Sofia/Aprendiz

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Negação. É a primeira fase do luto. Sofia imagina que a qualquer momento o seu pai entraria pela porta da mansão, iria cumprimentar a senhora Agnes, que estava sendo tão prestativa e amável. E logo em seguida a levaria embora, como tinham combinado. Estava até aprendendo espanhol e já imaginava quantas pessoas iria conhecer com a nova identidade. A nova vida.

Os últimos dias na mansão de Agnes estavam sendo um alívio para tanta dor. O pai estava enterrado em um bosque próximo e Sofia ia várias vezes chorar em seu túmulo. A jovem estava se alimentando pouco, não tinha fome, só queria dormir e ver o pai ao amanhecer. Ouvir ele dizer que está tudo bem. Sentir a mão dele suja de giz secando as suas lágrimas.

"Eram somente os dois" - Tinha dito na entrevista com César. Sabia que a mãe não tinha morrido, mas não tinha a menor ideia de onde encontra-lá, ou se ela queria ser encontrada. A única coisa que conseguia pensar era no pai, recém assassinado. O barulho do tiro ainda latejava em sua mente.
Tão alto, insuportável, tão alto quanto o grito que dera logo em seguida. Não viu mais nada depois. Estava conectada com o pai no momento de sua morte, pode sentir o velho coração cansado parar de bater e sentir o sangue jorrar do buraco em seu peito. Ver o presente era diferente de ver o futuro. No presente a dor era era mais intensa. Real.

Agnes disse a Sofia que ela teve um surto e liberou os poderes ao máximo e que agora estava exausta e não conseguia usado mais os seus poderes de clarividência. Kenji não parava de repetir que uma redoma havia sido criada nos quarteirões e que os automóveis flutuavam em volta da casa de Sofia. Definitivamente ela não se lembrava de nada. Até então, o seu poder não lhe permitia fazer essas coisas. O poder que tinha não foi suficiente para salvar o próprio pai. Era um peso doloroso.

- Oi. - ouviu a voz de um garoto. Era Ricardo. Os dois ainda não tinham conversado.
- Oi. - disse tímida. Ela nunca tinha convivido com tanta gente a sua volta. Achava Kenji engraçado, Alice maluca, Samuel bonito e Ricardo, definitivamente não sabia dizer.
- Como está?
- Eu...
- Não precisa. Desculpe. Isso não é coisa que se pergunta.
- Então, perguntaria o que?- disse Sofia se sentindo corar por conversar com um garoto. Ele deu um meio sorriso. A jovem ficou ainda mais tímida.
- Tem brigadeiro na cozinha. - Ricardo disse fazendo sinal para Sofia o acompanhar. Em cima da mesa redonda da cozinha um cheiro cheiro gostoso vinha​ de uma panela de brigadeiro enorme e fumegante.
- Toma. - Ricardo lhe deu uma colher. Sofia se lembrou dos momentos​ com seu pai em que faziam pipoca e assistiam filmes. "Eram somente os dois".
- Melhor, né? - disse ele.
- Sim. - Sofia sorriu, com a boca cheia de brigadeiro. Ricardo gargalhou, sua risada era linda aos ouvidos dela.

Doce quente, dedos sujos. Sofia comia com raiva, era a segunda fase do luto e Ricardo a estava ajudando a passar por isso. Enquanto comia chorava e ele não falava nada. Não precisava falar. Aquele mento era pra ser sentido.
- Brigadeiro! - Kenji entrou na cozinha correndo. Ricardo lhe deu uma colher e ele começou a comer. Os dois riram do menino que chegava da escola esfomeado. Sofia limpou suas lágrimas.
- Vem. - Kenji chamou Samuel e Alice que estavam na porta. - Tem bastante. - continuou o japonês.
- Você que fez? - perguntou Samuel a Ricardo.
- Sim. Sou bom nisso. - mentiu, havia pedido ajuda pra Kendra, que não sabia cozinhar e pediu ajuda ao pai. Um mestre na cozinha.

Samuel comeu, sua irmã não aceitou. Então ele encheu a mão de brigadeiro e esfregou na cara de Alice, ela gritou enquanto os outros caiam na gargalhada. Alice se rendeu ao gosto do doce e começou a comer também.

No fim da tarde Sofia colheu algumas flores no jardim para levar até o túmulo do seu pai. Ricardo pediu para ir junto. Os dois não falaram nada no caminho até o bosque. Ela podia sentir a irradiação dele ao seu lado. O garoto em chamas. E ela com coração batendo freneticamente. "Isso deve ser amizade" - pensou. Nunca tivera um amigo, ninguém pra conversar além de seu pai. Achou que por isso estava tão nervosa.

As belas flores enfeitavam o concreto. Flores mortas. - Estou morta. - disse Sofia.
- Ei... Não fala assim. - Ricardo pegou em suas mãos. As mãos dele eram tão quentes.
- Eu não sei outra forma de viver sem ele. - dizia tentando conter as lágrimas.
- Eu te ajudo...eu te ajudo. Mas fica bem. Vai ficar tudo bem.
- Jura?
- Sim. Eu prometo.

Deitar o rosto no travesseiro, estar aquecida entre os cobertores, ter a segurança de estar em um bom lugar eram coisas que iam acalmar qualquer um. Sofia estava pronta para se render, começou a prometer a si mesma que tudo iria ficar bem, que seria uma pessoa melhor, que iria levantar e tomar café da manhã com todos da casa e que não iria se permitir a chorar mais, secou. Era hora de encarar a nova realidade e ser alguém útil para si mesma. Procuraria força onde não tinha e se levantaria mais forte do que era. Promessas, sede de recomeço, vontade de viver. Alguma coisa estava mudando dentro da jovem. Um vazio começava a ser preenchido. Com sede, queria estar cheia.

O sono vinha, o corpo relaxava, os sonhos nasciam. Sofia estava a caminhar em um belo parque e podia ouvir o som agudo de crianças brincando. O dia estava realmente lindo e a garota andava a passos lentos e despreocupados. Flores por todos os lados cresciam, pássaros visavam e a brisa da primavera soprava esperança. Sofia olhava para as crianças e elas passavam direto por ela, não a viam. Acenou, tentou chamar a atenção, gritou! Mas nada. O mundo era lindo e ela não existia. Se sentiu em paz. Estava tudo bem. Essa era a terceira fase do luto. A  barganha com a dor era em troca de um mundo em paz. Valia a pena.

Vol. 1 Heróis do Amanhã - NOVA ERA   Onde histórias criam vida. Descubra agora