Desesperançada.
Mesmo furioso e distraído, Arthur era um bom motorista. Não demorou muito para que o seu carro descesse pela conhecida rua de Eduardo Molina e meu coração começasse a bater cada vez mais rápido. Ansioso.
O freio de mão foi puxado com raiva e a cabeça loira do homem ao meu lado se apoiou no volante, tentando recuperar o controle. Mas depois de tudo o que eu havia presenciado, não o culpava por estar tão fora de si. Após assistir a maneira como Arthur se sentia à vontade na
cozinha, como se estivesse em seu habitat natural, rodeado de panelas e talheres, era impossível vê-lo em qualquer outro lugar. Especialmente todo engravatado e dentro de um prédio como aquele em que eu passara meus últimos dias.
Arthur não havia nascido para as leis e gravatas, havia nascido para a cozinha. Como o pai dele poderia desconsiderar o talento que o filho tinha? Depois de longos minutos, o meu chef de cozinha favorito ergueu a cabeça, me encarando com seus olhos azuis brilhantes e me segurou, abrindo a porta do carro. Com todo o direito e poder de melhor amigo, abriu o portão da casa de Duda.
Meu coração, que já estava descontrolado, ficou ainda pior quando atravessamos o largo pátio a caminho da porta. Arthur estava alheio ao meu nervosismo e, para piorar a situação, ao invés de me dar alguns momentos para deixar que eu me preparasse para o reencontro tão temido, simplesmente deu a volta pela casa, indo para a construção no quintal, onde seu sexto sentido provavelmente lhe dissera que Eduardo estava por lá.
Minhas patas tremiam. Meu corpo tremia. Minha respiração estava instável. Depois de tanto tempo, eu finalmente veria Molina.
Sem dizer uma palavra, Arthur abriu a porta do estúdio, colocando-me no chão para que eu mesma pudesse tomar meu caminho até meu dono. Seus cabelos ruivos estavam ainda mais desgrenhados do que eu me lembrava, mas ainda assim, eu jamais havia visto Eduardo tão lindo.
Sua atenção estava completamente voltada para a enorme mesa, diante da qual estava sentado,
desenhando como se não houvesse amanhã.
Em outra ocasião, eu poderia apreciar a decoração da sala. Todos os desenhos espalhados, a profusão de cores e todas as linhas e traços espalhados por aquele lugar. Bem parecido com o seu quarto, mas dessa vez de uma maneira mais profissional, já que os seus lápis estavam em ordem e a mesa dava um ar mais sério ao cômodo.
Porém, naquele momento, tudo o que eu queria prestar a atenção era no meu dono e em como eu sentira a sua falta. Meus passos eram incertos e dados sem que eu sequer notasse, aproximando-me do homem que mexia comigo mais do que deveria.
Arthur continuava parado à porta, nos observando com um sorriso misterioso e quando me virei para trás, sem saber o que fazer a partir dali, o cozinheiro louro e simpático simplesmente fez um gesto para que eu continuasse, como se não tivesse nada a temer.
Mas havia. Eu era a criatura a quem todos ali deveriam temer. A pessoa que os magoaria e decepcionaria além do que poderiam imaginar. Eu os feriria. Como não podiam enxergar isso?
Novamente, Arthur fez um gesto para que eu fosse em frente e eu o fiz. Mesmo sabendo o que estava arriscando. Mesmo sabendo o que havia a perder. Eu precisava sentir Eduardo por uma última vez.
Então dei mais um passo à frente, parando ao lado de sua perna e roçando meu longo rabo em sua pele exposta pela bermuda de tecido grosso e cáqui que usava. Assustado, a sua cabeça se afastou da mesa e se inclinou, olhando para baixo na tentativa de saber o que havia causado cócegas em sua perna.
- Kitty!
A voz dele.
Meu coração bateu tão forte que não fui capaz de me mover, respirar ou sequer pensar. Apenas me mantive ali, de cabeça erguida, encarando os olhos castanhos mais lindos que os meus já viram.
O seu sorriso.
