Desafiada.
Furiosa era uma palavra que sequer começava a descrever como eu me sentia.
Ficar ali, parada, na frente de Arthur Nogueira enquanto ele mantinha aquela expressão sarcástica, com uma sobrancelha apenas erguida, estava tornando tudo ainda pior.
Porém, Marvin não desistira. Na verdade, ele continuava exibindo um sorriso convencido enquanto esperava que Arthur abrisse por completo a porta de seu apartamento e assim pudessem conversar melhor.
Talvez, quando eu pudesse me comunicar, num dia distante, eu pudesse ensinar Marvin Padilha sobre abordagens. Porque, evidentemente, chegar ao apartamento de alguém dizendo que a gata de quem ele estava tomando conta era uma amaldiçoada, que poderia se transformar em humana a qualquer momento, contanto que as palavras mágicas fossem ditas alto o suficiente, não era uma boa maneira de começar com esse assunto.
- Ok - disse Tui com a expressão de desdém absolutamente justificável. - E você espera que eu acredite nisso?
E quem poderia condenar Arthur por não acreditar. Nem eu mesma acreditava.
- Por que não acreditarias em mim? Estou a falar a verdade.
O nervosismo fazia o sotaque de Marvin ficar ainda mais intenso e a situação ficar ainda mais surreal. Até mesmo Una se aproximou da porta, observando a cena com a sua expressão simpática e adorável, aguardando o desfecho daquela palhaçada.
- Amigão, você aparece na minha casa, com a gata do meu amigo, dizendo que ela é uma moça que foi transformada em gato e precisa ser libertada da maldição e espera, realmente, que eu acredite nisso? Pelo amor de Deus! Kitty é uma gata de rua que meu amigo Eduardo encontrou. Nada além disso.
Arthur encarou-me, como se tendo certeza de que eu era o que ele estava tão veementemente afirmando e eu, por minha vez, exibi minha melhor expressão felina.
- Você usa drogas? Precisa de dinheiro? Eu não tenho muito aqui, mas no restaurante...
- Não quero a porcaria do seu dinheiro! - dei um ganido estranho, já que a raiva de Marvin
fizera com que ele me apertasse com um pouco mais de força. - Eu sou Marvin Padilha e não uso narcótico. Estou realmente lhe dizendo a verdade.
A voz de garoto português expressava todo o seu ultraje e eu estava rindo internamente, apesar de todo o drama envolvido, a situação era hilária, com a descrença de Arthur e a insistência do ex-gato.
- Marvin Padilha é um gato, cara. Agora saia da minha casa ou serei obrigado a chamar a segurança do prédio. Eu posso te arranjar um trocado por ter achado a Kitty, mas nunca mais apareça na minha frente.
Fui tomada das mãos de Marvin tão subitamente que quase perdi a cena a seguir, quando deveria dar algum crédito a Arthur por ter tentado fechar a porta, mas não foi muito bem sucedido, fechando-a no pé de Marvin que o deixara ali estrategicamente para não ser colocado para fora.
- Posso provar.
Eu jurava por todos os deuses felinos que arranharia até a bunda de Marvin se ele ousasse fazer o que eu pensava que faria.
O relógio captou a atenção de Arthur novamente. Eram quase oito da noite e ele já deveria estar no restaurante há um bom tempo. Ainda assim, Marvin continuava ali, insistindo numa história que ele acreditava ser completamente estúpida, impedindo-o de seguir para o seu trabalho. Balançando a cabeça, cansado, observei do meu ponto aquecido no colo de Arthur, finalmente deixar que a porta fosse aberta, permitindo que Marvin entrasse em seu apartamento.
Se era assim que ele procedia com qualquer louco que aparecia em sua porta com as histórias mais malucas possíveis, não era de se estranhar o alto índice de furtos na cidade de São Paulo.
- Estou pedindo apenas a sua ajuda, nada mais. Estou dizendo a mais completa verdade. Kitty é sim uma amaldiçoada, como eu. Somos gatos até que as palavras mágicas sejam ditas e então voltamos a ser humanos. Porém, por pouco tempo. - Ele explicou enquanto andava incerto pela sala de estar do cozinheiro.
Fui colocada no chão e, depois do dia completamente intenso que eu tivera, não perdi tempo em me esparramar no sofá, onde Una sentou-se logo em seguida, elegantemente.
- Eu preciso de sua ajuda, Arthur. Eduardo Molina é quem pode quebrar o feitiço de Kitty. É ele quem permitirá que ela fique humana o tempo todo.
