Silenciada.
- Sendo assim, acho que está na hora de ambientar a sua nova garota - Arthur ainda sorria, concentrado em rechear a omelete. - Eu trouxe companhia para ela e vou te dar algumas dicas já que você nunca teve um gato.
Eduardo colocou o pote de salmão em pedaços na minha frente antes de confrontar o amigo.
- Isso é mentira. Eu tive o Rupert.
Arthur apontou a espátula para Duda antes de desmenti-lo:
- Mentira o caramba! Rupert era da Amanda, você mal chegava perto do gato da sua irmã. Ele ficava arranhando a porta do seu quarto pra você dar carinho para o pobrezinho e você ignorava o bichano.
A expressão culpada de Eduardo dizia que era verdade e notei que os traumas daquele homem deviam ser piores do que eu pensava. Ele precisava de um psicólogo, não de um gato. Se o senhor Molina pensava que iria compensar algum arrependimento passado com o tal Rupert, tomando conta de mim, então que abrisse a porta porque essa gata estava partindo.
- Eu trouxe a Una. Ela está no carro, não consegui trazer as sacolas e a caixa dela.
- Você trouxe a Una? Está louco? A Kitty vai fazer ela em pedacinhos em dois segundos! - Opa. O que é Una? E que ideia Eduardo faz de mim para pensar que eu seria capaz de destruir essa tal Una? Eu era uma boa gata quando queria, apesar de que ser boa não era uma de minhas maiores vocações.
- Você é maluco. Eu vou lá no carro busca-la.
Assim que Eduardo saiu da sala, Arthur me atirou um cheiroso pedaço de linguiça temperada e não me fiz de rogada, o enfiando inteiro na boca. Modos eram para quem não tinha fome. E, puxa, eu estava faminta!
- Há algo diferente em você, Kitty. Ainda não sei o que é, mas continuo agradecendo a quem quer que seja que te trouxe para o Duda.
Meus olhos estavam arregalados enquanto Arthur continuava demonstrando toda a sua destreza culinária, conversando comigo sem se desligar um só instante de suas preciosas panelas. E não pude deixar de admirá-lo por isso, mesmo que o medo que suas palavras me causaram ainda estivesse correndo em minhas veias.
Como ele poderia saber que havia algo diferente em mim? E como ele poderia agradecer o que havia me levado até Eduardo quando eu mesma repudiava e amaldiçoava o que quer que tenha sido?
- Duda é minha única família, garota, e acho que terei prazer em ter você na família também.
A maneira delicada e suave como ele me olhou, fez com que o resto de coração que eu tinha se partisse em diversos pequenos pedacinhos que coçaram meu peito e trouxeram água aos meus olhos. Eu não queria pertencer a nenhuma família, há mais de quatrocentos anos eu não sabia o que era sentir aquele afeto verdadeiro ou a sensação de pertencer e querer cuidar na mesma medida.
Ainda assim, algo naqueles dois me fazia querer abrir mão de todas as minhas resoluções e dar uma chance a mim mesma de me inserir na vida deles.
Talvez fosse incrível ter Eduardo me bajulando enquanto rabiscava alguma coisa num bloco de desenho velho, ou ter Arthur me jogando um pouco de linguiça quando não tivesse ninguém olhando. Talvez pudesse até conhecer Amanda, a tal irmã de Eduardo, ruiva e idêntica a ele. Quem sabe, ainda, eu pudesse ser o suficiente para preencher o coração de meu dono e ele não precisaria
mais chorar por Alice.
E tão subitamente quanto me deixei partir para o mundo das fantasias, a realidade me atingiu como um tijolo no meio do nariz. Os passos macios chamaram a minha atenção e continuei sentada, virando a cabeça para trás e dando de cara com uma sofisticada gata branca, com uma delicada coleira cor de rosa, e uma expressão completamente amistosa.
Eu não podia entrar na vida de ninguém, porque assim que eu entrasse, eu a estragaria permanentemente. Eu era uma bomba, meus segundos até explodir estavam contados.