Assim que seus lábios sorriram, pronunciando meu nome mais uma vez, seu corpo se inclinou e eu não me controlei mais. Não havia como lutar contra aquilo. Eu o amava. E assim que Eduardo se inclinou para me pegar, eu mesma pulei em seu colo e deixei que seus braços me prendessem com força num abraço que me obrigou a conter todas as lágrimas que eu desejava derramar.
Lágrimas de saudade, de dor, mas, acima de tudo, lágrima de felicidade por estar novamente onde eu deveria estar.
Eu sabia que era perigoso, que eu estava me arriscando, mas quando fui erguida contra o peito do homem a quem eu amava, não resisti em esticar as patas para sentir as batidas de seu coração sob elas. Eu estava rendida.
Não havia mais fome, frio ou dor.
Não havia mais ratazanas ou gatos de rua. Todo aquele sofrimento das ruas tinha acabado, eu havia aprendido a minha lição. Eu vivera quatrocentos anos e em todo esse tempo me envolvi demais, sendo levada pelas emoções. Mas nunca, em todos aqueles anos, eu jamais havia me
sentido daquela forma.
Como se pertencesse a algo maior. Eu sentia que, ali, com ele, eu tinha um propósito para existir e que em qualquer uma das minhas formas eu pertencia a algo. Finalmente.
Eu era de Eduardo. O único humano que fizera o meu lado felino e meu lado humano entrarem em harmonia. Ele era o único capaz de me fazer querer que as duas metades fossem uma coisa inteira para que eu pudesse pertencer apenas a ele.
- Você voltou para mim, minha menina.
A maneira como ele me apertava, como sussurrava em minha orelha pontuda que sentira a minha falta... Tudo colaborava para que eu soubesse exatamente o que tinha de fazer a partir dali.
E não me arrependia em nada da minha nova decisão: eu não fugiria mais. Eu tinha um dono agora, arcaria com as consequências, se assim fosse necessário, mas não iria partir mais. Nunca mais.
Eu pertencia a Eduardo Molina. E de corpo e alma.
- O que está acontecendo aqui?
Minha cabeça se afastou do peito de Eduardo com uma violência inesperada e ele olhou na mesma direção onde eu encarava cheia de fúria. Ali, parada dentro do estúdio de meu dono, vestindo um vulgar conjunto de ginástica vermelho, estava a última mulher que eu desejaria ver.
Arthur a encarava com o mesmo olhar que eu, completamente furioso em ter aquela mulherzinha
estragando o nosso momento. E ele deveria estar ainda mais furioso, afinal nem sequer tivera tempo de compartilhar com o melhor amigo o que acontecera minutos antes no tribunal de justiça.
- Como entrou aqui sem tocar a campainha? - perguntou a megera.
- Porque eu tenho a chave - respondeu o cozinheiro sem a menor simpatia. Não era novidade que meu salvador sempre tivera uma antipatia com a amada de Eduardo. Na verdade, pelo que eu me lembrava, Arthur usara até mesmo a palavra vadia para descrevê-la. - E sou desejado aqui, ao contrário de outras pessoas.
Entretanto, a atenção de Alice não estava mais centrada no loiro alto parado ao lado da porta, e sim em mim, ainda estática nos braços de Eduardo que também não fazia movimento algum, esperando o que a sua ex-namorada tinha a dizer.
- Não acredito que você trouxe essa gata suja de volta à nossa casa.
Difamação! Eu me dera severas lambidas no caminho para a casa de Eduardo, querendo estar o mais apresentável possível para o meu dono. Ninguém poderia me chamar de suja. E, pior ainda...
Que papo era aquele de nossa casa? Aquela casa era de Duda Molina, - um pouco minha até - mas de ninguém mais.
- Ela é minha gatinha, Alice. Onde mais ela deveria ficar?
- Em um abrigo de gatos doentes. Lá é o lugar dela! - disse. De repente, Alice se virou para Arthur, certamente desejando espalhar o seu veneno para todas as direções que pudesse. - Aposto que foi você quem a trouxe de volta. A acusação apenas fez com que o loiro cozinheiro jogasse os dois braços para cima, se rendendo, mais cansado da situação do que qualquer outra pessoa.
