Sofia/Aprendiz

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" Eu sei que vou morrer feliz" - pensou Sofia ao abrir os olhos. Uma certa dúvida lhe ocorria. Sonho ou certeza? As vezes seus sonhos eram apenas sonhos, como o dia em que sonhou que beijava o personagem do seu livro favorito, outras vezes eram certezas do que viria acontecer, como nessa manhã chuvosa que desde a
semana passada ela já tinha alertado seu pai para não deixar roupas no varal, a chuva so passaria no fim da
tarde e as roupas molhavam no varal e ela não podia fazer nada. A maior parte do seu dia era dentro de casa,
sendo educada pelo pai professor, e ótimo professor. Carlos sempre foi um pai preocupado e buscava preencher tudo o que a filha não podia ter. O mundo fora de casa.
"É perigoso demais". - Ele dizia toda vez que sua filha queria sair ou permanecer muito tempo na janela
olhando o horizonte. Sofia sabia que era perigoso, a cada dia o noticiário mostrava novos casos de pessoas como ela, seres humanos com poderes extraordinários, E.O.S, e as notícias não eram boas. Mortes, roubos e atentados terroristas contra o governo transformaram o mundo em
um campo de batalha e Sofia era uma arma, era o inimigo. Eles eram chamados de monstros, aberrações,
alienígenas, demônios, a cada momento era um nome novo, poucos os chamavam de pessoas extraordinárias.
Sofia não se sentia assim, extraordinária, ela só queria
sair sem correr o risco de ser levada como uma criminosa, ela sábia que não faria as coisas ruins que outros E.O.S andavam fazendo, ela só queria ser livre, se ver livre das
quatro paredes do seu quarto que carregava uma certa melancólica, sem televisão, rádio ou computador, muito menos um celular, não havia com quem se comunicar, para diversão uma pequena estante cheia de livros, um guarda roupas sem espelho, com roupas sem graça e sua cama. Esse era o seu mundo. Se ela iria morrer feliz como tinha visto e sentido, ela somente queria saber, quando. - Quando? - Sussurrou para o nada. Sofia sabia que não teria essa resposta quando quisesse, ver o futuro era algo fora de seu controle. No começo ela apenas podia sentir as coisas simples de forma intuitiva, como o que teria para o almoço, mas algo estava mudando dentro de si, agora ela sentia e via o amanhã quando ele quisesse se mostrar pra ela. Viu e sentiu sua feliz morte. Seu semblante estava em paz, seu coração parava de bater e o ar saia para nunca mais entrar. Sofia sorriu porque o sentimento de paz e felicidade era muito grande, maior do que a própria morte.
- como? - insistiu em querer saber falando sozinha, mas não tinha o controle, tinha apenas o tormento de ver e sentir sem respostas, de forma abstrata. A única coisa que Sofia não queria prever era as constantes mudanças de casa. Sofia e seu pai haviam mudado a pouco tempo para uma cidade do interior de São Paulo. Desde a morte da sua mãe, seu pai e ela viviam fugindo. Sofia não sabia porque, mas não acreditava na
morte da mãe, a falta de fotos, documentos, o nome falso, Samanta, não era esse o nome de sua mãe, ninguém podia mentir para ela. Alguma coisa tinha acontecido no
passado, mas Sofia somente podia ver o futuro e tinha que se contentar com o que seu pai falava, pois sabia que
ele so queria o melhor para filha amada. Quando a tal, Samanta, supostamente morreu ela era pequena para entender, três anos e mesmo bem desenvolvida ainda era
um bebê e era impossível se lembrar da sua mãe. Do acidente ela lembrava. O carro se aproximando, a luz forte, tão forte, brilhando e sons de gritos. A lembrança era como um pesadelo. Conforme crescia Sofia questionava o
pai o tempo todo com perguntas simples. Mas que pareciam um tormento. "Quem era sua mãe?", "Se era como ela, E.O?", "Quais os poderes?". Um dia depois de tanto insistir seu pai lhe disse como era a aparência da falecida. Sofia se levantou da cama cansada de ficar deitada e olhou o seu reflexo na janela molhada, ela era a cópia da mãe, pele alva, longos cabeços castanhos claros e ondulados, e os olhos oblíquos esverdeados, de
corpo magro e esguio. Assim deveria parecer sua mãe como um reflexo de si mesma. Era isso que o pai dizia, e
ela sabia que era verdade.

Com recém completados dezoito anos, Sofia era uma mulher presa em um mundinho de menina que tem que ser cuidada o tempo todo, uma bolha de proteção. "até quando?" - pensava. Ela não sabia, mas sentia que seu tormento estava prestes a terminar. Ela morreria feliz e se o preço da sua liberdade fosse a morte, ela morreria, mas antes viveria.

