felina".
Ainda com os olhos bem cerrados, sentiu uma brisa quente o envolver e sentiu a sua gata se afastar, discretamente, para poder observar melhor o que aconteceria a seguir. Ele não queria ver, mas Eduardo e Catarina estavam observando atentamente uma fumaça dourada envolver Marvin e se encorpar até virar o humano Marvin, perfeitamente delineado diante de seus olhos, sorrindo agradecido para a humana Catarina.
Ele finalmente estava livre.
Agora, Marvin sabia o gosto que a liberdade tinha. Não era doce. Não o mesmo gosto que tinha para Catarina, o gosto do beijo de Eduardo. Sua liberdade tinha o sabor de salmão. O gosto do beijo de Kitty.
Ela o salvara e o libertara. E ele a amava.
A fumaça dourada se dissipou aos poucos até desaparecer, dando por concretizada a escolha, trazendo a mortalidade que Marvin aceitou de bom grado. A mortalidade lhe dava Kitty e não havia nada que Marvin quisesse mais do que a sua gata.
- Ele escolheu e quebrou a sua maldição - explicou a humana. Então, ela se ajoelhou até ficar na altura dos dois gatos, coçando a cabeça dos dois ao mesmo tempo. - Ela voltou apenas por você, Marvin. Ela fará a sua escolha valer a pena.
Kitty faria.
Ele nem precisava que a mulher o dissesse. Marvin sabia que o seu destino estava começando naquele momento. Com uma data de término, agora. Dera adeus à imortalidade no momento em que fizera a sua escolha, mas não precisava de milhares de anos para amar Kitty. Ele era capaz de fazer cada dia valer por mil anos de coisas boas. E enquanto ele a tivesse, teria todas as coisas esplendidas que não conseguira achar em toda a sua vida.
- E o que tem a me dizer, Eduardo?
A voz de Catarina era ansiosa enquanto se erguia, olhando em seus olhos castanhos com seu olhar de gato brilhando, eufórico. Ela tinha plena consciência de que fizera Eduardo sofrer quando achara que não a veria novamente, mas nem ela mesma sabia como a sua maldição terminava e uma vez que estava finalmente terminada, a primeira coisa que fizera fora voltar para o seu homem. Ou, mais exatamente, voltar para os fundos do Saborart, batendo na porta com a gata cinza em seus braços e encarando Arthur Nogueira com um sorriso radiante, sendo imediatamente envolvida num abraço que traduzia toda a sua saudade.
Eduardo a encarou com firmeza.
O que ele tinha a lhe dizer? Que ela o fizera sofrer mais do que Alice, o machucando ainda mais quando achara que finalmente seu coração teria algum conforto? Porém, ele não tinha nada a dizer.
Eduardo Molina conhecia as palavras. Sabia como conjugá-las, encaixá-las perfeitamente numa frase, em diversos idiomas, aliás. E por isso, ele sabia exatamente quando elas não eram o suficiente.
Justamente por isso, ele não disse nada. Não era necessário. Ele tinha outras maneiras de expressar o que seu coração tanto queria dizer. Kitty nunca lhe dissera uma palavra e, no entanto, ele aprendera demais com as suas lições silenciosas. Era hora de calar Catarina e dizer-lhe tudo o que seu coração queria dizer.
Seu corpo se moveu mais rápido do que ele imaginara ser possível e, em questão de segundos, Catarina estava em seus braços e seus lábios se prenderam aos de sua amada, observando-a fechar os olhos, num sorriso, permitindo ser beijada, escutando as batidas aceleradas do coração dele que batia na mesma sintonia do seu. Suas mãos a seguravam como se ela fosse a coisa mais preciosa que ele já possuíra.
O que realmente era.
Catarina era dele. E a realização disso fez com que Eduardo aprofundasse ainda mais o beijo, ignorando o casal de gatos aos seus pés e todos os cozinheiros e clientes do lado de fora daquela sala. O medo que passara quando a vira desaparecer, se fora. A felicidade o preenchia por completo. Sua menina, a sua linda menina, era realmente sua agora.
Por quanto tempo Deus permitisse, mas sua.
Ouvindo seus corações baterem, Catarina não tinha a mínima certeza sobre até que dia eles continuariam palpitando. Agora era finita. Catarina tinha um prazo de validade e isso era surrealmente bom.
- O que me diz?
- Tenho mesmo de dizer algo? - perguntou ele. Catarina assentiu, insistente, seus olhos ainda fechados, seus braços rodeando Eduardo com força, mas uma de suas mãos acariciando sua nuca, roçando os tão amados cabelos ruivos.
- Eu te amo Catarina. E quero que esteja ao meu lado por toda nossa vida. Quero poder te ver envelhecer e estar ao seu lado até que nosso momento final chegue. Quero poder viver o suficiente para te fazer feliz e ser seu pelo tempo que for.
- Eu te amo, Eduardo Molina.
Seus lábios se buscaram novamente num beijo cheio de paixão e saudades que fez os dois corações baterem ainda mais depressa, antecipando tudo o que, dessa vez, poderiam fazer.
- E a única transformação que aceitarei agora é a do seu sobrenome. Em breve espero ter a honra de anunciar para todo mundo que a senhora Catarina Molina é minha esposa.
Ela pulou em seus braços, sem se importar com a risada alegre de Arthur que decidiu deixar os casais, tanto os humanos quanto os felinos, se amarem, fechando a porta do escritório e anunciando na cozinha que o prato da noite seria salmão.
Eduardo beijava a sua futura esposa com pressa. A eternidade não era uma garantia mais. O tempo passava depressa e eles tinham que amar cada segundo, dar cada minuto ao outro e agradecer pelas horas passadas ao lado da pessoa que fizera a sua vida, finalmente, valer a pena. Os seus corpos eram finitos, suas almas talvez também o fossem, mas o amor que sentiam jamais seria. Bem como a sua história.
Em algum lugar, as palavras sobre a gata humana que amou um homem com todo o seu coração perdurariam, sendo contadas para alguém, em sussurros, até que todos acreditassem no poder do verdadeiro amor. Aquele amor que salva, liberta e torna tudo bom e certo.
Aquele mesmo amor que sempre permaneceria, como todo amor deve ser: infinito.
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Kitty
RomanceATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...