Depois da discussão que tivera com o próprio pai, ele evidentemente não queria brigar com alguém tão baixo quanto Alice.
- Tui, você não me contou sobre... - tentou Eduardo quando Arthur simplesmente se virou, exausto o bastante para sequer se despedir. E eu, certamente, não poderia culpá-lo.
- Amanhã, ok?
E com os ombros caídos, meu cozinheiro favorito atravessou o umbral, sem nem se importar a olhar para a mulher parada em uma pose vulgar, provavelmente tendo a intenção de ser sensual. Tui foi embora sem olhar para trás, perdido nos próprios pensamentos e nos próprios dramas.
- Você vai levar essa gata embora, certo?
Errado. E da próxima, nariguda, eu prometia uma cicatriz para o resto da vida nesse rosto cheio de maquiagem. Minha paciência estava no fim com todas aquelas ofensas.
Eduardo se levantou, ainda comigo em seu colo, e atravessou o jardim, sendo seguido de perto por Alice, nos levando até a cozinha.
Ainda que eu devesse estar preocupada com a mulher atrás de nós, não conseguia deixar de sentir todas aquelas sensações bobas que me inundavam todas às vezes em que Duda me tocava.
Ele derrubava minhas defesas.
Passei meu rabo em seu rosto, numa demonstração de carinho, para que ele soubesse que talvez eu fosse mesmo uma gata suja e doente, mas eu o amava muito mais do que aquela mulher oferecida e vulgar poderia amar.
O sorriso espontâneo que eu tanto amava surgiu em seu rosto e deixei que ele me apertasse mais em seus braços, matando a saudade que tinha de mim, na mesma proporção que me fazia ter a certeza de que ele era a pessoa por quem eu estava esperando há quatrocentos anos.
Eduardo me fazia querer acreditar que era possível. Que ali, nos braços do homem por quem eu me apaixonara, havia uma esperança de que eu poderia ser salva, de que a minha maldição poderia ser quebrada.
- Essa gata vai trazer doenças para a casa - argumentou Alice, apenas para ser impertinente.
- Ela esteve perdida por semanas, Alice. É normal que esteja desnutrida e desmazelada, mas estou certo de que ela não está doente. Só precisa de um pouco de salmão e de carinho, não é? - os olhos castanhos encararam os meus e ele sorriu. Isso foi o bastante para que eu me perdesse ainda mais.
- Não tem como você ter certeza.
- Eu marcarei uma consulta para ela amanhã, se isso a faz se sentir melhor.
Eduardo me colocou no balcão e saiu, buscando a minha tigelinha e preparando o meu prato favorito. Salmão. Como eu pudera passar tanto tempo longe? Havia coisa melhor que salmão?
Ah, havia sim! Descobri isso quando meu dono se aproximou de mim, com uma tigela de reação e outra repleta de leite, colocando-as na minha frente e fazendo um último carinho nos pelos do topo da minha cabeça. O que mais uma gata como eu poderia querer?
Porém, os braços de Alice apareceram do nada e retiraram a mão de Eduardo de minha cabeça para colocá-la em sua coxa enquanto abraçava o seu corpo como uma verdadeira amante faria.
Molina sorriu e deixou que os seus próprios braços a rodeassem e puxassem o seu corpo mais para perto do seu, aspirando o perfume de seu cabelo. Aquele gesto deixou o seu sorriso mais bobo, mais apaixonado. Alice ficou na ponta dos pés e mordeu a orelha dele, enfiando seus dedos longos pela bagunçada juba alaranjada, deixando que suas unhas arranhassem o seu couro cabeludo.
O que mais uma gata como eu poderia querer?
Ser humana. Permanentemente.
