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Apaixonada.


- Eu queria que você fosse humana, Kitty.
Virou palhaçada! Claramente virou uma imensa palhaçada. Desde que Arthur notara que eu poderia ser muito útil quando os funcionários do restaurante não davam conta do fluxo de clientes, as palavras escapavam de seus lábios finos com uma facilidade impressionante. E não importava o quanto eu o arranhasse, mordesse o seu calcanhar ou rosnasse, não havia muito que eu pudesse fazer depois que as palavras eram ditas.
Em algumas ocasiões, eu tentava descontar minha raiva com alguns tapas e chutes merecidos, mas ele levava tudo como uma grande brincadeira, rindo quando eu o atingia.
Naquele domingo, em pleno horário de almoço, o fluxo do restaurante estava assustador. Havia até mesmo uma fila do lado de fora, diversas pessoas esperando vagar uma mesa para que pudessem entrar no Saborart e se deliciarem com a culinária brasileira tão sublime de Arthur Nogueira.
Graças a minha inaptidão de falar qualquer coisa, a vaga de hostess ou garçonete jamais eram minhas. Entretanto, eu parecia ter uma habilidade anormal com facas, sendo frequentemente colocada junto às panelas enquanto um ou outro auxiliar de cozinha trocava seu avental por um terno formal e ia para a frente do restaurante, ajudar no atendimento.
- Não fique bravinha, gatinha, suas roupas já estão no escritório - sussurrou ele, bem perto das minhas orelhas para que nenhum dos seus funcionários pudesse pensar que ele estava louco.
Afinal, era supernormal o chefe, dono de um dos melhores restaurantes paulistas, levar suas duas gatas para o local em um domingo cheio de movimento.
Odiando cada pedacinho daquele homem, segui para o seu escritório, onde a porta já estava aberta e um vestido elegante e azul royal, bem como um avental imaculado, estavam à minha espera. Como sempre, Arthur havia deixado um sapato de salto, esperando que eu os calçasse e viesse em sua direção completamente desequilibrada.
Eu era extremamente agradecida a ele por me arrumar roupas. Não emprestadas e apertadas, como eu usava antes, mas compradas especialmente para mim, o que eu achava um gesto muito especial.
A transformação não durou muito daquela vez. Em quinze minutos, eu já estava tentando ficar em pé sem tombar para qualquer lado em cima daqueles sapatos de salto e o avental já protegia a frente do vestido que ia até os meus joelhos de uma maneira elegante, que combinava comigo de um jeito bem interessante.
Um elástico de escritório estava perdido em cima da mesa de Arthur e, sem o menor arrependimento, o usei para prender os meus cabelos em um coque alto, impedindo que qualquer fio de cabelo caísse nos vegetais que eu picaria logo mais.
Ao sair do escritório, Arthur já estava me encarando com humor, fazendo até mesmo um gesto de positivo quando me viu, apreciando a minha roupa, mas logo voltando para as suas panelas que, num domingo daqueles, era a sua principal preocupação.
Depois de várias visitas ao Saborart, como amiga do dono e não mais como gata faminta que sempre ficava nos fundos à espera de algum resto, imediatamente me coloquei no meu posto, segurando uma cenoura e a picando com firmeza e experiência. Arthur havia me ensinado há algumas noites, a espessura perfeita das rodelas de cada vegetal e eu me considerava uma boa
aluna.
Desde que Marvin e Arthur haviam se compromissado a me ajudar com a tarefa de me libertar de minha maldição, eu me transformava basicamente todos os dias, cumprindo favores para Arthur, que sempre ria e repetia:
- Nada mais justo, Catarina. Estou guardando o seu segredo, não é?
Eu poderia ficar furiosa com a sua arrogância, mas tinha de confessar que adorava trabalhar no Saborart, mesmo nas noites de menor movimento. Aquele lugar tinha algo de especial, além dos pratos bonitos e saborosos, eles eram verdadeiras obras de arte culinárias. Ajudar Arthur não era um fardo, mas uma chance de me sentir útil, algo que em todos os meus quatrocentos anos, jamais havia sentido.
Como se tivesse todo o direito de entrar na cozinha do restaurante a qualquer momento, um homem alto e moreno, com covinhas encantadoras, atravessou a porta sorrindo e cumprimentou o chef com um gesto digno de grandes amigos.
- Você podia deixar as suas funcionárias usarem um pouco de maquiagem, Arthur.
A cozinha do Saborart tinha testosterona vazando pelas paredes com a enorme quantidade de homens que trabalhavam ali e, naquele momento, eu era a única garota na cozinha, o que significava que o comentário de Marvin Padilha tinha um destinatário: eu.
- Pode resolver isso para mim? Estou meio ocupado com essa moqueca.
Sorridente, Marvin tirou dois tubos negros do bolso de sua calça jeans um pouco mais justa do que o recomendável e pediu para que eu me aproximasse, o que fiz com um tanto de cautela.