- Já chega!
Com um movimento que eu não previa, Arthur o segurou pelo braço e o arrastou em direção à porta, sob o meu olhar confuso, espelhando o de Una que provavelmente não tinha ideia da confusão que estava acontecendo diante de si.
- Eu queria que você fosse humana, Catarina.
Maldito!
Maldito Marvin Padilha! Duas vezes no mesmo dia? Eu havia perdido a esportiva completamente. Saí correndo pela sala e me atirei em sua perna, o arranhando com força, sem me importar com o seu choro alto de dor e nem com Arthur que, notando a minha agressividade, correu para ajudar o estúpido amaldiçoado ao invés de me ajudar a bater nele para valer. Tui me segurava com força, tentando me afastar de Marvin, me encarando como se eu fosse uma criança birrenta.
Aquele filho da mãe estava prestes a acabar com a minha vida e eu não podia nem descontar com alguns arranhõezinhos? Qual era a justiça daquele mundo?
- Em meia hora, no máximo, ela se tornará humana. Eu usei suas palavras mágicas.
Por que as pessoas não podiam cuidar das próprias vidas? Arthur deveria estar realizando o seu talento e cozinhando para a elite paulista, já Marvin deveria estar cuidando de descobrir como desfazer a própria maldição. E todos, sem exceções, deveriam me deixar em paz! Entretanto, lá estavam os dois, respirando com dificuldade enquanto me encaravam com desconfiança.
- Meia hora é tudo o que você tem, portuga. Se em meia hora, nada acontecer, eu chamo a segurança para você.
Marvin sorriu satisfeito e eu me desesperei. Arthur se abaixou, pegando-me em seu colo, com força, observando-me com cautela, tentando definir o que os tremores em meu corpo poderiam significar.
Pois eu lhe explicaria: significava medo. Significava que graças a Marvin, eu seria obrigada a expor a aberração que eu era a mais alguém. Arthur, apesar de tudo, era uma pessoa a quem eu aprendera a estimar. Gostava dele o bastante para não desejar receber dele o olhar de asco que todos pareciam me lançar quando descobriam quem eu realmente era.
- Deixe que eu a segure, Arthur. Ela tentará fugir, mas não posso deixar que isso aconteça.
Fui passada de volta para as mãos macias de Marvin com uma certa incerteza e Arthur continuou parado a uma distância segura, enquanto observava o moreno se sentar em seu sofá, pacientemente, pronto para continuar ali até que o fim da meia hora chegasse.
- Eu vou libertar você, Kitty, mesmo que seja uma malvada ao me arranhar.
Arranharia de novo se tivesse oportunidade, mas a última transformação havia cansado o meu corpo o bastante para que, junto com o esforço da luta contra Marvin, eu não tivesse forças para atacá-lo uma vez mais.
- Por que está fazendo tudo isso?
- Porque gosto dela. E sei como é ser um amaldiçoado. - Marvin ergueu a cabeça olhando nos olhos azuis e ainda céticos de Arthur Nogueira. - Imagines como é ser um humano preso em um corpo felino, com todos os seus movimentos limitados, tendo de se comunicar apenas através de miados e rosnados que os humanos não compreendem. Eu adaptei-me, mas Kitty não.
- Como assim?
- Ela não consegue se comunicar com outras espécies. Eu consigo falar enquanto estou em minha forma humana e quando felino, sou capaz de compreender outros gatos, apenas. Mas Kitty não consegue se comunicar em forma alguma.
Do outro sofá, Una dá um miado estranho e Marvin ri. Mesmo em sua forma humana ele compreendera o que ela dissera e a gata branca pareceu ofendida por ter se tornado motivo de chacota.
- Certo. Vou fingir que acredito. Mas por que acha que o Edu é capaz de quebrar a maldição dela?
- Não sei ao certo. Cada maldição se parte de uma maneira diferente. Depende de quem a colocou, porque e como a colocou. Mas acho que a magia de Kitty tem a ver com o amor.
Meus olhos se arregalaram. Marvin chegou tão perto da verdade que eu até me assustei. Era impossível que ele soubesse o que se passara comigo, mas ainda assim, ele sabia de alguma forma.
Como se fossemos conectados.
- E Eduardo...
- Kitty o ama. Não sei por que, uma vez que ele não tem atrativo algum, mas ela o ama.
Arthur deu uma risada seca e me encarou com piedade. Algo me dizia que ele estava começando a acreditar e isso me colocava certamente em maus lençóis.
- Certo, se Edu amar Kitty isso vai acabar?
