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Insistente.


Peixe velho jamais seria a mesma coisa depois de passar 12 horas comendo aquela ração suculenta de salmão. Mas não era como se eu tivesse muita escolha. Sardinha. Quem merecia comer sardinha? Por todos os felinos! Será que não tinha como me arranjarem ao menos atum? Não precisava ser grande, não, só precisava não ser sardinha. Era decadente demais... Um castigo que eu certamente não merecia.
Soltei um som de reprovação e o cozinheiro entendeu que eu estava insatisfeita com o meu menu. Mas quem estaria de acordo com aquilo? Uma dama de qualidade como eu jamais compactuaria com uma situação daquelas. Sardinha velha. Que horror!
Eu até conseguia sentir o sabor da ração de salmão que estaria comendo se estivesse na casa de Eduardo. Porém, da mesma forma que o pensamento surgiu, me esforcei para afastá-lo. Eu estava comendo peixe velho, sim, mas pelo menos estávamos seguros. Eu de sua aura encantadora e do risco de me apegar terrivelmente e ele estava seguro de mim.
- Desculpe, meu bem, mas é só isso que temos hoje - informou o cozinheiro.
Que tipo de estabelecimento era aquele que só podia me oferecer sardinha rançosa? Chame o gerente, cara, ele ouvirá uma reclamação de minha parte. O homem deu de ombros mais uma vez, se desculpando e voltou para dentro do restaurante que já estava bem silencioso.
Era tarde, a maioria das pessoas já estava se preparando para mais um dia e eu estava vagando sozinha pela cidade mal iluminada. E se fosse analisar, esse era um belo resumo de minha vida.
Entretanto, eu não tinha tempo para sentir pena de mim mesma e me ocupei então em comer o meu peixe, bocado por bocado, acompanhado, certamente, de vários resmungos irritados por ter de baixar meu nível daquela maneira, alerta a todos os sons à minha volta.
Pessoas andando apressadas de volta para suas casas, portas se fechando, carros esquentando.
Mais uma noite terminando em São Paulo. E, no momento em que a porta dos fundos do Saborart foi aberta novamente, esperei por mais um pedaço de comida.
Ergui os olhos para receber elegantemente o meu pedaço de atum, de tamanho grande, de preferência, quando fui recebida por um par de olhos extremamente azuis e um braço com diversos desenhos coloridos segurando um enorme saco de lixo.
Droga!
Eu poderia alegar que não o reconhecia vestido, mas seria mentira. Arthur estava parado à minha frente com um sorriso reluzente, esquecendo do saco em suas mãos e me observando atentamente, provavelmente reconhecendo-me também.
Aquele era um bom momento para sair correndo e deixa-lo pensar que o cansaço da madrugada tinha feito com que ele imaginasse que havia me visto, mas não fui capaz. Eu apenas encarei a porta ainda aberta onde um homem de cabelos incrivelmente laranja estava apoiado, esperando o retorno do seu amigo.
- Ei, Duda, olhe quem eu achei!
Quando finalmente meu cérebro pareceu funcionar e eu tentei correr para bem longe, fui pega pelas mãos fortes de Arthur que deixara o saco cair no chão, pouco se importando com ele e me aproximando de seu peito vestido em um dólmã branquíssimo, mas com um delicioso cheiro de comida boa. Os seus dedos fizeram um carinho bom, parecido com o de Eduardo, e eu me perdi nisso.
O ruivo ainda estava apoiado na porta e sorria delicadamente quando Arthur me puxou para ainda mais perto, aproximando-se da minha orelha para que pudesse sussurrar:
- Acredito em destino, Kitty. E se você voltou para ele, mesmo assim, sem querer, é porque tinha de ser. Duda precisa de alguém agora. Talvez este alguém seja você.
Arthur se virou de costas para a rua e me colocou nos braços de Eduardo, que já me esperavam estendidos, como se realmente estivesse ansioso por me ter neles.
Maldito destino, então.
Se era esse tal de destino que me colocara de volta no caminho de Eduardo, ou que fizera com que meu restaurante preferido, que por coincidência tinha um funcionário muito legal que me alimentava com frequência, fosse propriedade de Arthur, eu não queria continuar ali para saber o que mais ele poderia me causar.
Tentei me desenroscar de Eduardo e tudo o que este fez foi me apertar mais forte contra seu peito, me deixando sentir o cheiro delicioso que emanava de seu moletom, azul marinho dessa vez.
Seu perfume inebriava os meus sentidos felinos de uma forma praticamente impossível de resistir.