Ser humana o suficiente para não deixar que aquela megera se aproximasse do meu dono nem em outra vida. Humana o bastante para fazê-lo se apaixonar por mim e não precisar de mais ninguém. Para fazer o que Alice fazia, morder a sua orelha, arranhar a sua nuca e deslizar as pontas de seus dedos por seu peito, descendo para a sua barriga, sem pressa alguma, sabendo que o
homem em seus braços não iria a lugar algum porque te amava tanto que jamais poderia sair dos seus braços.
Miei, atraindo a atenção dos dois e Eduardo atendeu ao chamado, afastando-se para que pudesse me encarar. Seus olhos brilhavam, mas não por mim.
- Seu leite está fresquinho, Kitty? Quando terminar poderá descansar um pouquinho.
A maneira doce como meu dono se dirigia a mim fazia com que fosse impossível não me apaixonar por ele cada vez mais. Quando ele me encarava daquela maneira suave, como se eu merecesse mais consideração que qualquer outra pessoa, mesmo sendo uma maldita gata, fazia algo contorcer-se em meu peito.
- Você realmente vai deixar que essa gata more aqui, Edu? - perguntou Alice com desprezo.
- E onde mais ela moraria? - questionou ele pela segunda vez naquela noite.
- Não importa! Em qualquer lugar, mas não aqui, não onde eu esteja! - respondeu Alice, aquela vadia, me dando um leve empurrão e afastando-me das tigelas. Mesmo assim, ela deixou
transparecer em sua face o nojo que sentira por me tocar.
E foi bem assim que eu perdi a cabeça.
Avancei sem pensar, arranhando seu braço com toda a força que fui capaz. Seus braços estavam nus, afinal ela vestia apenas o curtíssimo top de ginástica, deixando muita pele de fora para que eu pudesse unhar sem medo. Minhas garras pegaram bem em sua carne, ferindo do seu cotovelo até seu pulso, deixando o sangue escorrer pela parte interna do seu braço.
Uma sensação de dever cumprido! O que eu sentia certamente era uma satisfação estranha, mas boa, que me assolou. E não contive um sorriso felino quando a mulher correu para a pia, colocando o braço sob a corrente de água, enquanto Eduardo tentava ajudá-la, segurando um pano de prato, pronto para fazer o que fosse necessário.
Ela não valia nem os centavos da conta de água que ele estava gastando, então por que se importar?
- Gata maldita! - urrou depois de gemer agonizante, deixando o líquido cair em seu ferimento.
Exagerada! Nem foi um arranhão tão grande para que ela estivesse fazendo tamanho drama. E, para ser bem sincera, ela havia merecido, depois dos diversos insultos e o empurrão.
- Isso foi muito feio, Kitty. Não faça mais isso, ouviu?
Eduardo parecia mesmo muito sério e chateado quando chamou minha atenção, apontando um dedo. O jeito que ele repreendeu me encheu de culpa, fazendo com que eu abaixasse a cabeça, envergonhada. Mas não tão envergonhada assim para deixar de sentir aquela satisfação por ter deixado a minha marca em Alice. Eu podia ser uma gata suja e doente, mas agora ela teria uma boa recordação dessa felina.
- Só isso? É só isso que você vai fazer, Eduardo? - Alice virou-se furiosa para ele, espalhando água por toda a cozinha enquanto gritava a plenos pulmões, fazendo o ruivo dar um passo assustado para trás.
- Essa gata maldita e doente me dilacera o braço e tudo o que você faz é repreender como um pai molenga?!
- Ela não fez por mal. Kitty não a conhece direito, gatos se sentem ameaçados quando são atacados por estranhos. Com certeza ela viu o seu empurrãozinho como um ataque e se defendeu. Instinto animal.
A história não havia sido verdadeiramente daquela forma, mas era uma versão aceitável.
- Instinto animal? Sua gata pode ter me passado doenças, Molina! E eu tenho certeza de que isso é apenas o começo. Olhe para ela! Veja como esse animal nojento me olha. Essa gata me odeia!
Uau! Aquela era a primeira vez em que eu tinha de concordar com Alice. E duas vezes. Sim, aquele era apenas o começo. Se ela continuasse, eu não hesitaria em arranhar toda a sua cara ou esfolar a sua perna tão profundamente que sangraria por dias.
