38. Calvário plúmbeo

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O ar é quente e aparentemente pesado, luta para entrar em meus pulmões, resvala para dentro de meu corpo como navalhas perfurando minha carne. O som de meus passos enquanto corro pela grama rala do jardim parecem bombardeios contra meus tímpanos, meu corpo parece pesar toneladas a cada passada.

Entre a visão turva por minhas lágrimas, assisto com extrema urgência a casa em chamas que se aproxima. Vejo-me gritar seu nome, as cinco letras cortando o ar com violência, o desespero me sufocando gradativamente enquanto percorro o que parecer ser uma eternidade.

Certa vez, assisti minha mãe entrar em desespero a me ver ter uma forte crise asmática. Ela achou por longos e intermináveis minutos que fosse me perder, que eu a deixaria só, apenas com as lembranças de momentos até então comuns para poder relembrar meu rosto.

Eu não morri naquele dia, muito menos impedi minha mãe de obter mais memórias comigo. Entendi que a família era importante, tão importante que qualquer coisa mínima que nos ameace tirar, parecia mil vezes pior quando sentida.

Não dava valor para os momentos até então banais que Gemma, senhora Anne e eu criamos dia após dia, as amava é claro, mas não com a devida e completa importância que lhe era merecida. Não até aquele dia.

Aprendi de forma cruel ao ver o desespero e angústia espelhados nos traços faciais de minha mãe a dar valor ao agora, aos momentos bons que possam parecer pequenos naqueles segundos parados no tempo.

Dentro do meu carro enquanto dirigia com toda velocidade que me era cabível, passo pelo que minha mãe passou. Os segundos parados no tempo de uma forma angustiante, os quilômetros a percorrer pareciam dobrar de tamanho.

O sorriso, as expressões de Louis passando por minha memória, sua doce face transvestindo um sorriso que apenas ele conseguia dar. As tardes solitárias aos pés da grande janela na pequena biblioteca que já continha seu cheiro, apenas por se aconchegar sempre que queria e precisava naquele cômodo.

Cada parte de meu espírito se fragmenta com os segundos angustiantes, os estilhaços transpassando por meu corpo e dissipando-se rapidamente, posso, enfim, entender que tudo que sou sempre foi um frágil vidro que Louis sustentou. Louis sempre foi minha base, e eu nunca vi. Eu nunca enxerguei.

Tropeço próximo à fita de segurança posta pelos bombeiros, meus dedos agarram os fiapos de grama que meu tato alcança. O som das sirenes nas viaturas parece um pano de fundo horroroso, os gritos das pessoas aglomeradas no grande portão negro atrás de mim são estridentes demais, parecem agulhas que transparecem em minha audição e perfuram meu cérebro.

Seu nome rasgou o ar mais uma vez, a agonia encharcando meus pulmões e me afogando aos poucos. Minha voz morre em minha garganta, saindo falha por minha boca. Meu corpo se inclina para frente enquanto grito e só então sinto os dedos gentis de Amélia contra meus ombros. A senhora se ajoelhou, ficando da minha altura, levando seu corpo ao meu com um choque em um braço desengonçado, tentando ser mais gentil que podia naquele momento, partilhando a mesma dor que eu. Mas eu não consigo retribuir seu ato, ficou imóvel assistindo os bombeiros trabalharem contra o fogo, respingos do jato da mangueira recaem sobre a grama, molhando o tecido de minha calça eventualmente.

- Foi tudo tão rápido... Querido, eu- Amélia murmura contra meu ombro, seu choro corroendo seu tom de voz - Estava nos fundo quando o fogo começou... Desculpe-me Harry.

Então ficamos ali, ajoelhados juntos. Os segundos parados no tempo mais uma vez. Em algum momento vejo Jake arrastar-se para meus joelhos, deitando contra a grama fria e molhada, tão tristonho quando nós dois. Esfrega sua cabeça lentamente contra o tecido da minha calça, um consolo lento.

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