Sofia não compreendia o que fora aquele dia do acidente que desapareceu com sua mãe, também não compreendia claramente o que estava por vir em sua vida, algo se aproximava a cada dia que se passava, a sensação era como se esperasse ansiosamente por algo, ela queria aquela sensação de surpresa. O futuro era turvo, as vezes audível, como milhares vozes ao mesmo tempo e tátil como um banho de água gelada. Um arrepio na nuca e
seus olhos misturavam a paisagem do agora com o  desconhecido.

Sofia olhou para a porta seu quarto. Ela seria aberta. O som da porta ruindo era como um déjavu.
- Filha. – entrou o seu pai. Carlos. Ele estava molhado, segurava na mão uma pasta com livros, vinha da escola. O professor de português e Literatura sorriu para filha. Seus óculos estavam sujos. Sofia beijou a bochecha molhada do pai e lhe tirou os óculos para limpar. Ela observou o rosto envelhecido do pai. Algumas rugas, pele branca, cabelos lisos
castanhos avermelhados, que hora ou outra davam lugar a alguns fios brancos. O homem magro de quarenta e cinco anos e rosto cansado se sentou na cama da filha com o olhar perdido, com medo.

– Sim, quando vai
ser? - respondeu Sofia já sabendo o que ele ia falar. Seu pai já não ficava mais surpreso, a filha quase sempre sabia o que ele iria dizer.
– Em breve. Não podemos ficar mais aqui. Está perigoso demais no Brasil. -  Sofia tentou manter a tranquilidade, mais por dentro ela sentia apenas revolta. Não pelo seu pai, que só queria proteger ela, mas sentia raiva do sistema que já há avia condenado sem ela ao menos ter feito algo de errado. – Não tem nem um mês. Pai acabamos de mudar. Vamos para onde? Norte, sul, nordeste? – pensou por um momento, respirou profundamente. Calma era mais fácil de saber.
– Para outro País. - disse Sofia.
- Sim minha filha. Vamos chegar na Europa e de lá embarcamos para o Japão. Vamos precisar de passaportes falsos, teremos que nos passar por turistas italianos, já que os brasileiros estão proibidos de viajar. Já que nos tratam como doentes. Por um momento Carlos perdeu sua complacência. Era difícil para ele também. Sofia começou a chorar, ultimamente ela chorava bastante. Carlos era um pai aplicado e que se importava demais com a filha. Não queria fazer ela se sentir culpada. Ele a abraçou forte.
- Eu, sou um peso? - disse ela em lágrimas.
- Não. –  disse Carlos.
- Eu sei que sou, pai, alguém como eu deve ir para o Complexo, dizem que lá é bom. - mentiu.
- Não diz isso minha filha.
- Um campo de estudos para entenderem o que aconteceu, talvez eu possa até ajudar, talvez eles possam me ajudar, quem
sabe... – às lágrimas brotavam como fonte. Sofia sabia que o Complexo 
aprisionava e estudava os E.O.S de forma agressiva, desde que foi fundado. Os avanços mostravam cada vez mais o que aconteceu e como os seres humanos foram modificados em laboratório, tudo ficou ainda mais claro quando a primeira dama se revelou uma E.O. Houve uma crise no governo, mas o presidente ainda não tinha sido caçado. A mídia era comprada, alienada e a sociedade usada. Uma população desinformada  é  o mais  o fácil  e se manipular.
– Eu preciso ser levada. - Disse Sofia olhando nos olhos do seu pai.
– Não, você não! – bradou o homem, com lágrimas  e nos olhos. É nesse  o exato momento Sofia soube.
– Pai, eles a levaram. - uma pausa insuportável fazia Sofia sentir toda saudade que seu pai sentia da esposa, ele ainda a amava, mesmo depois de três todos esses anos.
- Sim. - disse Carlos.
- Papai, eu vou cuidar você. Eu vou te proteger. - abraçou o pai fortemente.
- Nunca vou te deixar sozinho, nunca vou deixar que te façam  nenhum mal. Eu prometo – disse Sofia passando as mãos no rosto do pai.
- Não, meu amor. Sou eu, eu que devo lhe proteger.
- Papai eu não posso te perder. - uma sensação tomou conta de Sofia, como se tivesse sido mergulhada em uma
mar de gelo. Sua respiração ficou afoita, seu pai passou mão em seus cabelos e a abraçou forte. Ela estava suando frio.
– Vou pegar todo dinheiro que tenho no banco, compraremos passagens com um amigo, teremos documentos falsos, começaremos
uma vida nova. - "uma falsa vida’’ pensou Sofia. Seria assim para o resto de suas vidas, uma vida falsa, uma mentira e ela sentia apenas frio, e via tudo escuro, ela não podia dizer nada ao pai, não queria assustar ele, fingiu dormir e deitou-se na cama. Carlos ficou ali um tempo afagando o cabelo da filha, mas ela não sentia, não havia som de chuva, de respiração, de coração batendo. Era como se ela tivesse morrido, derrepente não havia nada, não sentia nada.

Vol. 1 Heróis do Amanhã - NOVA ERA   Onde histórias criam vida. Descubra agora