- Abra bem os olhos - ordenou ele. Fiz o que Marvin me pedia, insegura, e tive os cílios puxados pelo pincel estranho que tinha em suas mãos. Quando a situação incômoda acabou, ele passou para o outro olho, repetindo o processo. - Certo. Agora faça bico. - Novamente o obedeci, mas dessa vez ele trocou os tubos e aplicou o conteúdo dele nos meus lábios, fazendo com que eu amassasse um contra o outro, para espalhar o grude uniformemente pela minha boca. - Melhor não é, companheiros?
Todos os funcionários de Arthur pararam o que estavam fazendo, encarando-me com olhares com diferentes níveis de aprovação, mas todos bem satisfeitos com o trabalho de Marvin, seja lá qual tenha sido, antes de voltarem aos seus afazeres.
Maquiagem. Era isso que os dois haviam me explicado que aquilo era, dias atrás quando aquela meleca fora aplicada em meu rosto pela primeira vez. Um artifício para que as mulheres ficassem mais bonitas. Segundo Arthur, água e sabão retiravam aquilo, e sem maquiagem, Alice não seria tão atraente como todos pensavam.
- Vim apenas avisar-lhes que nossos planos estão seguindo o combinado. Thomas vai almoçar em casa hoje e estou certo que vai querer o seu gatinho para pajear, então não posso presenteá-los em demasia com a minha presença.
Os dedos ágeis de Marvin roubaram duas fatias de bacon que estavam em cima da mesa e se afastou antes que Arthur pudesse acertá-lo com sua colher de pau, erguendo as duas mãos em rendição antes de avisar que já estava partindo. Recebi um molhado beijo na bochecha, antes da porta que dava acesso aos fundos do restaurante se fechar atrás do gato amaldiçoado que havia se tornado o melhor amigo que eu poderia ter.
Era interessante como os dois se empenhavam, fazendo planos mirabolantes para que pudessem me ver livre da minha sina, sem saber que era muito mais fácil do que pensavam. Na verdade, fácil demais que era até impossível.
- Olá!
A voz me tirou dos meus devaneios e fez com que eu abaixasse a cabeça, tentando não ser vista pelo homem dos meus sonhos. Mas era impossível pensar em continuar fatiando aquele pepino quando Eduardo Molina estava a apenas alguns metros de mim. Eu não precisava sequer me virar para ter certeza de que ele era realmente o dono da voz que eu ouvira há pouco. O meu próprio corpo reconhecia a sua presença. Minha pele se arrepiando, meu coração disparando, meus lábios se tornando secos...
- Disseram que ainda tenho dez minutos antes de limparem a minha mesa, então vim dar um abraço no meu melhor amigo - disse Eduardo. Com minha cabeça baixa, ele não podia me ver.
Sua atenção estava voltada ao homem louro no canto extremo da sala, ávido por abraçar o seu melhor amigo. - Estou tão orgulhoso de você, cara! A fila lá fora está gigantesca e não para de chegar gente! Você é um sucesso!
O brilho nos olhos de Arthur, feliz por estar orgulhando alguém, a despeito de todas as besteiras que seu pai havia dito, fez com que eu sorrisse, esquecendo de manter a cabeça abaixada enquanto observava a interação dos dois melhores amigos.
- Ainda bem que eu fiz uma reserva e...
Oh, droga!
Mesmo estando há duas mesas de distância e tendo uma prateleira cheia de panelas penduradas à minha frente, esqueci-me de manter a cabeça abaixada e não foi difícil para que o reconhecimento brilhasse nos olhos castanhos de Eduardo.
- Você.
O arrepio em minha pele se tornou ainda mais forte e dei dois passos para trás, desequilibrando-me e quase derrubando a travessa de saladas que estava atrás de mim. Meu coração disparado não me permitia ter qualquer pensamento coerente e tudo o que eu podia fazer era encarar Eduardo, como uma tola apaixonada e assustada.
Seus cabelos ruivos estavam despenteados, mas visivelmente mais curtos, e a camisa xadrez azul e preta que ele vestia o deixava ainda mais lindo do que o normal.
Tentei me afastar ainda mais, porém os saltos não me permitiam, fazendo com que eu tivesse certamente caído no chão, se Eduardo não fosse mais rápido e tivesse me segurado com suas mãos calosas e fortes.
- O que você está fazendo aqui?
A pergunta era suave, não como uma acusação, mas em um tom de genuína surpresa. Uma surpresa boa. Tão boa quanto a sensação de sua mão em minha pele, dos seus olhos nos meus, me deixando cada vez mais rendida. Se é que era possível.
Tentei responder à sua pergunta, mas um som bobo saiu da minha boca, fazendo com que eu me calasse, totalmente envergonhada. Olhei ao redor, esperando ver Alice entrando por qualquer uma das duas portas da cozinha, mas ela não estava em nenhum lugar onde pudesse ser vista.
- Você não voltou mais, achei que tivesse feito algo errado.
