Ricardo/ Dragão Vermelho

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As cores eram vibrantes e intensas, de um alaranjado a um amarelo que virava vermelho em uma dança rítmica de  brilhos e movimentos eufóricos. Um efeito natural de beleza única e hipnotizante. Podia ser o por do sol que cobria o manto negro da noite e se dissipava dando espaço as estrelas, se não fosse pela fumaça cinza e espessa que subia para o teto e o crepitar da luz consumindo o velho barraco de madeira.

O som da noite escura foi abruptamente  interrompido pelo choro agudo de um bebê deitado no chão de cimento, coberto por um monte de cinzas, que antes era seu berço e suas roupinhas.

Como um devorador faminto as chamas brilhantes envolviam todo o
barraco, se alimentando de forma voraz em um banquete recheado de móveis no apertado quadrado. As chamas davam lambidas quentes no bebê  como um cobertor colorido em movimento. O pequeno chorava em desespero e aos soluços suas lágrimas   vertiam em vapor dos seus pequenos olhos verdes. O bebê não entendia o que acabara de ocorrer, mas sentia medo, não do fogo lhe acariciando, mas de se sentir sozinho, sem seus pais que dormiam ao lado em um monte de cinzas e cheiro de carne carbonizada.

Quente se tornou subitamente frio e molhado e Ricardo despertou apavorado de seu pesadelo, que já fora uma lembrança assustadora de sua infância. O seu colchão e lençol estavam cinzas e evaporavam​ com a água que tinha sido jogada. Sua pele fulminava vapor.

— Acorda vagabundo. — disse um homem com o balde vazio na mão.
— Quer tacar fogo no meu barraco? — perguntou bravo, ameaçando  jogar o balde em Ricardo, ainda deitado e confuso.

— Se manca hein!
— Desculpe. — sussurrou o jovem assustado.
— O que? Eu não escutei! — gritou o homem.
— Me desculpe, tio. — respondeu  Ricardo. Seu tio era um homem rígido e nunca foi uma pessoa muito amável, vivia dizendo que o jovem era uma aberração, inútil e que quando bebê havia posto fogo no barraco dos pais em uma favela carioca. Ricardo cresceu ouvindo o tio lhe dizer como ele matou o pai e a mãe em um incêndio. Aquilo doía demais. Era covardia, mas Ricardo não era mais um bebê, tinha acabado de fazer dezoito anos e ainda sonhava todas as noites com a tragédia e sentia o cheiro de carne carbonizada dos seus pais. Os pais que ele matou, quando Ricardo foi encontrado pelo tio, ele tratou de trazer o pequeno para morar com ele na maior favela de São Paulo: Paraisópolis. O tio comandava o crime, sendo o  tráfico de drogas  a sua especialidade e Ricardo era obrigado a participar de qualquer coisa que o tio achasse certo.

Ricardo, um E.O de casta paranormal podia controlar e produzir o fogo, um monstro vivo queimava dentro de si e em brasas esse monstro tomava vida. Ricardo sentia essa força tão grande e tão forte que passou a chamá-lo de Dragão Vermelho. Era quase como um amigo, achava,  às vezes,  que era a sua própria alma.

O jovem cresceu entre as ruelas da favela,  quando pode jogou bola, estudou e se divertiu nos bailes  funk, afim de arranjar algumas gatas. Mas seu poder sempre o atrapalhava, a bola derretia, a escola esquentava e as gatas sempre se queimavam. O Dragão dentro de Ricardo era furioso e incontrolável.

Na favela um projeto social levou para os jovens carentes a arte da luta marcial, aplicadas em um centro cultural, Ricardo não hesitou em participar, ia todos os dias, mesmo quando não havia aula. O seu mestre, um homem de quarenta anos lhe ensinava sempre que o jovem aparecia e sem reclamar, porque  sabia da condição de Ricardo como um E.O e se sentia bem em ajudar o jovem  problemático. Naquele centro cultural o mestre ensinava mais do que a arte da luta, também ensinava a arte de viver.

— Mestre, será que um dia eu vou controlar? — perguntou Ricardo enquanto fazia os movimentos de defesa.

— Sua força deve ser seu controle, caso contrário ela destruirá você. — disse o mestre sabiamente enquanto atacava.
— Mas como controlar? — insistiu Ricardo ficando nervoso.
— Você precisa encontrar equilíbrio.
— Com essa vida que tenho?
— Ricardo, você precisa viver a sua vida, seu tio não é uma boa pessoa, se afaste das influências negativas. — atacou o mestre acertando Ricardo em cheio e o derrubando no chão. — Essa é a sua lição. — disse o mestre com a mão estendida para o jovem se levantar.