- Não sei - Marvin foi tão sincero que a ele mesmo, fazendo com que abaixasse a cabeça, pensando em uma resposta mais objetiva e completa para dar ao cozinheiro. Entretanto, nada lhe veio. Os dois continuaram ali, parados, sem dizer nada um ao outro, enquanto esperavam que a maldição começasse a se reverter.
Para que o tempo passasse mais depressa, ao menos para mim, pensei no museu que eu visitara a pouco e em como seria esplendido morar em um lugar como aquele. Ainda que estivesse um tanto mal tratado e coberto por mofo, com paredes descascando e todo o mais, aquele lugar jamais perdia a sua elegância. Um lugar perfeito para uma felina.
Foi então que a primeira pontada de dor começou.
- Pegue um roupão para ela - pediu Marvin, segurando-me com mais cuidado, evitando que
seu aperto me machucasse ainda mais do que a transformação já o fazia. Eles observavam o meu corpo se retorcer em dor, e Arthur não pensou duas vezes antes de subir as escadas, apressado. A dor me dilacerava. A mesma coisa que sempre acontecia, mas com a qual eu jamais me habituava.
Parecia que eu estava sendo fatiada, virada de dentro para fora, como uma peça de roupa usada.
Era doloroso, irritante, horrível.
Eu odiava as transformações e passara por duas no mesmo dia, graças a Marvin.
Aquele gato metido a português merecia morrer. Realmente.
Arthur voltou correndo, com um roupão preto e felpudo nas mãos e olhou atentamente para Marvin que me colocava no chão, dando mais espaço para que eu pudesse prosseguir com a
transformação.
Fechei os olhos, querendo que nenhum dos dois me visse naquela situação tão vulnerável e Marvin, deixando o roupão ao meu lado, demonstrando sua educação, virou-se de costas, obrigando Arthur a fazer o mesmo, deixando-me ter um pouco de privacidade enquanto os últimos espasmos de dor percorriam o meu corpo.
Então, tão de repente quanto começava, a dor parou. Recolhi o roupão do chão e o vesti, sentindo-me fraca demais para sequer me levantar, por isso continuei sentada no chão, apoiando a cabeça contra o sofá, respirando fundo enquanto esperava a tontura e o enjoo passarem.
- Pronto.
Marvin foi o primeiro a se virar, sorrindo docemente na minha direção enquanto se aproximava, colocando um fio de cabelo atrás da minha orelha, sentando-se ao meu lado. Uma de suas mãos buscou a minha e eu deixei que ele o fizesse, sem forças para qualquer outra coisa.
Arthur estava imóvel. Seus olhos arregalados, fixos em mim, sabendo que Marvin havia dito a verdade o tempo todo. Eu não era simplesmente uma gata de rua, afinal. Surpresa!
- Oh, meu Deus. É verdade!
Infelizmente era. E agora ele me olharia como se eu fosse parte de um enorme circo de horrores. Prazer, Kitty, a aberração da noite, será um prazer entretê-los.
- Sim, mas ela está cansada demais. Ela já havia se transformado mais cedo e esse é um processo muito doloroso e cansativo.
- Mas... Mas...
- É por isso que quero libertá-la da maldição. Kitty é mais do que felina, ela jamais se adaptaria à vida de uma gata e, além disso, - seus olhos observam nossas mãos entrelaçadas e eu sorria, triste, sabendo exatamente o que ia em sua mente naquele momento - ela ama a um humano.
- Eduardo - completou Arthur.
Sim. Eu amava Eduardo. Mas de que adiantava todo aquele show se Duda nem me queria como sua gata, quem diria como humana. Fora lindo e tocante da parte daqueles dois quererem me ajudar, mas não daria certo. Não havia nada a ser feito além de continuarmos com nossas vidas.
- Uau!
Arthur não tinha palavras, apenas se jogou no sofá, ao lado de Una, que logo correu para o seu colo, assustada com o que tinha presenciado, ou talvez desejando que o mesmo pudesse acontecer com ela e que a alvíssima gata pudesse se tornar humana. Quem sabe?
- Eu e Ed somos amigos desde a quarta série e me orgulho de sermos capazes de manter essa amizade há tanto tempo. Escutamos os conselhos um do outro com frequência, sabe? - disse Arthur, coçando entre as orelhas de sua gata. - Ele esteve lá por mim quando meu pai me colocou para fora de casa e eu estive lá por ele quando a sua mãe faleceu. Eu já lhe disse várias vezes que ele está apenas perdendo tempo com Alice. Já a conhecia de muito antes, uma oportunista que se joga no colo de qualquer homem com um sobrenome válido nessa cidade. Ela até mesmo tentou comigo, mas a notícia de que eu havia sido deserdado não demorou muito a se espalhar e a espertinha se afastou o quanto antes.