Minha cabeça se balançou, efusivamente, deixando claro que ele não havia feito nada errado. O que era uma mentira. Ele havia errado, sim, naquele exato momento em que lhe fora dada uma escolha e Eduardo me deixara ir embora.
Ao nosso redor, os homens continuavam os seus trabalhos, alheios à nós e nosso pequeno drama. As mãos de Eduardo fizeram com que eu me colocasse de pé e, mesmo com aqueles sapatos altos, ainda não era mais alta do que ele, fazendo com que minha testa ficasse rente aos seus lábios, tanto que eu precisava inclinar a cabeça para poder encarar o seu rosto.
- Seus olhos de gato ainda são tão lindos quanto eu me lembrava.
Um passo à frente e estávamos a milímetros um do outro. Meu coração ainda batia da maneira mais insana possível e eu sentia que meus dedos coçavam de vontade de tocar o seu rosto ou deslizar pelos seus cabelos.
- Por que eu sempre me sinto assim perto de você? - a pergunta viera baixinho, talvez mais para si mesmo do que para mim, esperando que os sons da cozinha ocultassem a sua voz. - Eu deveria aprender a resistir a você e essa sua aura misteriosa.
Seus dedos roçaram os meus cabelos, segurando-me bem perto de minha nuca. Eu estava tão silenciosa quanto sempre estivera, por fora. Dentro de mim, meu coração gritava, extasiado com a sensação de que Eduardo Molina estava me tocando novamente. Em uma cozinha de um restaurante lotado, mas isso não tinha importância. Era Eduardo.
- Edu, nossa mesa está... - ela respirou fundo, retomando a compostura, enquanto as mãos de Eduardo me soltavam, fazendo com que eu soltasse um som baixinho, sentindo a imediata falta de seu contato. - Pronta.
Eduardo e eu nos viramos para a porta entreaberta e encaramos Alice, elegantemente vestida num conjunto de blazer e calça pretos que a fazia parecer ainda mais charmosa do que o comum, com aqueles cabelos escuros e lindos, penteados para um lado do rosto.
- Alice, essa é minha amiga...
Em duas passadas longas, logo Alice estava ao nosso lado, segurando o braço de Eduardo com uma posse jamais vista. Duda estava sem graça pela maneira com que ela o segurava na minha frente, porém não foi capaz de dizer mais nada.
- Desculpe-nos, querida. Meu namorado e eu estamos com um pouco de pressa - disse a megera. Os olhos escuros e frios da namorada do homem que eu amava percorreram o meu corpo, observando-me dos pés a cabeça, parando para avaliar até mesmo o avental que me cobria e, com o sorriso mais desdenhoso que eu já tivera o desprazer de ver, acrescentou. - E fome. Também estamos com fome. Por isso capriche em nossas saladas.
Para completar ainda mais a sua falta de educação e demonstração gratuita de como um ser humano poderia ser insuportável, Alice saiu arrastando Eduardo de volta à frente do restaurante, como se ele não tivesse qualquer vontade própria.
Um tapa em minha cara teria doído muito menos, com toda a certeza.
A maneira como aquela vadia havia praticamente sublinhado a palavra "namorado" fora completamente proposital. Ela não me conhecia, mas não precisava saber quem eu era para deixar claro que Eduardo tinha uma dona e que eu poderia abandonar qualquer intenção que eu tivesse a respeito dele.
Como se eu não soubesse disso.
Eu já estava completamente ciente de que, apesar de todo o amor que eu sentia por Eduardo, jamais seria retribuída, sendo obrigada a enfrentar duas maldições. Aquela que me transformava em uma gata e a que me transformava em uma tola.
Arthur tirou a sua atenção de sua moqueca, ou qualquer outro prato que estava atraindo a sua dedicação total, e me levou até o seu escritório, sabendo que o momento da minha transformação de volta estava quase chegando. Nenhuma palavra foi dita por nenhum de nós, mas quando os braços do chef me rodearam, a dor que eu sentia, tanto pela transformação, quanto pelo amor não correspondido, fizeram com que eu abraçasse o meu amigo de volta, sentindo as lágrimas estúpidas rolarem pelo meu rosto, de uma maneira humilhante e silenciosa.
Quando se certificou de que eu estaria bem, Arthur beijou a minha testa e me deixou na sala fechada, sabendo que a minha transformação começaria logo apenas por observar a maneira como meu rosto se contorcia, sentindo as primeiras agulhadas da dor.
Como Eduardo seria capaz de quebrar a maldição da gata, se ele mesmo me dera uma nova maldição para sofrer. Uma que doía muito mais e que me deixava em pedaços sem precisar passar por qualquer incomodo de transformações.
Enrolada no chão, sentindo a minha pele se esticar e meus ossos se partirem, chorei baixinho.
Sentindo a angústia da mudança em meu corpo e raiva de mim mesma por ser tão tola a ponto de ter deixado as coisas chegarem àquele ponto.
Certamente, estar apaixonada era a pior das maldições que existia.

KittyOnde histórias criam vida. Descubra agora