Continuaram a treinar a tarde toda, com  o  mestre dando golpes e Ricardo se defendendo. O jovem estava cada vez melhor, mas sempre perdia o controle e esquentava demais e o mestre pacientemente esperava o jovem esfriar, e de novo lutava como se aquele fosse o seu último dia.

Em casa ao escurecer,  Ricardo comia faminto seu jantar composto  de feijão, arroz e carne frita com farinha. Treinar lhe deixava  com muita fome e além dessa atividade,  ele queria trabalhar também, mas sentia medo que alguém o descobrisse. O que ele podia fazer? Era perigoso demais se arriscar. Queria fugir do tio. "Pra onde"?  — se perguntava imaginando algum lugar de  paz, imaginando que esse lugar não existia. O jovem se sentia um refém da sociedade.

A porta da cozinha se abriu e o tio de Ricardo entrou de arma na mão.  Francisco já estava com quase quarenta anos, mas nada o fazia abandonar a vida de crime, ele gostava e sentia prazer em fazer as coisas que fazia. Roubar, matar e espalhar drogas para os jovens se destruíram.  Francisco se aproximou de Ricardo e passou o revólver no prato de comida, rindo, sarcástico.

— O muleque, tá boa a minha comida, né? — falou com seu hálito alcoolizado.
— Tenho um serviço pra você. — Ricardo já imaginava o que era, algum crime, estava cansado. Mas pra onde ir? Como fugir se todos como ele, E.O.S. estavam sendo caçados?

Ricardo não suportaria viver preso no Complexo, isso se não morresse antes em um tiroteio. Não havia nada a ser feito, se renderia ao fato de que sua vida era controlada e ia cometer mais um crime.   

— É o seguinte, temos um assalto a banco, coisa grande! — disse o tio orgulhoso.
— Até quando? — respondeu subitamente. Não percebeu quando o soco do tio lhe acertou no rosto, caiu da cadeira sentindo gosto de sangue na boca, não sentiu dor, mas ódio do tio. Ricardo apanhava sempre que respondia mal, o seu único parente vivo. O único que ele não tinha matado, ainda. O soco não significava nada, desde criança ele apanhava de todas as formas, principalmente porque colocava fogo no colchão e cobertores, até que passou a dormir no chão. Era menos perigoso e ele não sentia mais frio. Quando Ricardo queimava ele ficava envolto em brasas, sua pele era um braseiro vivo. Ele podia apanhar, mas o fogo lhe curava  o deixando sem nenhuma cicatriz.

Ricardo se levantou e permaneceu de cabeça baixa.
— Assim que eu gosto. — disse o tio. — Você matou minha irmã cara, minha irmãzinha morreu queimada, sabia! morreu e você matou ela! A minha única família, você tirou de mim. — Francisco começou a  gritar às mesmas   palavras que repetia todos os dias. — Ela era assim, neguinha, não como você, sarará. Ela tinha os olhos verdes como o teu, mas ela era bonita, com o cabelão cacheado. A preta era linda demais e tu destruiu ela. Maldito! matou também teu pai que era meu brother, matou as únicas pessoas que eu tinha, os meus amigos. — Francisco se fazia de coitado e  Ricardo permanecia de cabeça baixa.
— Muleque eu podia ter estourado a tua cabeça. — apontou a arma para Ricardo. — Mas não fiz isso! Eu até podia ter te levado pra aquele buraco onde são enterrados gente alienígena como você! Eu podia! Mas não fiz isso, pelo contrário, eu cuidei de você, te dei casa e comida. — jogou o prato do jovem no chão.
— Te dei alimento e assim que tu me retribui? Tu é estranho igual teu pai. Mas ele não era assim igual tu, aquele branquelo gostava de andar nas brasas sem se queimar, mas ele não era igual a tu que pega fogo. — começou a gargalhar. Francisco tinha nos olhos a loucura refletida. Estava bêbado, fedia muito, por diversas vezes vomitado era Ricardo quem lhe dava banho e o colocava na cama. Afinal, o homem era o que ele tinha mais próximo de um pai. Francisco passou a arma na cabeça de Ricardo, o olhou mais uma vez e cambaleando  foi se deitar.

Ricardo limpou a bagunça na cozinha e subiu para laje, um bom lugar para dormir, olhou as estrelas e a lua no céu e pensou onde podeira haver um lugar nesse mundo para que ele pudesse viver em paz. Fechou os olhos e sonhou com sua mãe, preta de olhos verdes e cabelo cacheado e no seu pai branquelo brincando de andar nas brasas. No meio da noite uma lágrima escorreu em seu rosto até virar vapor e se dissipar na escuridão de trevas e de luz.

Vol. 1 Heróis do Amanhã - NOVA ERA   Onde histórias criam vida. Descubra agora