Alice/ Escudo

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O mundo tem essa incrível capacidade de se auto renovar. Seria algo perfeito, se não existisse o ser humano e toda a sua sujeira imunda, impregnada. Abusando da terra, usando mais do que precisa, matando a natureza. Reiniciando um ciclo de caos a todo momento.

Alice tomava um banho demorado queria se limpar de toda imundice que existia dentro dela. O externo aos olhos dos outros era lindo, delicado, inocente. Mas por dentro ela estava destruída. Uma ferida tinha sido aberta em sua alma e ela cobriu tempo suficiente para ela apodrecer e gangrenar. Precisava de uma amputação da alma. Mas não sabia como conseguir. Não sabia como fazer.

O centro de acolhimento a pessoas em situação de rua era precário. Não tinha espaço para atender tanta gente, muitos dependentes químicos sequer tinham acompanhamento psicológico. Os agentes sociais faziam tudo o que podiam, sem apoio nenhum, apenas com a esperança de que os direitos daquelas pessoas não seriam mais violados.

Depois do banho Alice tomou o café da manhã. Já estava acostumada com lugares como esse. Passara a infância toda de abrigo em abrigo, quando perguntavam demais tinha que fugir com o irmão. Dormiam na rua, sobre o asfalto duro e frio. Comiam do lixo se fosse preciso. Roubavam pra não morrer. E a mídia gritava excitada "Morte aos ExtraOrdinárioS!" - Não sabiam eles que extraordinário era não morrer de fome, sede e frio.

Sobreviver todos os dias era a única forma de viver, há tanto tempo que imaginava de outro jeito. Uma casa grande, uma cama macia, a mesa farta, as pessoas por perto, nada disso era suficiente quando se estava morrendo por dentro. De ódio, de medo, de desespero por não poder confiar em ninguém. Confiava no irmão. O amava demais. Tanto que sabia que eles tinham que se separar. Não podia contamina-lo mais com sua apatia, com sua covardia, com seus traumas.

- Agora você vai preencher a fixa? - dizia o agente social. Impaciente.

- Eu não sei escrever, já disse. - mentiu.

- Como uma moça tão bonita não sabe?

- Deve ser justamente por causa disso. Da beleza. - Alice já estava perdendo a paciência. Pegou a ficha e preencheu com informações falsas.

O agente social a olhava desconfiado. Ela sentiu que ele estava com medo que alguma coisa acontecesse no centro de acolhimento. O Homem não queria mais problemas do que já tinha. Alice se lavantou e se direcionou até a saída.

- Nós queremos te ajudar. - disse o agente.

- Não podem me ajudar.

Alice caminhou três quarteirões. Estava no centro da cidade, um lugar muito movimentado. Mas que não seria suficiente para se esconder. Precisava ir para floresta e de lá pensar em algum lugar pra ficar. Continuou a caminhada e apressou o passo quando percebeu que estava sendo seguida. Se escondeu. Prendeu a respiração. Se concentrou. Sentiu a presença. Era o agente.

- Babaca! Qual é o seu problema?

- Você é usuária de drogas?

- Não! Tá aí nessa ficha de merda. - se referiu ao papel que o agente segurava.

- Então eu sei qual é o seu problema.

- Problema? Sera que é mesmo um problema! - Alice já gritava. Se ele ligasse para o serviço do Complexo ela estava ferrada.

- Toma. - O agente lhe entregou um cartão.

"Centro de atendimento as mulheres".

O homem foi embora assustado o suficiente pra não voltar mais. Alice pensou o quanto estava na cara que ela era uma mulher com problemas. Talvez fosse seu sorriso que não aparecia, talvez fosse a vaidade que não existia, ou o comportamento agressivo. Sempre pronta pra se defender e fugir pra bem longe. Amassou o papel. Não tinha tempo pra essas coisas. Andou tempo suficiente pra entrar em um prédio velho. Viu algumas jovens conversando com um mulher de branco. Tinha meninas tão novas quanto ela era. Havia mulheres de todas as cores, tamanhos e idades. Tantas mulheres roxas. Chorou. Ela não era a única.

Já tinha perdido tempo demais. Estava completamente desorientada. Surtada. Correu pra pegar um ônibus que a levasse o mais longe possível. Queria saber como fugir de si mesma. "Qual é a saída, Alice?" - Numa soubera a resposta. Mas não desistia de se perguntar.

O trânsito como sempre e estava caótico. Viu da janela que agentes do Complexo estavam revistando os carros. Todos eles usavam cinza e estavam altamente armados. Munição pra uma guerra.

Alice acionou a campanha pro motorista abrir a porta. Ela o encarou com raiva pelo retrovisor e ele de má vontade abriu a porta. Alice correu por entre os carros e motos. O agente do complexo a avavisoté ela. Estava acuada. Não dava pra fugir, lutar. Morreria se fosse preciso. O homem passou por ela como se ela fosse invisível. Viu um jovem negro se concentrando. Era como ela. O menino acenou. Ela foi de encontro a ele.

- Tem uma pessoa que precisa falar com você. - disse o jovem.

- Quem?

- Alice temos que ser rápidos.

- Como sabe meu nome?

- Eu sei tudo sobre você. - falou olhando nos olhos dela. - Vai vir? - outros agentes do Complexo percebiam o colega desorientado. Alice seguiu o jovem. Entraram em uma galeria. Ele chamou o elevador. A porta se abriu. Tinha outro dentro. Os agentes entraram na galeria. O coração de Alice bateu em disparada. Entrou no elevador.

- Olá Alice. - disse o outro jovem de cabelos negros. Uma luz escura crescente a fez não sentir mais o chão sobre seus pés.

O chão estava inundado e seus sapatos ficaram encharcados. Estava escuro. Mas havia algumas velas acesas. "Que merda você fez, Alice" - olhou ao redor pra tentar fugir. Via de longe caminhando em sua direção. Sombras. Alice se assistiu. Como pudera confiar em dois estranhos. Estava fugindo. Mas não sabia pra onde. Queria voltar pra casa. Mas não tinha uma casa. As sombras deslizaram revelando o corpo de uma mulher. Velha. Os fios brancos estavam grandes e desalinhados. Percebeu que aquele lugar estava cheio de E.O.S. Todos iguais a ela.

- Criança, se aproxime. Ninguém vai te machucar. - disse a velha fazendo com que Alice ficasse ao seu lado.

- Você está tão destruída. Destrutiva. Eu sinto o quanto você é poderosa. O alimento do seu poder é a sua dor e você está transbordando.

- O que você sabe sobre dor? - começou a se irritar.

- Tudo. - respondeu a velha. - Tão pequena, sem pais, sendo jogada de lar em lar até cair na toca do lobo. Os homens são os verdadeiros monstros.
- ouvindo as palavras da velha, Alice não se conteve e começou a chorar. A desabar.

- Quando você está com uma dor de dente, o que você faz? Arranca o mal pela raiz. Só assim se livra da dor. Eu vou te ensinar criança. Eu vou te ensinar. - A velha passou a mão na cabeça de Alice a trazendo para seu colo, a protegendo como jamais fizeram com ninguém antes e a jovem tão carente, tão pertuba e distante de si mesma não conseguia fazer outra coisa se não chorar e soluçar. Ainda não compreendia o que era aquele lugar, quem eram aquelas pessoas e o que era aquela velha senhora. Mas algo dentro de si dizia pra voltar pra casa. Só não sabia pra onde deveria correr.

Vol. 1 Heróis do Amanhã - NOVA ERA   Onde histórias criam vida. Descubra agora