- Alice?
- Sim, a namorada de Eduardo. Uma verdadeira vadia interesseira que parece adorar ver Eduardo sofrer e se satisfaz sabendo que quem causa a sua tristeza é ela.
Mas era assim que ele a amava. E eu, mais do que ninguém, sabia que por mais que fosse errado ou impossível e danoso, não havia como parar um amor. Eduardo amava Alice, assim como eu o amava.
- E este homem gosta dessa mulher tanto assim para deixar que ela lhe faça isso?
Encarei Arthur à espera de sua resposta. Eu já a conhecia, mas ouvi-la dos lábios de seu melhor amigo faria com que a informação se assentasse melhor em minha mente. Ajudaria a entender que o meu lugar não era entre os humanos. O quão proibido era nutrir sentimentos quando se era uma gata.
- Duda se acostumou. É o que ele conhece por amor... Se Alice diz que o ama, ainda que seja mentira, ele a deixa voltar, todas às vezes. Ele deixa que Alice faça dele o que quiser, porque acredita que o amor seja assim.
Não. O amor era mais do que simplesmente aquilo e até eu mesma sabia disso. Era dolorido, sim, mas fazia você se machucar para não ter de machucar a quem se amava. Nunca o contrário, jamais o contrário.
Os olhos azuis de Arthur se apertaram e sua testa se franziu enquanto me encarava com firmeza.
De repente, estava de pé, num átimo, apontando para mim com a expressão mais espantada que eu já vira em seu rosto.
- Oh, eu sabia! Você é a moça que Eduardo encontrou na sua casa. A moça dos olhos de gato. Eu sabia que os seus olhos me eram familiares naquele desenho. Era você, Kitty!
Assenti, envergonhada.
- Eu jamais o tinha visto tão empolgado do que quando ele te encontrou como gata e por mais que você fosse uma metida, era perceptível como ele ficava entusiasmado quando você estava por perto. E a sua versão humana também fez bem ao meu amigo. Ele falou de você por semanas, dizendo o quanto era bonita e queria te encontrar de novo. Mas então você sumiu e... Alice voltou.
- E o que faremos?
- Kitty, - Arthur se ajoelhou no chão, à minha frente, olhando firmemente em meus olhos - é possível que Eduardo termine a sua maldição? Realmente possível?
Fechei os olhos e não tive forças para mentir, por isso, do meu modo silencioso, apenas acenei com a cabeça. Sim, Eduardo poderia ser aquele que me faria livre. Os dedos de Arthur passaram pelo meu rosto, delicadamente, e eu sorri agradecida por ele ter acreditado em mim. Por não ter fugido ou me encarado com nojo por me tocar.
- Então você terá a sua maldição quebrada, Catarina. Eu prometo.
Eu não acreditava em promessas. Quatrocentos anos haviam me ensinado a não acreditar. Elas se desmanchavam e se quebravam.
- Eu prometo.
Marvin repetiu e eu fechei os olhos, sabendo que não havia como cumprirem suas promessas.
Eu era amaldiçoada e, por mais que tentassem, era impossível obrigar que alguém amasse outra pessoa. O coração de Eduardo já estava repleto de Alice e por mais que tentassem, que dessem o melhor de si, isso não mudaria.
Eu sempre seria uma gata. Eduardo sempre seria de Alice.
E era melhor assumir e compreender esses fatos antes que tudo se tornasse mais doloroso.
Minha cabeça se apoiou no ombro de Marvin, sentindo o sono e o cansaço me atingir com toda a sua força. Eu mal pude ouvir enquanto os dois homens planejavam a maneira exata de conseguirem me fazer livre da maldição.
Tudo o que eu queria era ter voz e poder lhes dizer que estavam gastando seus esforços em vão.
Eu era apenas uma gata.
Mas, enquanto os dois homens planejam a minha liberdade, eu apenas permaneci ali, com os olhos fechados, esperando que aquele dia terrível terminasse.

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Kitty
RomanceATENÇÃO: "Essa é uma obra da escritora nacional Elle S. Postada nessa plataforma por Anna Santos" *** Kitty é uma gata sarcástica e cheia de mistérios que aprendeu a viver nas ruas há mais de quatrocentos anos. Indepen...