Arthur e Eduardo não mereciam isso. Não me mereciam.
- Kitty, essa é Una, a pequena companheira do Tui.
Finalmente se afastando das panelas, Arthur se aproximou, parando orgulhoso ao lado do amigo que fizera as apresentações.
- Una, seja gentil com a Kitty e a cumprimente.
Oh, droga.
O desespero começava a tomar conta de mim antes mesmo de me colocar em quatro patas, encarando a gata com receio. Socializar não era muito bem o meu forte. Por muitos, muitos, muitos motivos.
Em primeiro lugar, porque eu não era o tipo de felina que se socializa com qualquer tipo de gata desconhecida. Pior ainda com uma gata de Arthur, o cozinheiro nu. Por todos os tigres, sabe-se lá o que aquela pobre coitada já havia testemunhado. Certamente era uma traumatizada.
Una aproximou-se um pouco mais e seu rabo quase tocou o meu. Por puro reflexo, encolhi o meu, colocando-me sentada para deixar mais espaço entre nós, especificando que não queria nenhum tipo de contato.
Eduardo por sua vez, não moveu sequer um músculo para me livrar daquela situação. Pelo contrário, parecia estar esperando que eu começasse minha socialização. Una se aproximou de novo e eu não consegui desviar a tempo de ser tocada. Saco! Eduardo me segura porque essa aqui está querendo amizade, me livre desse constrangimento.
Os dois homens estavam parados ao nosso lado, de braços cruzados. Eles esperavam alguma atitude de minha parte, como se estivessem apostando em alguma estúpida briga de cães de rua. E não me restava nenhuma dúvida de que Duda tinha alguma certeza de que eu iria destroçar Una assim que pudesse.
- Achei que Kitty ia ser violenta, mas parece que as duas vão se dar bem - comentou Arthur.
Ah, então Eduardo não era o único que apostava a meu favor.
Por favor, pelo amor que você tem na Alice, porque amor próprio você já provou que não tem, Eduardo, deixe que eu vá embora. Não bastava tudo o que eu tinha de lidar dentro de mim, eu ainda era obrigada a conversar com uma gata estranha? Eu não merecia esse tratamento.
- Espero que Kitty se sinta bem com Una, quem sabe ela fique mais confortável e não fique fugindo de mim.
Era ali que estava o erro. Eu não deveria decidir ficar. Eu não deveria nem sequer estar ali naquele momento.
Arthur preparou duas tigelas de leite e colocou à minha frente, chamando a atenção de Una e a trazendo para mais perto, deixando a gata branca quase colada em mim. E se ela tivesse germes? Oh, o que eu estava falando? A gata de rua ali era eu, hipoteticamente, a suja era eu.
Una me encarou e seus olhos, um verde e outro azul, captaram a minha atenção. Ela era diferente e tão linda. A sua aparência era serena e delicada. Domesticável por completo e tão simpática que por alguns segundos me senti mal por não poder ser como ela. Um ronronar estranho escapou de sua garganta. Opa. Será que a gata de Arthur era lésbica? Sem preconceitos, na verdade, eu nem me surpreenderia se a coitadinha fosse traumatizada e depois de tanto ver aquela coisa balançante de seu dono ela quisesse ampliar seus horizontes.
- Parece que elas estão conversando - notou Duda.
A cabeça de Una se movia, como se ela estivesse tentando se comunicar e vários sons escapavam de sua garganta, tentando me fazer responder aos seus estímulos e não tornar aquilo um monólogo.
Porém, era impossível.
Eu tentei responder, mas não pude passar de uma tossida por uma bola de pelos presa em minha garganta. Eu não poderia jamais responder ao ronronar ininterrupto de Una. Eu jamais respondi a alguém. E essa era uma grande parte do meu segredo.
Insistente, Una tentou de novo. Até miou, alto, claro, me obrigando a miar de volta, o que eu fiz, esperando que ela entendesse o meu problema e parasse de tentar manter uma conversa que eu jamais conseguiria dar continuidade.