- Por que você sumiu, garota? Eu estava preocupado. Não faça isso de novo, tudo bem? - Se eu conseguisse me desvencilhar de seu colo, quem sabe eu conseguisse correr para bem longe, me perder de verdade dessa vez e não encontrá-lo de novo nunca mais. Talvez eu corresse até o litoral, onde ninguém me acharia e eu teria o som das ondas para apagar as lembranças ou evitar completamente todas as chances de me apegar a um ruivo de olhos docemente escuros. - Não me deixe mais sozinho, Kitty.
Ergui meus olhos para encarar o seu olhar e acabei por admirar o seu maravilhoso sorriso. Foi o bastante para me lembrar de que aquilo era completamente errado. Eu não deveria me deixar apegar. Não de novo. Desde Daniel, não houvera mais pessoa alguma que conseguira me cativar por tempo o suficiente e então, do nada, Eduardo surgia em minha vida e trazia todos os medos de volta.
- Vamos para casa.
Não, Eduardo. Eu não tinha casa e jamais tivera. E achava que assim estava de bom tamanho para mim, aliás. Se ele me segurasse um pouco menos apertado, então eu conseguiria voltar para o meu lugar: a rua. Por mais que muitas pessoas pudessem pensar o contrário, eu achava que a rua era muito mais segura que outros lugares onde frequentara. Na rua eu não precisava ser mais do que
uma gata.
Eduardo segurou meu rabo, acariciando e rindo suavemente quando meu corpo traidor fez com que ele se enrolasse em seu pulso. Arthur já havia colocado o saco de lixo onde este deveria ficar e nos chamava para dentro do restaurante. Eduardo não pensou duas vezes antes de seguir o amigo, atravessando a enorme cozinha, agora escura, já que o dono do restaurante apagara todas as luzes, deixando apenas a que ficava no hall de entrada.
- Eu vou deixar vocês em casa e vou pra minha. Ver toda essa interação felina me deu saudades da uma - comentou o Chef de cozinha.
Eduardo riu de uma piada interna que eu não fui capaz de compreender e passou pela porta da frente, esperando que Arthur a fechasse. Meu maldito corpo ainda não compreendera que eu não era uma merda de um animal doméstico e continuava sucumbindo aos carinhos de Eduardo.
Droga. Eu não era esse tipo de garota que se permitia ter donos. Ainda assim, o ruivo me fazia pensar duas vezes.
Minha pata achou no braço dele um ponto confortável para se apoiar e quando dei por mim, lá estava eu de novo, com a pata apoiada em cima do desenho que ele tinha tatuado. Era disso que Arthur falava? Seria o destino que levara o meu suposto dono a tatuar, antes mesmo de me conhecer, o desenho exato da minha pata para que, um dia, ela se encaixasse perfeitamente ali?
Segurando-me com firmeza, Eduardo seguiu Arthur até uma esquina onde uma caminhonete branca de um tamanho nada pequeno estava parada. O barulho de chaves vinha das mãos do loiro que destravou as portas e deixou que eu e Eduardo nos acomodássemos primeiro. Ou, como a cena realmente aconteceu, que Eduardo se sentasse no banco da frente, me segurando com força o suficiente para impedir que eu fugisse pela janela entreaberta.
O caminho até a casa de meu imposto dono foi tão rápido quanto da outra vez, ainda que Arthur tivesse escolhido uma rota diferente da que Eduardo escolhera na noite anterior. Mal dei por mim que estávamos em casa até que meu suposto dono abrisse a porta e descesse comigo. Obviamente eu estava recebendo o já conhecido carinho que conseguia sempre me distrair de tudo, inclusive
das minhas prioridades. Fugir e nunca mais voltar deveria ser a primeira delas, mas também parecia ser a preferida em se desfazer sob os toques de Eduardo.
- Te vejo amanhã, Duda. Valeu pela força no Saborart hoje.
Eduardo apenas acenou, mais preocupado em impedir que a sua calça jeans deslizasse demais dos seus quadris e me segurar, ao mesmo tempo em que tentava tirar a chave da casa do seu bolso de trás.
Ele deveria me colocar no chão. Era uma saída perfeita. Pra ambos. Eduardo teria duas mãos para subir a calça, pegar a chave e ainda abrir a porta. E eu teria como começar a correr o mais rápido possível para o mais distante que fosse capaz.
Mas nada disso aconteceu. Arthur arrancou com o carro, fazendo um barulho discreto, e aproveitei a distração que isso proporcionou, junto ao fato de estar sendo segura apenas com uma das mãos de Eduardo e pulei para o chão, tentando pensar rápido para qual caminho fugir.
Que se danasse se Eduardo tinha um corpo quente e protetor, além de um jeito fofo que me atraía completamente. Que se danasse todo o salmão do saquinho colorido. Que se danassem os carinhos. Eu não me deixaria ferir mais uma vez. Eu não feriria mais ninguém.
