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Vacinada.


Depois de um verdadeiro sermão sobre vacinas, veterinários e coisas adequadas a gatos, além de uma senhora bronca sobre Eduardo estar dando as deliciosas rações de Una para mim, sem sequer saber se eu gostava mesmo daquele sabor ou se tinha necessidades nutricionais especiais, meu dono se viu forçado a marcar uma consulta para mim.
O que obviamente odiei.
Contudo, vi na situação uma chance para me mandar. Estarmos na rua, com tantas distrações para Eduardo, me daria a oportunidade perfeita para escapar de seus braços. Antes de chegar ao veterinário, obviamente.
A maneira como Duda me olhava, ainda sendo uma gata, me lembrava da maneira como Daniel me olhava antes. Quando as suas palavras haviam me tornado de volta ao que eu era. Aquele olhar tão caloroso, que fazia eu me sentir acolhida, como se houvesse realmente a possibilidade de eu ser amada e todo aquele tormento e sofrimento acabar, depois de tantos séculos. A dor antiga em meu coração seria apagada. Eu poderia começar de novo.
Mas flashes da forma como Daniel me expulsara de sua vida chegaram também. As suas palavras cruéis, as ofensas gritadas em alto e bom som, o nojo em seu olhar, em suas palavras frias, em suas mãos que me empurravam porta afora, deixando bem claro que eu jamais deveria voltar.
Tudo isso me lembrava de que eu não deveria me iludir, que eu precisava procurar a saída mais próxima.
Depois de uma hora tentando me livrar de Una e sua tentativa infinita de conversação, Arthur disse que deveríamos ir.
Delicado, Eduardo me segurou com cuidado. Encabulado e nervoso, explicou-me que tínhamos que ir a um lugar muito importante e que eu precisava ser uma boa menina.
Como se eu fosse estúpida e não soubesse onde estava indo. Eu sabia exatamente o que fazer.
Meu corpo se sentia pronto, meu foco estava na fuga. Nada daria errado dessa vez.
- Ele só vai verificar se está tudo bem com você, minha linda. Eu também fico nervoso com médicos, mas fique calma. Vai dar tudo certo.
Sim, daria tudo certo. Em poucas horas, a rua seria o meu lugar novamente.
Eduardo vestiu um agasalho, algo muito importante para o ar gelado que cortava São Paulo naquele dia, e abriu a porta, vendo Arthur já parado com sua enorme pick-up. Aproveitei o momento para sair sorrateiramente pela esquerda, maciamente, tentando não fazer nenhum barulho enquanto me afastava da casa coberta de hera, mas antes que pudesse ir longe, mãos grandes me seguravam em um colo macio.
Por que você não termina com tudo logo, Eduardo? Você deveria me agradecer por tentar fugir.
Seria tão mais fácil e mais indolor. Não deveríamos deixar que aquilo se prolongasse e se tornasse mais doloroso.
- Sua bobinha desorientada. O carro é pra lá.
Eu sabia onde o carro estava, droga! E sabia também onde aquilo iria acabar.
Opa. Espera. Uma caixa de transporte? Não. Eduardo. Não. Eu prometo ser boazinha, mas por todos os gatos do universo, não me confine naquele inferno. É horrível demais. Una, por sua vez, demonstrava ser a gatinha de estimação perfeita, parecendo completamente confortável dentro de sua caixa cor de rosa, enquanto a outra caixa reserva continuava aberta, esperando por mim.
Eduardo. Três dias sem fugir. Eu te dou mais três dias comigo se eu não for colocada ali.
- Kitty parece não ser do tipo que gosta de caixas de transporte, Tui.
- E também parece não ser do tipo domesticável e olha você dando casa e comida para ela.
Agora enfia logo a Kitty nessa caixa ou vamos chegar atrasados. Eu ainda tenho que ir pro Saborart começar o almoço, droga.
Pensando rápido, Eduardo entrou no banco de trás, batendo a porta e arrastando a caixa de transporte para o chão, me colocando confortavelmente sentada em seu colo. Seus dedos faziam carinhos deliciosos no topo da minha cabeça.
O alivio corria pelo meu corpo. Eu já ficara em uma caixa de transporte uma vez, quando fui pega por engano pela Sociedade Protetora dos Animais, algo que eu evitava como a praga, e podia garantir que, não eram apenas os humanos que se sentiam claustrofóbicos. Gatos também podiam ser.
Eu estava enormemente agradecida a Eduardo por ter me poupado daquilo.
O transito não parecia tão assustador naquele horário e, por sorte, Arthur havia escolhido uma rota bem vazia, chegando em questão de minutos a um prédio elegante onde devia ser o nosso destino final, já que ele estacionou no meio fio e olhou impaciente para nós, esperando que descêssemos, ansioso para chegar em seu restaurante.
- Obrigado pela carona, cara.
E por incrível que parecesse, Eduardo não estava sendo sarcástico. De onde aquele homem havia surgido? Ninguém era tão legal assim. Mas Duda provava que exceções existiam.
- Precisa que eu venha te buscar? - Arthur perguntou gentilmente.
- Não, nós vamos de táxi, eu ainda preciso passar na Euforic para pegar algumas Jobs.
Arthur assentiu e esperou que entrássemos no prédio antes de sair de sua vaga e se misturar no trânsito com seu carro branco cheio de caixas com hortaliças.
O prédio de quatro andares abrigava uma clínica veterinária muito bonita e elegante, que parecia transpirar riqueza em todos os ladrilhos verdes e brancos, o que me fazia ter ainda mais certeza de que Eduardo não era nada pobre. Não que isso fosse mudar muita coisa no meu caso.
Depois de conversar com uma moça numa recepção enorme, Eduardo se sentou comigo em uma das poltronas esverdeadas.
- Não precisa ficar com medo, Kitty. Eu vou segurar a sua patinha. Bem assim. - Três de seus dedos seguraram a ponta de minha pata de uma maneira incrivelmente fofa. - E se ficar muito insegura, é só miar alto. Eu não vou deixar ninguém machucar você.
Eduardo não conseguia ver que era ele mesmo quem iria me machucar. Ele não via, mas apenas por segurar a minha mão daquela forma, ele já conseguia me ferir, me deixando vulnerável, disposta, rendida. Ele me machucaria demais se continuasse ao meu lado, e eu faria o mesmo com ele. Partiria seu coração de forma pior do que Alice havia feito.
- Viu? Você já está mais calma.
Seu sorriso, enquanto me erguia para que meus olhos pudessem ficar na altura de suas profundezas castanhas, me hipnotizava. Sua respiração quente fazia cócegas nos meus pelos e a maneira delicada com que suas mãos enormes tocavam meu corpo, atrapalhava completamente meus planos.
- Eduardo Molina e Kitty - chamou a garota da recepção, encarando Eduardo de uma maneira estranha. Talvez, admirando os cabelos ruivos despenteados e a aura simpática que meu dono parecia emanar.
Antes que eu pudesse evitar, rosnei para a recepcionista, surpreendendo tanto a ela quanto a mim pela reação. Por que diabos eu fizera aquilo?
Eduardo era um cara bonito, sim. A combinação de seus cabelos ruivos, as sardas delicadas e os seus olhos doces, eram capazes de colocar qualquer garota de joelhos. Caramba, o charme dele arrebatava até mesmo as felinas mais exigentes, eu era um exemplo vivo e eterno. A garota tinha todo o direito de admirar Eduardo. E eu não tinha direito nenhum de sentir ciúmes.
Eu era só uma gata.
Nada mais do que isso.
Meu coração bateu mais apressadamente enquanto atravessávamos a porta branca e um homem velho apertava a mão de Eduardo que não me segurava apertadamente contra o seu peito. O doutor apontou uma cadeira para meu ruivo dono, que se sentou à frente do médico e começaram a conversar sobre meus hábitos, enquanto Duda explicava que havia me achado há poucos dias.
E então a minha consulta finalmente começou.
Por quase duas horas eu fui apalpada, examinada, coçada, lavada e outros adjetivos tão desconfortáveis que eu não sabia nem como nomear. Isso sem falar do termômetro.
Se eu pudesse fazer um desejo, qualquer desejo, naquele instante, seria para ter axilas. Só para nunca mais ter que sofrer o que eu sofrera com aquele termômetro retal. E pela cara daquele veterinário de uma figa, foi muito engraçado quando eu me encolhi toda com aquele negócio dentro de mim. Droga, eu era uma gata de respeito para passar por essa humilhação.
Eduardo, o sempre tão incrível Eduardo, se virou de costas quando precisei medir a temperatura, me dando um pouco de privacidade, o que o médico obviamente não quis fazer.
