Partida.
Eduardo estava paralisado. Seus olhos fixos em mim.
Ele não podia acreditar.
Alice ria. Sua risada alta e estridente, ecoando por toda a casa, os espasmos da gargalhada a sacudiam por inteiro, a forçando a se retorcer, segurando a barriga.
- Deus, isso pode ficar mais patético? - dizia entre as gargalhadas.
- Kitty... - Eduardo sussurrou e eu fechei os olhos, nervosa. Não queria vê-lo, não queria ver todo o nojo e ódio que seus olhos estampariam. Eu não queria ir embora dali sentindo as coisas ainda piores.
Eu não suportaria.
Meu pescoço foi seguro pelas mãos frias e finas de Alice, meu coração bateu mais rápido. Fui erguida até que eu estivesse bem perto de seu rosto, me obrigando a respirar fundo, com medo.
Como humana eu tinha tamanho e forças para uma luta justa, mas como gata, não havia nada que eu pudesse fazer. Ela me segurava de uma maneira que impedia que minhas garras a alcançassem.
- Uma mulher feia. Uma gata feia. Que sina a sua, Kitty. - desdenhou. - Como você pode achar mesmo que tinha chances com Eduardo? Ele não seria tão estúpido.
Rosnei para ela, pronta para atacar, sabendo que eu não tinha nada a perder agora e fui segura ainda mais longe, tornando ainda mais impossível dar qualquer golpe, qualquer arranhão que fosse.
- Catarina... - novamente o sussurro de Eduardo chegou às minhas orelhas, mas não me dava nenhuma dica sobre qual seria a sua expressão, qual seria o tamanho do seu nojo, do seu ódio. Eu ainda não podia encará-lo.
- Você não é nada. Eu estava certa. Você achou que poderia me passar para trás e ter o que era meu, mas Eduardo nunca será de ninguém. Eduardo é meu.
Ele não era de Alice. Eu não o merecia, era certo, mas ela também não era digna de possuí-lo.
Eduardo era bom demais para qualquer uma de nós. Alice se proclamava melhor que eu, porém não tinha nada que a fizesse melhor, a não ser sua aparência.
Ambas achávamos que éramos melhores que tudo, egoístas e arrogantes, mas na verdade éramos apenas duas idiotas que jogavam com as próprias regras, as inventando e moldando para se dar bem, mas falhando miseravelmente.
Alice não era melhor do que eu. Eu não era melhor do que ninguém. Eu era apenas aquilo: uma maldita gata que naquele momento deveria estar causando arrepios de horror em Eduardo, fazendo-o perceber que havia tocado e beijado a sua suja gata de rua. Uma maldita gata.
Eu não tirava a razão do seu desprezo. Eu me odiava também e era por isso que eu deveria encontrar uma saída. Algo que eu deveria ter feito há muito tempo, mas fora estúpida o bastante para esperar até ser tarde demais. Para me entregar até que fosse irreversível.
Os dedos longos e finos de Alice se abriram e eu caí no chão. Automaticamente, meus olhos buscaram a saída, encontrando-a num átimo. A porta estava aberta. Eu tinha de correr.
Correr e fugir. Ir para longe.
- Por que tem sempre de fazer isso? Eu não te amo, Alice. Eu achei que você me amava, achei que gostava um pouco de você, mas me enganei. Eu não quero você! - a voz de Eduardo estava cheia de raiva, e pude ver seus passos avançarem até ficar a centímetros dos pés calçados em saltos altíssimos. A sua raiva foi a facada que faltava para assassinar o restante da minha esperança. Eduardo estava com ódio, ódio de ter sido enganado por uma aberração. - Suma daqui e não ouse voltar. Eu não quero mais você, muito menos te olhar. Não se atreva a voltar e tentar consertar as coisas novamente, porque não há como. Você me teve de volta das outras vezes porque eu não havia aberto os olhos o suficiente para poder vem quem você realmente é. Te desejo sorte na busca de um namorado, amante ou o que seja, rico e estúpido, porque eu não vou mais ser esse cara.
Alice não tinha resposta para isso. Ela apenas ficou ali, calada, observando Eduardo. Seus olhos escuros e bem maquiados estavam prestes a derramar lágrimas. Não de tristeza, mas de frustração, por não ter conseguido alcançar um objetivo, segundo ela, tão simples como ter Eduardo de volta.
Meu coração estava fraco e dolorido, mas bateu uma vez mais, contente por saber que mesmo depois de minha partida, não teria chances para aquela oportunista com Eduardo. Ele não voltaria para a megera, estava livre para encontrar outro alguém.
Alguém mais bonita, com menos confusão e insanidade, como nós duas. Alguém que seria capaz de amá-lo mais do que eu jamais poderia. Alguém a quem Duda amaria também e que faria a sua vida valer a pena. Alguém que inspiraria seus desenhos, que traria as cores certas à sua vida.
A porta continuava aberta.
Eu não pensei duas vezes. Eduardo ficaria bem, contanto que eu estivesse bem longe. Eu sabia que era exatamente isso que eu tinha de fazer: ir para longe.