Eu também concordava com o fato de que a odiava. Não apenas por tudo o que me dizia, mas por Eduardo. Por tudo o que o fizera sofrer. Por deixá-lo perdido e destruído quando eu o conhecera.
- Impressão sua, Alice, ela...
- Não me interessa! Estou indo embora!
Alice puxou o pano de prato das mãos do meu dono e o enrolou no braço que, para o meu desprazer, nem estava sangrando tanto. Depois, virou-se para a porta, decidida a sair dali.
- Não, espera! Não vá! - Eduardo a segurou pelo braço bom e a puxou de volta para ele.
O desespero naqueles olhos escuros era tão falso que eu quis arranhar o outro braço só para me vingar. Eu queria dar a ela a mesma dor que eu sentia naquele momento ao vê-la abraçada com Eduardo.
- Não vá embora. Por favor! - ele implorou novamente. - Não posso ficar, Edu. Não com essa gata aqui.
Seu braço se estendeu, apontando para mim, fazendo com que o seu Edu lançasse um olhar completamente confuso. Ele tentava entender o que estava se passando, mas eu já havia compreendido a situação.
Ainda que eu fosse uma simples gata, Alice estava dando o ultimato. Não com todas as letras, mas deixara claro o bastante para que até eu mesma fosse capaz de entender. - É muito simples, Edu... - sua voz era tão doce que por alguns segundos ela conseguiu enganar até a mim. Poucos segundos. - Ou você tira essa gata dessa casa ou eu irei embora.
Eu deveria ter poupado a mim mesma da humilhação. Deveria simplesmente ter desaparecido pela porta aberta e me perdido novamente na noite. Eu já sabia qual seria a sua decisão.
Ainda assim, eu fiquei.
Eu esperei.
Eu rezei para que algo dentro dele o fizesse ver a verdade e o levasse a entender que havia mais em mim do que os olhos poderiam ver. Como sempre, eu não deveria permitir, mas deixei que uma pequena fagulha de esperança começasse a crescer dentro de mim. Ainda assim, coloquei aquela pequena chama de confiança nas mãos dele e deixei que Eduardo decidisse o que fazer com ela.
O que seria mais importante? A gata fujona que o amava mais do que sonhara ser possível ou a vaca cruel e humana que partira seu coração?
- Ou ela, ou eu! - lembrou Alice.
Eduardo andou até mim e segurou-me com todo o carinho que era capaz. Meu interior se encheu de alívio. Era eu! Eu era a escolhida. O seu olhar encarou o meu, mas não havia nenhum sorriso em seus lábios, as suas mãos grandes rodeavam meu corpo com firmeza.
- Deus, como você está magra! Mas você será bem cuidada agora, minha menina.
Ele deveria saber que me tinha em suas mãos quando me chamava daquela maneira, quando usava aquele termo para me chamar como se eu fosse realmente digna dele. Como se eu fosse realmente dele... A sua menina.
Encarando Alice, meu ruivo dono prensou-me contra o seu peito, segurando-me em um abraço apertado. Algo deve ter sido dito, mas minha audição não pode captar o quê. O sorriso de Alice devia ter me alertado, mesmo que eu não tivesse ouvido suas palavras.
Eu estava enganada.
O sorriso dela era luminoso e radiante. Satisfeita. Como se estivesse vingada. Nenhuma palavra saiu de sua boca e nem era necessário. Seus olhos já diziam o bastante.
Fechei os meus, sentindo Eduardo se movimentar, ainda me carregando e tentei não sentir nada.
Como uma boa gata deveria ser. Talvez, sendo uma boa felina, ele mudasse de ideia e me deixasse ficar. Porém, quando seus passos não pararam e a porta da garagem foi aberta, voltei a abrir os olhos e procurei aceitar o meu destino com toda a dignidade que ainda me restava.
Eduardo não tinha mais a sua carteira de motorista, mas isso não importava quando fui colocada contra um macio banco de couro, como naquele primeiro dia. Tanta coisa havia mudado desde aquele dia. Tantas decisões haviam sido tomadas...