- Ei, Kitty. Esqueceu para onde fica a entrada, minha linda? - chamou o ruivo.
Minha Linda. Pronto.
E minha resolução desapareceu completamente. Eu estava pronta para partir, mas apenas uma palavra tinha sido capaz de me trazer de volta. Ele segurava a porta aberta, sem ir atrás de mim, me pegando e me levando para dentro contra a minha vontade. Eduardo apenas esperava que eu me decidisse em segui-lo. Ele estava deixando a escolha em minhas patas e apesar de todo o sofrimento que qualquer uma de minhas escolhas, ficar ou partir, traria, eu balancei o rabo e o segui para dentro de sua casa.
Gatos deveriam ser altivos, donos de si, elegantes em todos os malditos casos. Ousava dizer que, em certos casos, éramos até mesmo selvagens e isso era uma qualidade estupenda para nós, os felinos. Entretanto eu, ao simples som da voz de Eduardo, me esquecia de toda a tradição da minha espécie. Quando ele me chamava, eu não era uma gata, era simplesmente dele. Não era o que uma gata deveria ser, eu apenas pertencia docilmente ao meu ruivo dono.
Eduardo subiu o lance de escadas feito de um lindo material transparente e eu o segui, como se essa fosse a ação mais óbvia, observando todos os cômodos da casa do alto, especialmente o carpete creme que se estendia pelo andar inferior, ainda assim com um ou outro tapete azulado completamente decorativo. O azul já era a cara do Eduardo.
De uma forma irracional, eu também conseguia ver aquilo com a minha cara também: pelos espalhados por todos os lados, compridos fios cinza em cima do azul dos tapetes. Demarcando o meu território.
Não que eu tivesse decidido ficar. Eu não ficaria. Seria preciso muito salmão para me fazer permanecer ao lado desse cara, especialmente quando havia tanta coisa em jogo. E a maior delas sendo o meu segredo.
A proteção do meu mistério era minha maior missão, e ter Eduardo me bajulando tão atenciosamente, tratando tão bem uma gata de rua, fazia algo em meu coração derreter e desejar dividir com ele o que eu trancava as sete chaves.
Essa era a última coisa que deveria acontecer. Eu nem sequer deveria passar a noite. Poderia dar uma volta pela casa, conhecer o local e traçar uma rota de fuga. Mas, que merda! Por que era tão complicado concretizar meus planos quando Eduardo me esperava no meio do corredor, com os cabelos ruivos desgrenhados e um sorriso doce que amolecia meu coração mesmo contra a minha vontade?
- Vem, Kitty.
Meu amaldiçoado rabo ondulava ao meu redor, acompanhando Eduardo até o que deveria ser o
seu quarto. A porta foi aberta com cuidado e, como um verdadeiro cavalheiro, ele deixou que eu entrasse primeiro.
Azul.
Aquela era a única coisa que eu tinha a dizer sobre o lugar. Havia desenhos em três das paredes, deixando apenas aquela onde a cabeceira da cama se apoiava com a pintura original. Um azul suave e que me lembrava de uma tarde ensolarada no parque. Do resto, diversos rabiscos, de todos os tipos possíveis, se espalhavam, acumulando-se e deixando o local adoravelmente acolhedor.
Diziam que o seu lar era uma extensão de você mesmo. O quarto de Eduardo era uma prova disso. Um recorte de um rosto com olhos extremamente escuros me deixou nervosa. Não precisava de muito para relacionar aqueles olhos com os que eu havia visto Eduardo desenhando naquela edícula. Um motivo a mais para me levar a fugir.
- O que você achou, minha linda? - ele perguntou.
Oh, de novo com esse elogio... Eu mesma reconhecia que era linda, além de uma nata possuidora de glamour e classe. Ainda assim, não conseguia conter meu coração, sentindo-o bater mais forte quando ouvia sua voz rouca elogiar-me. Toda a mágoa que eu sentia por Eduardo ter duvidado da minha feminilidade havia esvaído. Para meu próprio infortúnio.
Subi na cama, demarcando o meu território mesmo sem querer, sentindo o edredom azul tão escuro que quase chegava a ser negro. O tecido era tão macio que fazia eu querer me aninhar a ele.
Por isso, continuei sapateando pela cama incrivelmente aconchegante até chegar à mesinha de cabeceira, onde blocos de papel se empilhavam junto a um copo onde canetas e lápis dividiam espaço. Entretanto foi o grande porta-retratos, cheio de diversas pequenas fotografias, que chamou a minha atenção.
Uma garota ruiva, basicamente uma versão feminina de Eduardo, fazia careta junto a ele numa das imagens do topo, seguida por uma versão jovem do meu dono acompanhado de um jovem Arthur com cachinhos louros, que segurava uma bola de futebol. Também havia uma imagem que parecia ser dos pais dele e então a foto da qual meus olhos não conseguiam se desviar.