- Olha só, Duda, a Kitty tá se fazendo de superior. Poxa, a sua gata é uma figura - riu.
A panela no fogão fez um chiado e Arthur logo voltou para perto delas, levando Eduardo junto, ambos contentes com a aparente comunicação entre Una e eu. Aparente.
Pois aquilo era tudo, menos uma comunicação. Quando se há comunicação, pressupõe-se que uma pessoa compreende o que a outra está falando. E isso não acontecia comigo em circunstância alguma. Eu não era capaz de entender nada que Una dizia e certamente ela me compreendia menos ainda.
Não havia nada de errado com Una. Na verdade, eu estava honrada com seus esforços em começar uma conversa, mas o problema estava em mim. Era eu quem não conseguia me comunicar com nenhuma espécie animal. Gatos, cachorros, tartarugas, pombas de praça. Nada.
Por algum motivo estranho, eu era capaz de compreender apenas os humanos, me fazendo crer que talvez a minha parte humana fosse maior do que a felina. O que não me valia de muita coisa, já que eu ainda era incapaz de proferir qualquer coisa coerente para qualquer espécie.
Una me encarava com tristeza e a pena que ela expressava me deixou enfurecida. Eu não queria comiserações de ninguém, eu gostaria apenas de ir embora dali. Será que ninguém entendia? Tentei
contornar a tigela de leite e atravessar o caminho da gata branca, mas ela me parou, se colocando à minha frente, os olhos cheios de emoção, como se me pedisse para esperar, para tentar de novo.
Eu havia aprendido há muito tempo a não criar esperanças. Una era uma tola se achava que tentar mudaria alguma coisa. Em quatrocentos anos, nenhuma palavra saiu da minha boca, em todos aqueles malditos anos, não houve um dia em que eu não quisesse voltar no tempo e reverter tudo. A dor de não ser capaz de ser compreendida, de viver no silêncio para sempre me matava, me tornava uma massa fraca de sentimentos.
E eu odiava ser fraca. Odiava sentir pena de mim mesma. Odiava reconhecer que eu não era nada do que me fazia aparentar: não era uma altiva e elegante gata, alheia a sentimentos, cheia de classe. Eu era só uma gata suja, eterna e silenciada.
Ignorei o seu pedido mudo e subi as escadas transparentes, cega de desespero. Eu precisava
partir imediatamente e esperava que Eduardo tivesse esquecido a janela de seu quarto aberta para que eu pudesse me jogar de lá e partir para nunca mais ser vista. Pular do segundo andar não era uma queda tão grave perto das que eu sofrera ao longo dos anos.
Viva às minhas sete vidas!
Quando cheguei à porta do quarto de Eduardo, notei Una atrás de mim. Gata burra! Ela já havia notado que eu não falaria com ela, então por que diabos ela continuava me seguindo? E a frustração não terminava nunca, já que ao olhar para dentro do cômodo, notei imediatamente que Eduardo havia sido cuidadoso: nenhuma janela aberta.
Não me deixei perder a fé e continuei percorrendo os quartos, entrando de cômodo em cômodo buscando a janela sagrada, me irritando mais a cada persiana fechada. Eduardo estava determinado em não deixar a sua pobre gatinha fugir.
O que era demasiadamente tolo da parte dele. Se Duda fosse um cara inteligente, iria me mandar embora enquanto ainda tinha tempo, antes que se apegasse, antes que eu me deixasse cativar e todo aquele drama que eu conhecia muito bem. As coisas não seriam nada fáceis se ele descobrisse meu segredo. Eu não queria ferir mais ninguém.
A cada janela completamente cerrada, Una emitia um som atrás de mim, certamente esperando que eu me desse por vencida e respondesse. O que jamais aconteceria.
Rendida, voltei à cozinha, onde Arthur e Eduardo degustavam o que o loiro havia preparado,
rindo de alguma piadinha interna, completamente alheios às gatas aqui.