Minhas patas correram pelo tapete, atravessando a porta com a velocidade de um raio, desesperada para deixar tudo para trás. O que eu deveria ter feito desde a primeira vez.
Um pulo ágil e eu já estava em cima do muro, observando a porta aberta e notando Alice com o rosto entre as mãos, o corpo sendo abalados por espasmos, não mais com gargalhadas, mas com um choro. Porém, os olhos de Eduardo não estavam presos nela, observando a mulher que amara por tanto tempo chorar. Os olhos castanhos do meu ruivo amor estavam fixos além, do lado de fora da casa, naquele muro onde eu estava equilibrada, pronta para pular para o outro lado.
Eu estava a um pulo da liberdade.
Os lábios finos e rosados se moveram, formando duas palavras, mas era tarde demais. Eu sabia o que deveria fazer e dessa vez não deixei meu coração guiar minhas ações. Deixei que o meu cérebro me dissesse o que fazer, pulando para o asfalto frio e correndo até sentir meus pequenos pulmões arderem.
- Kitty, não! - seus lábios haviam dito naquele momento, mas era tarde.
Se eu tivesse dado ouvidos ao meu lado racional antes não estaria indo embora com uma bagagem tão pesada. Uma que continha emoções e lembranças torturantes e dolorosas demais para que eu pudesse carregar.
Então eu corri.
O ar daquela madrugada de junho estava gelado, mas não me importava com o aperto que isso e a corrida intensa faziam com meus pulmões. Eu tinha de correr para longe. Longe o bastante para nunca mais ser encontrada por humano algum.
Porém, antes, havia uma última coisa a fazer.
Meus passos incertos me levaram até os enormes portões do prédio de Arthur, sabendo que ele não estaria ali. Era sexta-feira, um dia de bastante movimento em seu restaurante. No entanto, notei que o Saborart devia estar sendo operado apenas pelos cozinheiros, uma vez que seu chef ainda estava no apartamento, onde a luz continuava acesa na sala e duas pequenas cabeças, uma felina e menor, apontavam na janela cada vez que um carro fazia barulho na rua abaixo deles.
De onde estava, pequena e oculta pelas sombras, eu não podia ser vista por eles e agradeci por isso. Eu não estava pronta para dizer adeus aos meus dois melhores amigos. Não estava pronta para lidar com o olhar de Marvin e Arthur ao descobrirem que seu plano havia falhado. Eduardo não se apaixonara por mim, ele me odiava agora. Ele sabia o que eu era e agora conhecia o meu segredinho sujo.
Continuei parada ali, em frente ao seu portão, deixando que o meu silêncio levasse, de alguma forma, meus agradecimentos e despedidas aos dois maravilhosos homens na janela. Eu jamais seria capaz de agradecer o suficiente ao humano Arthur e ao gato Marvin por tudo o que haviam feito por mim.
Eu sentiria falta de Tui. Sentiria falta da expressão encantada que seu rosto assumia quando estava envolto com seus ingredientes e receitas. Eu queria poder ter minha voz por mais alguns segundos, apenas, para poder lhe dizer o quanto eu era grata por ele ter me trazido de volta para casa tantas vezes, por ter me dado um lar e por gostar tanto da Kitty felina quanto apoiava a Catarina humana. Eu sentiria tanta falta do meu chef e amigo!
E também não saberia como dizer adeus a Marvin. Não quando eu sabia que deveria tê-lo escutado, que deveria ter tentado realmente ser uma gata, ignorando todas aquelas emoções conflitantes e dolorosas que agora me faziam tanto mal. Eu deveria ter aceitado seus braços estendidos. Mas agora não era hora de me arrepender, a sua amizade havia me feito maravilhas e eu o amava por isso.
Entretanto, eu estragara tudo. Eu destruíra tudo. Como sempre fazia.
Fora por isso que eu não quisera ir para os braços de Eduardo naquele maldito beco. Eu sabia que a partir do momento em que eu pertencesse a ele, eu iria arruinar tudo o que estivesse à minha volta. E eu estava certa.
Eduardo me odiava, eu transformara a vida de Arthur de ponta cabeça e ainda brincara com os sentimentos de Marvin. Como eu poderia querer dar lições de moral para Alice, chamá-la de destruidora de corações quando eu mesma o era? E das piores. Eu era ainda pior do que ela.
Escutei o som macio de patas se aproximando e vi Una atravessar as grades do portão com elegância e facilidade, aproximando-se até se sentar ao meu lado, inclinando a cabeça para que, assim como eu, pudesse ver a janela com as luzes acesas lá em cima.
Os seus olhos diziam o que eu não queria dizer. Um verde e outro azul, mas delicados e amorosos o suficiente para me deixar saber que a graciosa gata branca sentiria a minha falta. Ela sabia que eu estava partindo e por mais que não quisesse que eu me fosse, não poderia fazer nada para me convencer a ficar. Eu tinha de partir. Era o melhor para todos. Se eu ficasse, a destruição seria ainda maior.