Aquela era a maior das imagens no porta-retratos e, por mais que eu não a conhecesse, o seu olhar já me era familiar. Eles estavam desenhados na parede daquele quarto e em diversos papéis amassados na sala de desenhos. Tudo o que fui capaz de fazer foi invejar.
Invejei suas pernas longas, seus cabelos longos e escuros. Invejei também seus lábios cheios e perfeitos. Mas, acima de tudo, invejei ainda mais a maneira como ela se mantinha firme, em pé, abraçada à Eduardo, sorridente, assim como ele. Fazendo com que eu fechasse os meus próprios olhos, incapaz de continuar encarando a maneira como os olhos docemente castanhos de Eduardo não estavam voltados para a câmera e sim para a mulher ao seu lado.
- Oh, parece que você gostou da Alice.
Errado, meu caro! Eu nunca seria capaz de gostar de uma pessoa que o levava as lágrimas.
Ainda que fosse alguém tão deslumbrante. Eduardo era uma pessoa boa demais para ter o coração feito em migalhas por quem quer que fosse.
Mas agora, depois de vê-la, eu conseguia compreender o quanto a sua ausência o feria. Também entendia porque ele a amava tanto: Alice era linda e seu sorriso era tão luminoso que era um tanto improvável que ela pudesse ser uma pessoa ruim.
- Acho que você pode dormir aqui hoje, eu te arrumo alguma coisa, uma caixa quem sabe, e você vai ficar pertinho de mim - o ruivo anunciou, andando pelo quarto.
Não, Eduardo. Que droga! Ele estava fazendo tudo errado. Estava tornando as coisas ainda mais difíceis para mim. Escute seu amigo, eu não era domesticável. Jamais seria. Eu fugiria dali na primeira oportunidade, e seria cuidadosa o suficiente para que não fosse mais encontrada, ainda que tivesse de tirar o Saborart da minha lista de restaurantes favoritos. Entretanto, valeria a pena.
Não poderia deixar que meu segredo fosse colocado em risco. O que facilmente aconteceria se eu continuasse tão perto daquele ruivo tão gentil.
Deitei-me em sua cama enquanto o observava retirar algumas peças de roupa de dentro do seu armário, provavelmente se preparando para tomar banho. Aproveitando o momento, lambi minha pata, começando a fazer o mesmo.
Banho de gato não era uma das minhas partes preferidas dos meus hábitos felinos, mas absurdamente necessário. Água não era muito o meu forte, por isso eu tinha de me contentar com o que podia fazer. Encher-me de lambidas era uma opção razoável.
- Vou tomar banho, Kitty. Nem pense em fugir, hein, garota, a casa está trancada.
E com essa bombástica informação, ele entrou em uma porta idêntica a do armário, de madeira escura, deixando-me ali, com a língua imóvel em cima da minha pata, atordoada.
Não. Como assim? Trancada como? Como eu iria embora, poxa? Não. Passar mais uma noite na casa de Eduardo era a última coisa que eu deveria fazer. Uma noite já fora o suficiente para me deixar completamente confusa. Duas seria impossível de lidar.
Nem pensar no lado positivo - o delicioso e suculento prato de salmão - compensava tal confusão em minha mente. Eu era realmente grata pela consideração que ele demonstrava comigo, mas precisava encarar a realidade. Eduardo era um cara legal demais para merecer a tal da Alice que o fazia chorar e dirigir sem carteira, ou uma gata de rua suja e cheia de si como eu. Eduardo merecia mais.
E eu merecia uma fuga. Eu não poderia ficar, por mais que uma grande parte de mim desejasse pertencer e ser cuidada, outra entendia o quão destrutivo o meu segredo poderia ser. Por isso, eu sentia necessidade de proteger, não só a mim mesma, mas como a todos a quem poderia afetar com esse segredo.
Para isso, tudo o que eu precisava era de uma janelinha aberta. Qualquer uma, nem precisava ser tão grande assim, eu me apertava, se fosse preciso. Mas ao invés disso, as entidades felinas me deram uma nova saída: uma ideia incrível e infalível.
Caramba! Por que eu não pensara naquilo antes? Ah, é. A promessa dourada de ração havia ajudado a nublar meu lado racional. E, claro, se eu fosse realmente honesta, havia de confessar que o charme de Eduardo Molina também tinha sua parcela de culpa.
Entretanto, dessa vez eu não deixaria que nenhum dos dois me tirassem o foco. Eu tinha uma boa ideia e a colocaria em prática imediatamente. Assim que terminasse, teria a mais plena certeza de que estaria na rua de novo.
Onde era o meu lugar.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora