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Música do Capítulo: 

Waves (Acoustic) - Dean Lewis

Saí mais uma vez de casa, pela segunda vez naquele dia. Ganhei coragem para voltar a conduzir, uma vez que era inevitável devido aos trajetos frequentes que fazia. Casa-Hospital-Hospital-Casa. Isto duas a três vezes por dia. Bastaram duas semanas após o meu aniversário para que Harry fosse parar a uma cama de hospital. Como ele sempre me disse desde que o cancro lhe fora diagnosticado - "Os meus dias estão contados." E ele, por uma vez, tinha razão. Agora, era alimentado a soro. A única coisa que o mantinha vivo. Ele falava, lia livros e entretia-se como podia naquela cama cujos lençóis eram lavados uma vez por mês. Estava sempre a dizer que a comida era detestável e as enfermeiras já não o podiam ver mais à frente. Maior parte do tempo ele dormia. Dormia a noite inteira e grande parte do dia, acordando apenas quando havia visitas. Era frequente Darcy e os seus quatro filhos lhe fazerem companhia, trazendo-lhe sempre algo. Edward não ficava atrás. Os gémeos eram adoráveis com ele, gostavam muito do avô e como ele já mal conseguia ler, Kimberly lia-lhe todas as noites uma página de um dos seus livros favoritos, ainda que já o soubesse de cor. Eu era aquela que mais o visitava. Após ter ido ao mercado fazer as habituais compras pela manhã, decidi passar pelo hospital para lhe fazer mais uma visita. 

"Olá. Como é que estás?" entrei calmamente

"Na mesma" -sorrio- "Mais um dia não é?"

"Mais um dia." -repeti- "Lamento informar-te mas acho que ainda não é o último." ri-mo-nos

Não lhe disse ainda que falei com o médico e este me disse que curiosamente a medicação parecia estar a fazer algum efeito. Pouco, mas algum. Todos os dias quando possível, eu falava com Dr.Frankl para estar sempre a par de novidades, fossem estas boas ou más. Sabia que mais tarde ou mais cedo ele acabaria por partir, mas custava-me acreditar nisso. As minhas esperanças e rezas constantes não me permitiam imaginar perdê-lo de um segundo para outro.

"Como tens andado? Farta de andar para cá e para lá não?"

"Nem que fizesse o dobro dos trajetos Harry. Eu fá-lo-ia na mesma por ti." dei-lhe a mão

"Obrigada por cá estares."-apertou-me a mão levemente-"Amo-te tanto Sophia."

"Também eu Harry. Até ao fim."

"Amo-te como há sessenta anos atrás. Exactamente da mesma maneira."-sorri-lhe emocionada-"Continuas linda, sabes?"

"Trouxe-te um chocolate." -mudei de assunto para não começar a chorar- "Para te dar um pouco mais de energia." pisquei-lhe o olho

"Agradeço." -abri-o o papel e deu uma trinca-"Nem imaginas o quão horrível é a comida de cá." revirou os olhos à enfermeira que estava mesmo ao lado

Ri-me. Harry parecia mais alegre ultimamente. As visitas que lhe fazia-mos eram sempre um bom momento do dia para lhe contar-mos novidades e estar-mos mais em família. As crianças geralmente falavam-lhe da escola e dos amigos. A enfermeira pediu-me que o deixasse descansar e aproveitei para me despedir com um forte abraço e ir, como todas as quartas à noite, jogar bingo com as minhas queridas amigas.

"Vê lá se ganhas desta vez." disse antes de eu fechar a porta

Os jogos começariam ás nove e meia e faltavam agora dez minutos. Tive de me apressar na estrada para chegar a tempo. Entrei pelas portas da enorme sala que já estava cheia, principalmente, de pessoas com a minha idade e até mais, apesar de haver famílias que se reuniam para passar bons momentos a jogar. Avistei as minhas habituais colegas umas mesas mais à frente. Cumprimentei-as, sentando-me no meu lugar habitual. Ganhei gosto pelo jogo graças a Candace, a minha vizinha da frente, com quem costumava falar muito. Numa conversa à varanda surgiu a ideia de ir com ela ao bingo e a partir daí, ganhei gosto e tornei-me numa ótima jogadora, apesar de nunca ter ganho nada. O jogo é simples. Os números devem ser marcados em cartelas aleatórias, geralmente com vinte e quatro números, dispostos no formato de cinco colunas por cinco linhas, para facilitar a localização dos mesmos, quando sorteados. Uma coluna para os números de um a nove, uma outra para os números de dez a dezanove, outra para os números de vinte a vinte e nove, e daí por diante, até o número noventa e nove. Os vencedores são aqueles que completam primeiramente uma linha, uma coluna, na transversal ou aquele que fechar -ou seja, completar todos os números- a cartela.

Far Way ;; h.sOnde histórias criam vida. Descubra agora