Encostei meu pescoço no dela, numa espécie de abraço felino, estranho, mas confortável.
Lancei um olhar para a janela, mostrando Arthur e Marvin e ela assentiu, sabendo o que eu estava lhe pedindo.
Aqueles dois precisavam de alguém que cuidasse deles, que olhasse por eles. Eu esperava que essa pudesse ser Una. Ela havia se tornado uma boa e silenciosa amiga com quem eu poderia contar nos momentos de solidão no apartamento de Arthur.
Eu sentiria falta dela também.
Com um último olhar para a doce Una, e a vi assentir, se despedindo pela última vez e me deixando correr para a calçada, desaparecendo de seu campo de visão. Escutei um miado alto e o respondi, garantindo à gata que ela seria lembrada.
Era hora de ir.
Meus passos não eram incertos dessa vez. Eu sabia exatamente para onde ir e meus instintos felinos, ainda que eu tivesse estado naquele lugar apenas uma vez, sabiam exatamente para onde me levar.
O ar estava ainda mais gelado e os meus pensamentos ainda mais confusos. Alguns deles me diziam para voltar. Mas outros me levavam a correr ainda mais.
Eu não tinha sono. Não tinha fome. Eu tinha apenas uma obstinação boba de chegar ao meu destino. Eu só me contentaria ao ver aquele lugar enorme e vazio, quando eu soubesse que estava só e não havia nada à minha volta que eu fosse capaz de destruir.
Horas se passaram e muitos faróis de carros iluminaram meu caminho até a enorme praça, bem iluminada por seus longos postes. Aquele lugar era inacreditavelmente bonito a qualquer horário. E vazio, como estava àquela hora da madrugada, era ainda mais encantador.
Apenas eu atravessava aqueles lindos jardins em direção ao enorme prédio antigo onde uma enorme placa indicando que estava fechado para reforma não foi capaz de me parar.
Enfim eu estava em meu novo lar.
A chuva que deixara o céu daquela tarde escuro e cinzento, finalmente decidira cair, umedecendo meus pelos cinzentos. Tive de me abrigar de seus pingos gelados dentro do enorme museu. Subindo a enorme escadaria com cuidado, achando um espaço na porta principal onde me encaixei tão habilmente como qualquer felino, entrando no escuro lugar, sentindo o cheiro de mofo e cimento, mas acima de tudo, sentindo o cheiro da liberdade.
Minhas patas estavam doloridas, meus pulmões queimavam e minha cabeça estava dolorida com tantos pensamentos que não levavam a lugar algum.
O segundo andar foi o meu escolhido. Aleatoriamente, escolhi um dos muitos cômodos dali e decidi fazer daquele o meu quarto, notando que ele não era muito utilizado, já que não havia nenhuma marca de reforma nele ainda. Suas janelas estavam emperradas e por isso não fechavam, trazendo através de sua abertura um maravilhoso cheiro de terra molhada que se sobrepunha ao cheiro acre e antigo do museu.
Aquela era a minha nova casa.
Eu havia dito a Eduardo que, se desse tudo errado, eu viveria ali. E era exatamente o que eu estava fazendo, afinal, tudo dera errado. Tudo fora destruído. Minhas esperanças, meus sonhos, meu amor.
Fechei os olhos e deixei o cansaço fazer o seu trabalho. Meu corpo relaxou contra o piso frio e as imagens me inundaram. Primeiro os olhos doces e castanhos, penetrantes, depois os seus cabelos vermelhos sempre desarrumados. Eduardo estava deitado em meu colo e eu tinha dedos. Eu podia fazer o que mais adorava no mundo: passar meus dedos por seus cabelos ruivos e beijar a sua testa, pois eu tinha lábios também. Seus dedos se entrelaçavam nos meus e ele levava minha mão até sua boca, beijando meus dedos, subindo pelo meu braço até que eu estivesse deitada, inversamente, sob ele, tendo meus lábios beijados com todo o amor possível.
- Eu te amo, Kitty - dizia.
Meus olhos se abriram de uma vez e lancei um olhar apavorado ao meu redor. Nenhum cabelo ruivo, nenhum par de olhos penetrantes. Nada de agasalhos azuis. Nada.
Apenas paredes desgastadas e o ar frio da chuva. E isso me aliviou, pois eu sabia que enquanto estivesse ali, estaria tudo bem. Eu estava longe de tudo, não criaria problemas ali. Eu não era uma ameaça ao coração de ninguém a não ser o meu próprio. E era uma refém das lembranças de Eduardo, sim, mas isso teria de passar em alguma hora.
Eu o esqueceria. Não naquele dia. Nem nos próximos cem anos, mas isso aconteceria em algum momento.
Enquanto eu estivesse ali, com a chuva fria como companhia, estaria tudo bem. Eu estava machucada, partida, irreparavelmente dolorida, mas estava bem.
No fim, eu estava sã e salva.
Amaldiçoada e sem um final feliz.
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Kitty
Любовные романыATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...