Kenji/ Vulto

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Um olho roxo, o soco no estômago e todo dinheiro do lanche levado pelos três brutamontes. Kenji permaneceu no chão gelado do corredor que levava até o pátio enquanto recuperava o fôlego. Era hora do recreio e todo mundo estava no pátio, Kenji ouvia o som das crianças brincando. "Se ao menos tivesse amigos" — queixou-se de sua condição solitária e miserável.  

Kenji já estava cansado, todos os dias a mesma coisa, os garotos mais velhos  lhe xingavam, agrediam, roubavam e iam embora com o seu dinheiro e o lanche. Os brutamontes alegavam que o japonês precisava fazer uma dieta. O show de violência também era psicológica, os três garotos cantavam rimas ridículas sobre ser gordo e faziam isso com prazer, apenas para se divertirem as custas de alguém que era "diferente". O sentimento de ser roubado ou apanhar não deixava o pequeno japonês frustado. A sua frustração​ era ter que se conter.

Kenji já tinha quatorze anos, mas sua estatura e aparência faziam ele parecer um menino de dez, talvez por isso os outros pré-adolescentes não socializam muito com ele, além do fato, claro, de Kenji ainda ser muito infantil e gostar de brincar com as crianças mais novas. Enquanto os colegas  de Kenji cresciam rapidamente ele se segurava ao máximo a sua infância, mas isso tinha um preço, para superar os problemas de socialização Kenji descontava sua carência e solidão na comida  e  já estava sobrepeso. Um japonês gordinho e baixinho. Assim ele era alvo fácil dos colegas da escola. Kenji queria levantar e dar um pontapé na bunda de cada babaca que ria dele. Revidar com socos e chutes como os seus ídolos de filmes de ação, mas não podia, se reagisse poderia ser perigoso.

No banheiro ficou um tempo olhando o seu reflexo no espelho, suas  bochechas  gordas estavam rubras e o olho esquerdo roxo. "Não deveria ter resistido". — pensou chorando o leite derramado, para o seu alívio o seu cabelo estava na altura do pescoço e esconderia fácil o olho roxo, assim sua vó não perceberia. Sua avó, Miuki, não enxergava bem,  mas em compensação poderia sentir facilmente tudo a sua volta, ela era muito sensível, sempre sabia quando o neto estava feliz, triste, com medo ou qualquer outro sentimento. Kenji tentava ser bonzinho para não preocupar ela, por isso  ficava muito tempo em casa estudando, quase não saia na rua e quando saia era pra ir pra escola ou nas reuniões do budismo. Ali sim era um momento de paz.

"Deveria ter trazido sushi" — lembrou-se da sugestão de sua avó. Se tivesse feito isso não lhe levariam o lanche. Os meninos da escola tinham nojo da comida japonesa. Kenji era o único japonês da sua turma, o estranho desajustado. Mas somente ali, naquela escola, em casa era diferente, no seu bairro era totalmente diferente. O lugar, composto em sua maioria por imigrantes japoneses tinha lojas, restaurantes e festividades sobre a cultura oriental. Parecia que todo lugar era melhor que a escola...em alguns momentos Kenji tinha certeza.

Todos já estavam na sala quando Kenji entrou de cabeça baixa, sua professora o olhou em reprovação, mas não lhe deu muita atenção, ele era um bom aluno, se sentou e permaneceu quieto, não queria mais confusão. O resto do dia ficou mais difícil por causa da fome, mas não havia nada para fazer em relação a isso. O mundo cometia às suas injustiças. Kenji aprendera desde cedo que ser diferente era perigoso, os garotos da escola agrediam o japonês gordinho, mas outras pessoas iriam machuca-ló ainda mais se soubessem que ele não era "normal". Não que ele tivesse alguma deficiência, ou comportamento perigoso. Na verdade o que ele tinha era algo a mais, um gene extraordinário que o fazia ser capaz de algo incrível.

Depois que o sinal tocou e todos correram para suas casas Kenji se aproximou da janela de sua sala de aula e olhou pra rua, para os carros e pessoas vivendo as suas vidas. Uma lágrima  escorreu do seu olho, encarou o sol sem piscar, começou a se sentir mais leve até que não sentia mais o chão, o seu corpo, suas roupas e sua mochila estavam turvos como uma fumaça espessa e de repente Kenji atravessou a janela se disipando no ar, se tornado parte das nuvens. 

Não dava para chegar em casa tão rápido então Kenji ficou sobre voando a cidade, ele ia tão alto que via tudo pequenino. As vezes ele parava em cima de algum arranha céu e fazia meditação em outras ele observava coisas que o assustavam como um acidente de carro uma vez, ninguém se feriu por que uma fumaça impediu que o carro caísse da ponte. Ninguém entendeu o que tinha acontecido. Teve uma outra vez que uma senhora ia atravessar a rua quando um ônibus a quase atingiu, por um triz e a senhora estava do outro lado da calçada agradecendo a Deus e todos os santos pelo milagre. Kenji sabia que era perigoso ajudar as pessoas, podiam descobrir quem ele era. Mas ele não podia se omitir. Havia um chamado dentro de si o levava para o perigo por que ele sabia que daria conta do recado. Alguma coisa tinha que fazer sentido e para Kenji salvar as pessoas era a resposta para aquilo que ele era. 

Assim que chegou em casa, no tempo que daria  a se tivesse pego um ônibus, um cheiro vindo da cozinha o fez abrir um imenso sorriso. O cheiro de yakisoba, era como se sua avó adivinhasse as coisas, Kenji jogou sua mochila na sala e correu pra frente da penela.
— Lave as mãos mocinho. — disse sua avó. A velha tinha todos os cabelos brancos, pele enrugada e movimentos lentos mostravam o peso das décadas. Miuki já estava com  setenta anos e mesmo assim não deixava de trabalhar, no andar de baixo da casa onde deveria ficar uma garagem havia uma máquina de costura e ali Miuki ficava o dia inteiro trabalhando , agora que a sua visão estava ruim a família de Vó e neto sobreviviam apenas com o dinheiro da aposentadoria, o que não era muito. A velha estava cansada, criava Kenji sozinha e conforme os anos avançavam a situação ficava cada vez mais difícil. Ás vezes Kenji perguntava dos pais e a única resposta era que eles estavam muito longe. Kenji não insistia em perguntar mais, não se atrevia a remexer no passado que sua avó fazia questão de esconder, mas uma forte intuição fazia Kenji ter certeza que o sumiço dos seus pais tinham a ver com o fato de serem como ele. ExtraOrdinárioS.

Depois do almoço, quando Kenji já tinha comido dois pratos cheios a sua avó se aproximou e tirou o cabelo de seu rosto. Kenji sentiu vergonha e medo. Sua avó passou uma pomada no olho do neto e depois lhe fez um cafuné.
— Amanhã vai levar sushi. — disse a Avó.
— Tudo bem. — respondeu Kenji. 

Vol. 1 Heróis do Amanhã - NOVA ERA   Onde histórias criam vida. Descubra agora