Una colocou sua pata em cima da minha e eu a encarei profundamente. Ela parecia ser realmente uma boa gata, bem cuidada, amada, quase me senti lisonjeada por vê-la perder seu tempo comigo. Entretanto, isso era tudo o que ela estava fazendo. Perdendo o seu tempo.
A sua pata tocou meu focinho e depois tocou seus olhos, tentando usar de gestos para demonstrar que ela também era diferente, que assim como eu não era capaz de falar, ela também tinha algo de diferente em si, no seu caso, os olhos um de cada cor. Seus olhos se ergueram para Arthur e a maneira afetuosa como encarou seu dono me deixou emocionada. Mas esforcei-me para não demonstrar.
Ela não compreendia que para ela era uma sorte pertencer a alguém que cuidava tão bem dela quanto Arthur aparentemente fazia. Era uma sorte maior ainda não ter de esconder um segredo, não ter de lutar contra si mesma e os próprios sentimentos.
Una era uma gata de sorte. Era tudo o que eu sempre desejara ser, mas nunca poderia.
O silêncio na cozinha chamou minha atenção e notei que os dois homens nos encaravam com atenção.
- Então você vai ficar mesmo com essa gata?
Opa! E a consideração, cozinheiro? "Essa gata" era muito pouco para me descrever. "Essa linda e adorável gatinha de olhos tão brilhantes e cativantes" seria muito mais adequado. E dessa vez eu ainda o liberaria de se ajoelhar na minha presença, mas não garantia o mesmo na próxima vez, viu!
- Eu gosto dela, Tui. Nós temos algum tipo de conexão. Kitty parece se sentir tão sozinha quanto eu. - Eduardo sorriu para mim e quis bater minha cabeça na parede por deixar que meu coração batesse forte apenas por isso. - Confesso que tenho uma queda por esse jeito arrogante dela.
O orgulho em sua voz era a última coisa que eu precisava ouvir.
Maldito. Mil vezes maldito.
Aquele sorriso conseguia me fazer esquecer o meu horror a ter um dono. A maneira como ele se dissera fã de meu jeito arrogante, algo que eu estava disposta a disfarçar num Plano C apenas para que pudesse me ver livre de toda aquela massa de emoções que vinha num pacote com Eduardo, me fizera derreter por dentro. A cada segundo, a vontade de partir parecia mais vital, mas aqueles olhos castanhos e brilhantes me encarando com tanto carinho fazia com que achar uma saída fosse tão impossível quanto falar, por exemplo.
- Ela é mesmo diferente. Não como Una e sua heterocromia, mas algo maior.
- E acho que é isso que me faz querer tanto ficar com ela. Já notou como Kitty é calada? É como se seu silêncio escondesse uma porção de mistérios. Enquanto Una mia todos os seus pensamentos, Kitty os guarda, apenas fica me encarando com esses olhos de gato tão lindos que ela tem. Eu gosto e vou ficar com ela, Tui.
Os olhos de Eduardo não desviam dos meus e, antes que pudesse conter minhas próprias patas, me vi aproximando de sua banqueta, sentindo minhas emoções vencerem minha razão. Quando seus dedos se aproximaram de meu queixo, acariciando meus pelos da maneira mais deliciosa que eu já sentira, percebi que estava perdida.
- Eu vou ficar com você - sussurrou ele, alto o bastante apenas para que eu o ouvisse, sua boca perto demais da minha orelha para que meu pequeno corpo se arrepiasse levemente. - Você é minha, Kitty.
E foi então que tudo se perdeu. Porque por mais que eu alardeasse o contrário, não havia como fugir mais. Eu me rendera antes que pudesse imaginar.
Cheia de segredos, silêncios e anos de vida, eu ainda pertencia a Eduardo. E pelos murros que meu coração dava em meu peito, nunca me sentira tão bem em ter um dono.
Nunca me senti tão bem em ser de alguém quanto em ser de Eduardo.

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Kitty
RomansaATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...