- Só mais algumas vacinas, para deixarmos a sua nova carteirinha de vacinação em dia e sua gatinha já estará liberada - informou o doutor.
Ser apalpada e violada não era o bastante, ao que parecia. A simples visão da seringa havia me deixado tonta e recuei um pouco, em cima da grande superfície prateada onde eu fora colocada. E antes que pudesse cair, senti a ponta de minha pata ser agarrada por três dedos quentes, me fazendo erguer os olhos e dar de cara com um sorridente Eduardo.
- Estou bem aqui, minha linda, não precisa ter medo.
O brilho dos seus olhos foi tudo o que prestei atenção, apesar de estremecer de leve quando a agulha tocou minha pele. Aos poucos, me acalmei. A doçura do sorriso de Duda me deixara relaxar o bastante para que pudesse tomar todas as vacinas sem problema algum.
- Está tudo certo com a sua gata agora, Senhor Molina. Mas você deve voltar com ela em dois meses para uma nova pesagem, Kitty está desnutrida.
Viva na rua por quatrocentos anos e veja se não fica magro como um graveto, doutor.
- Estou a alimentando direito agora. O senhor tem alguma marca de ração para recomendar?
- Não, mas prefira dar rações com sabor de carne, ou pedaços dela. A pobrezinha parece um tanto anêmica.
Anêmica, o caramba! Chega, Eduardo. Estávamos ali há duas horas, escutando o tal doutorzinho se achando melhor que eu, me menosprezando e chegando ao cúmulo de me enfiar um termômetro!
Agora, ele se achava no direito de me mandar comer carne. Que carne, o quê! Carne é o sabor de ração para uma gata qualquer, não para mim.
Ou salmão ou nada.
- Kitty gosta de salmão.
- Ela é uma gata, Senhor Molina, ela vai comer o que der de comer a ela.
E eu vou comer é seu fígado, seu idiota.
- Tudo bem. E leite? Posso dar?
-Sim, mas prefira dar água. Leite apenas pela manhã e apenas se ela for bem comportada. Isso fará com que ela fique mais dócil e colabore com você no adestramento.
Umas duas ou três arranhadas e ele aprenderia como eu era dócil. Se Eduardo não estivesse me segurando, eu mostraria àquele cara de branco o que eu aprendera na rua: desfigurar idiotas.
- Tudo bem - concordou meu dono, um pouco confuso.
- Gatos são como crianças, senhor Molina. Eduque-os, dê agrados se merecerem e os castigue se forem desobedientes. Isso funcionará com a sua gata. - Entendi.
Comigo presa firmemente em seu colo, Eduardo apertou a mão do veterinário e saiu da clínica depois de entregar à recepcionista - que eu podia jurar que havia piscado para ele - algumas notas de cinquenta.
Não pude ver o que havia escrito na nota fiscal, mas eu tinha certeza que era o telefone daquela oferecida.
Eduardo continuou me segurando por alguns quarteirões e quando se certificou que estávamos longe o bastante da clínica, meu dono me ergueu, sorrindo para mim que ainda o encarava encantada pela forma como a luz fraca do sol que atravessava as nuvens pesadas iluminava os seus cabelos vermelhos.
- Salmão e leite, Kitty. Porque ninguém vai me ensinar como tratar a minha gata.
Meus bigodes torceram no mais próximo que eu conseguia chegar de um sorriso sarcástico.
Eduardo Molina era a melhor pessoa que eu já conhecera, e não saber se essa era uma qualidade ou um defeito estava me deixando cada segundo mais apreensiva.
Meus pensamentos ainda se dividiam, escolhendo se aquilo era bom ou ruim, quando logo chegamos a um prédio em mármore preto e vidros espelhados, me deixando boquiaberta.
- Bom dia, Sr. Molina, vou avisar ao Miguel que você está aqui - avisou a recepcionista.
Outra moça bonita e sorridente que claramente não era imune ao charme ruivo do meu dono. Ela o cumprimentou e apertou alguns botões no telefone ao seu lado.
Segundos depois, fomos autorizados a subir e foi a primeira vez que andei de elevador. Algo que eu espero jamais repetir em minha vida, porque nada é tão ruim quanto aquela sensação de tontura que te abate enquanto aquele negócio sobe.
