Cortejada.
Já era perto do horário do almoço, como declarava o meu estômago, quando uma buzina alta e estridente soou do lado de fora, tirando Eduardo de suas divagações, em cima de um caderno de desenho muito rabiscado e obrigando meu dono a ir atender quem quer que fosse a criatura impaciente que o chamava no portão de casa.
A chance era ótima para que eu me mandasse dali, entretanto, o tapete estava tão confortável que não pude me mover. Deitada sobre os pés do meu dono, notei que talvez estivesse perdendo o controle de vez, me comportando como uma submissa animal de estimação, o que eu havia jurado para mim mesma jamais fazer.
Eu culpava completamente a minha transformação pela minha súbita amabilidade e ao cansaço da dor por ficar deitada daquela maneira preguiçosa, sem vontade sequer de fugir.
Não culparia jamais meu coração que estava cada segundo mais rendido aos olhos castanhos e intensos, e às adoráveis sardas no rosto perfeito do meu dono.
- Kitty, minha linda, Marvin chegou.
Oh, droga!
Eu havia esquecido completamente das maluquices de Arthur que tinha a plena certeza de que eu estava na porcaria de um cio. E havia realmente acreditado que ele esperaria alguns dias antes de me fazer encontrar o tal macho. Mas minha ilusão não durara sequer três horas. O maldito cozinheiro havia levado o gato até lá.
O que era aquilo? Cruzada a domicílio? Disk Cruzada? Oh, que situação.
Como a teimosa que era, continuei deitada, chegando ao cúmulo de fingir estar dormindo para que Eduardo não me perturbasse, mas logo a sua risada inundou a sala e não fui capaz de continuar de olhos fechados. Havia algo que me levava a observar Duda rindo, ainda que essa visão fizesse meu coração se apertar com algo desconhecido, porém bom, eu era incapaz de desviar o olhar.
- Você é adorável quando faz pirraça, minha linda.
Eu só queria não reagir daquela forma. Eu queria ser a boa e velha gata independente, mas a cada sorriso, olhar ou simples elogios, sem qualquer esforço de Eduardo, eu me via cativa.
- Thomaz disse que vai deixar o Marvin aqui por hoje e amanhã de manhã vem busca-lo.
Por mim, pode levar de volta. Eu não estou a fim de socializar.
Entretanto, incapaz de me comunicar, apenas resmunguei e tive minha vontade contrariada, já que Eduardo tirou o gato de seu colo e o colocou na minha frente.
- Seja boa com ele, Kitty - disse meu dono. Sua grande mão fez um carinho discreto em minha cabeça, antes de voltar-se para Marvin. - E você seja um bom garoto, Sr. Padilha, faça Kitty gostar de você, cara.
Incapaz de me esconder, uma vez que o já mencionado gato estava na minha frente. Não tive como não encará-lo, notando seus pelos quase escuros, de um marrom intenso que parecia quase chocolate, mesclados com branco, e seus olhos esverdeados que me encaravam com igual firmeza.
Certo, gato. Eu sou Kitty e você não vai conseguir nenhum tipo de comunicação comigo. Agora fique aí, seja um bom garoto como Eduardo lhe instruiu, enquanto eu voltarei à minha caixa para ter uma tarde de sono incrível.
-É um prazer conhecê-la, Kitty. Eu sou Marvin Padilha.
Por todos os deuses felinos. Que brincadeira de mal gosto era aquela? Péssimo gosto, aliás.
Eu não conseguira me comunicar com outro tipo de animal em mais de quatrocentos anos e, do nada, me surgia um gato castanho que conseguia se comunicar comigo de maneira tão compreensível quanto ocorria com um humano. E ainda por cima me entendia, apenas com os meus gestos e expressões faciais? Por quê? Como?E ainda mais com aquele sotaque português que era ao mesmo tempo fascinante e irritante.
- Você não parece ser do tipo comunicativa, não é? -disse o gato enquanto dava uma volta ao meu redor. Eu continuava de queixo caído, encarando Eduardo que nos observava discretamente, parado a uma distância segura. Ele observava os avanços de Marvin sem nem ao menos imaginar que aquilo era mais complicado do que poderia jamais supor. - Não se preocupe, querida, eu serei um cavalheiro e deixarei que recupere sua fala antes de vir até mim. Reconheço que sou bem apessoado o bastante para lhe deixar pasma. Como você já deve saber, nossos donos esperam que nós procriemos. Podemos fazer isso ser bom para nós dois.
Arrogante. Esta fora a segunda palavra que passara pela minha cabeça. Um palavrão digno de estivador foi a primeira.
- Quer que eu deixe vocês a sós, Kitty? - meu dono perguntou ao perceber que eu ainda não havia feito um movimento sequer desde que Marvin Padilha, o arrogante, começara o seu monólogo.
Não. Claro que eu não queria ficar sozinha com aquele desconhecido cheio de si, mas eu adoraria saber como ele conseguia se comunicar comigo quando ninguém mais havia conseguido.
Em mais de quatrocentos anos.
Miei, esperando que Eduardo compreendesse a minha negativa, mas como sempre acontecia, ele entendeu completamente o contrário. Saiu e me deixou a sós com Marvin.
- Você parece nova. Quantos anos tem?
Não é da sua conta. Pulei para o sofá, deitando-me ali, pouco me importando com a minha falta de educação.
- Eu tenho a habilidade de ficar jovem novamente. Por várias e várias vezes. Digamos que eu tirei a sorte grande com Thomaz. Ele sempre tem comida, água e leite. Além de possuir uma casa incrível. Meus conhecimentos sobre tecnologia e atualidades aumentaram significantemente desde que fui adotado por ele.
Grande conto, cara. Mas eu não me importava.
- E você, Kitty? Qual é a sua história?
A minha história? Era longa, triste e cheia de pedaços ruins. Nada novo. Mas sempre assustador e doloroso. Pronto, quatrocentos anos resumido em trinta segundos. - Adoraria escutá-la, já que você parece ter muito a dizer - seu sotaque pareceu ainda mais intenso e eu percebi que já estava cansada de tudo aquilo.
Fechei meus olhos e Marvin se colocou no sofá, ao meu lado. Talvez aquele gato não entendesse o conceito de espaço físico necessário, entretanto eu mostraria a ele. Com minha pata traseira, afastei-o de perto de mim. Tentando deixar bem claro que não estava interessada em proximidade, intimidade ou o que quer que fosse com ele e outro felino.
Talvez com Eduardo. E isso já era horrível o bastante para que eu tornasse tudo ainda pior.
- Eu sou como você, Kitty. Somos incompreendidos. Sofremos por não conseguirmos nos comunicar, ser quem realmente somos ou queremos ser. Porém, eu sou mais velho. Posso te ajudar a passar por isso de maneira menos dolorosa. Como? Eu havia vivido solitária por tanto tempo que nem era capaz de pensar em outro tipo de vida. Sempre pelas minhas próprias leis, acertos e erros que jamais pensara em encontrar alguém que tivesse o mesmo terrível destino que eu para entender o que estava acontecendo.
-Não fique com medo, querida. Talvez você não saiba se comunicar, apenas - Marvin pulou de volta para o chão, andando calmamente na direção da cozinha. - Venha.
E por mais que todos os meus sentidos pedissem para que eu continuasse no mesmo lugar, deixei o receio de lado e saí do meu conforto, acompanhando o seu longo e ruivo rabo até o lado de fora, onde havia uma varanda com diversos móveis feitos de bambu, inclusive cadeiras com estofado de um azul bem claro, quase branco, que pareciam ser macias além da conta.
A
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Kitty
RomanceATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...