Mas nenhuma escolha era tão dolorosa quanto a que Eduardo tomava naquele instante. As ruas passavam por nós como borrões, devido à velocidade alta com que Molina dirigia e eu fiz o possível para não deixar que meu olhar vagasse para o homem ao meu lado. Eu não deixaria que ele visse o quanto estava me machucando naquele momento.
O carro parou tão subitamente quanto havia arrancado, deixando-me saber que havíamos chegado ao nosso destino final. Porém, ao invés de ver um decadente abrigo de gatos, vi um prédio muito elegante pintado em marfim e verde oliva.
O portão fora aberto e Eduardo caminhou para dentro do edifício sem encarar-me uma vez sequer. Eu sentia o tremer das suas mãos, mas também não fiz qualquer esforço para chamar a sua atenção. Eu precisava ser forte e não me deixar abalar.
Contudo, quando entramos no elevador, seus três dedos seguraram a minha pata, lembrando o quanto eu ficava assustada com aquela tecnologia moderna, e então não pude mais me conter. Meus olhos buscaram os seus e algo deve tê-lo atingido, já que os seus ficaram vermelhos, como se estivesse prestes a chorar, como daquela primeira vez no beco.
- Eu sinto muito, Kitty. Eu sinto tanto.
Eu também sentia. Odiava que as coisas fossem daquela maneira, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Mas ele sim... Eduardo podia até mudar de ideia, porém eu não me enganaria mais.
A decisão estava tomada, certo?
Num abraço forte, Eduardo me envolveu em seus braços, permitindo que eu sentisse o seu calor por uma última vez e, numa ânsia absurda de fazer com que ele se lembrasse de mim da melhor maneira, rocei meu focinho em sua bochecha, da forma mais próxima a um beijo que uma gata conseguiria.
O sorriso dividiu espaço com as lágrimas que agora estavam escorrendo por seu rosto, molhando suas sardas adoráveis.
- Sinto muito, minha menina. Eu pedi para que nunca me abandonasse e finalmente quando voltou para mim, sou obrigado a te deixar.
Então não deixe, Eduardo! Dê-me uma última chance. Não deixe que eu tenha tomado a decisão errada ao querer ficar ao seu lado. Não permita que eu tenha me enganado ao escolher você para pertencer.
- Perdoe-me.
Por favor, Eduardo. Por favor.
As portas do elevador se abriram e seus dedos soltaram a minha pata. Eu queria gritar, implorar, miar... Fazer o que fosse preciso para Duda entender o que eu queria: ficar com ele.
Um corredor enorme abriu-se a nossa frente e Eduardo o seguiu, parando diante de uma porta com o número 38. O ruivo bateu suavemente na madeira, certo de que seria ouvido e atendido.
Antes que a porta fosse aberta, meus olhos foram encarados pela última vez por aquela profundeza castanha. Quem abriu a porto foi Arthur, mas nós não desviamos nossos olhares. A minha pata continuava em cima da sua tatuagem.
- Eu sinto muito.
Suas mãos passaram-me para as mãos do chef de cozinha que se estenderam sem entender nada.
Mesmo assim fui recebida em seu colo, sem perguntar o que acontecia ou por que eu estava sendo abandonada. E antes mesmo que pudesse elaborar qualquer questão, Eduardo respondeu, utilizando as mesmas palavras que o próprio cozinheiro usara mais cedo:
- Amanhã, ok?
Assim, assisti Molina se afastar aos poucos, seguindo o corredor até deixar que as portas do elevador se fechassem às suas costas. Selando a sua escolha. Sem olhar para trás. A culpa era completamente minha por acreditar que poderia haver algum futuro... Por pensar que eu poderia ser amada ou libertada daquela maldição. Eu tinha acreditado que poderia haver alguma chance, qualquer mínima possibilidade, quando não havia nada.
Eu estava apenas enganada.
E, agora, abandonada.
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Kitty
RomanceATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...