Assim que as portas foram abertas fomos recepcionadas por uma moça loura de lábios incrivelmente vermelhos. Ela cumprimentou Duda educadamente e sorriu para mim com ternura, uma reação que todos parecem ter ao ver um bichinho de estimação.
Não que eu fosse um, claro.
- Miguel já está te esperando, Eduardo - disse ela, nos conduzindo até uma sala envidraçada onde aproximadamente seis pessoas trabalhavam. A própria moça abriu a porta e nos deixou entrar.
A maior mesa da sala era ocupada por um rapaz da mesma idade de Duda, mas vestido em um terno escuro que parecia ser bem caro. Ele emanava autoridade e não precisei de muito para saber que ele era o tal Miguel. Seus olhos amendoados e o cabelo escuro e liso bem cortado deviam ser bem atrativos para as funcionárias daquele prédio, mas não tiveram qualquer efeito sobre mim.
Talvez eu preferisse ruivos.
- Preparado para nos dar a melhor arte de todas as campanhas de dia dos pais já feita?
Molina sorriu e me colocou no chão enquanto dava um abraço másculo no cara e se sentava com ele em sua mesa. Duda começou a conversar sobre negócios com o outro homem, mas não sem deixar de me observar, querendo saber se eu estava por perto, e apenas essa preocupação já foi o bastante para me deixar tocada.
Por que Eduardo não podia ser um daqueles homens ignorantes? Por que aquele maldito tinha de ser tão cativante?
Alheia à sua conversa, me sentei no chão acarpetado e observei a dinâmica da sala. Havia cinco homens, contando com Miguel, o chefe, obviamente. Mas na mesa mais próxima a ele havia uma moça que me observava com atenção, o rosto bonito iluminado por um sorriso sincero que fez com que eu me aproximasse dela sem nem ao menos saber por que eu o fazia.
- Oi, querida.
A voz dela era suave e, ao contrário dos meus padrões, deixei que ela me segurasse em seus braços. Apesar de seus sapatos brancos feios e de seu suéter horrível, ela era muito bonita. A falta de maquiagem e a forma severa com que prendia os cabelos castanhos pareciam ter o intuito de esconder isso, mas eu podia vê-la por completo.
- Você não deveria estar trabalhando ao invés de mimar a gata do Molina, Ribeiro?
- Eu... Eu... - ela foi incapaz de responder, tamanha a autoridade que Miguel emanava.
Entretanto, sendo segura em seus braços, podia sentir o quanto a maneira como seu chefe lhe dirigira a deixava irritada. Seus dedos tremiam de raiva.
- Não que você faça muita coisa normalmente.
O desdém em sua voz era notável e me perguntei porque aquele homem tratava a garota daquela maneira. Para quebrar o clima, Eduardo juntou os papéis que Miguel havia lhe entregue e disse que precisávamos ir para que ele pudesse começar os primeiros rascunhos da campanha. O que me fez julgar, pelas conversas que eu escutava na rua, que aquela empresa era uma agência de publicidade.
A moça bonita fez questão de nos levar até a porta, e seu chefe continuou no mesmo lugar, acenando para meu dono antes de voltar a se focar no seu próprio trabalho.
- Sinto muito por Miguel, Elisa.
- Eu já me acostumei, você sabe - sorriu ela e, antes que a mão estendida de Eduardo tocasse o seu ombro num sinal de apoio, ela se afastou, incomodada. Não pelo quase toque do meu dono, mas pela maneira como a recepcionista a encarava. Julgando-a e recriminando-a.
Mulheres poderiam ser cruéis quando queriam.
- Vejo vocês semana que vem, certo?
- Certo. Tchau Edu, tchau gatinha - Elisa fez um carinho suave nos meus pelos antes de voltar para a sala e prosseguir seu trabalho, sob o atento olhar de seu chefe.
No elevador, a mão de Eduardo segurou a minha pata, me acalmando na descida e foi quando notei que apesar de todo o exame e de todas as vacinas, o meu veterinário havia esquecido de me prevenir contra o mais importante.
Os olhos dele me encaravam e eu fixei meu olhar no dele, sentindo o meu coração bater mais rápido, não pela adrenalina do elevador, mas pela maneira como ele me olhava, como suas mãos me tocavam.
Eu não era vacinada contra Eduardo. E tinha a mais plena certeza de que padeceria disso, porque não havia cura contra a dor que acompanhava o meu segredo, assim como não havia prevenção contra a doçura dos seus sorrisos e o calor de seus olhos.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora