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Como tudo na vida, tanto os bons como os maus momentos são motivo de recordações que numa certa altura da vida nos pomos a pensar no que já fizemos ou poderíamos ter feito. Tudo aquilo que eu poderia ter desejado para uma vida perfeita aconteceu, começando pelo homem que me tem acompanhado desde a adolescência até agora. Os anos estão contados, longos e belos setenta e quatro anos. Harry, que tem mais cinco anos que eu, aparenta ser bem mais novo. O seu cabelo grisalho e o nariz arrebitado revelam, ainda, a beleza de um belo homem. O nosso amor perdura, ainda que não seja tão forte como no início, mas todos os casais acabam por se sentir menos apaixonados com o passar dos anos, o que é normal. Habitamos ainda na mesma residência, em Holmes Chapel, ainda que passemos vários fins de semana seguidos na casa à beira mar. Comprá-mo-la com o objetivo de trazer os nossos filhos e as suas respetivas famílias para passar-mos bons momentos, o que nem sempre é fácil. A relação entre Darcy e Edward foi-se agravando com o decorrer dos tempos, mas subitamente, num de muitos Natais em que estava-mos todos reunidos, eles pareceram uma vez na vida entender-se realmente. Desse dia em diante, têm cooperado muito um com o outro e agido como dois irmãos. Como duas pessoas civilizadas. Eu não esperava isso, mesmo que as minhas esperanças fossem as últimas a morrer. Como as coisas andavam eu pensei mesmo em desistir dessa ideia de os pôr bem um para o outro. Mas aconteceu. O problema agora é a mulher de Edward que não simpatiza com Darcy e com o seu marido. Já para não falar nas "más influências" que os filhos dela são para os de Nancy. Pessoalmente, eu não suporto aquela mulher por nada. Nenhum de nós dois conseguimos entender o porquê de Ed a ter escolhido para "a tal". Sim, ainda é aquela primeira que ele nos apresentou à muitos anos atrás, quando se mudou para o seu apartamento. Vamos ser sinceros, ela é extremamente atraente, de um cabelo loiro ondulado -pintado- que lhe cai pouco abaixo dos ombros, de uns olhos azuis marinhos e uma silhueta de invejar. Se eu fosse mais nova de certeza que me compararia a ela, mas não vou entrar por aí porque já sou avó de seis crianças. Não é fácil.

Edward casou então com essa mulher, filha do dono de uma grande empresa de informática, trabalhando como braço direito do pai de Nancy. Vivem numa grande mansão, possivelmente com alguns metros quadrados a mais que a nossa, mais coisa menos coisa e têm dois adoráveis gémeos. Extremamente educados mas confiantes de si mesmo e convencidos, rebaixando os outros sempre que possível -exatamente como a mãe- ainda que narizes empinados e que, aos dez anos, têm já o dinheiro a fluir-lhes nas veias.
Darcy por sua vez casou com um australiano, dono de uma empresa de surf, sem esquecer o aspecto característico que ela tão bem sabia escolher -piercing, tatuagem e musculatura exagerada-. Mentira. Isto sou só eu a constatar o gosto da minha filha quando era dez anos mais nova. Na verdade, Darcy casara com um adorável homem que, embora de poucos estudos, era muito amável e carinhoso com ela. Sem piercings, sem decorações exageradas no corpo (que eu saiba) e sem um olhar ameaçador ou duvidoso. Um homem perfeitamente normal, com os seus olhos esverdeados e um cabelo liso, de cor clara e bem cuidado. Tinham uma vida estável, viviam em Bristol numa pacata casa familiar com.. quatro adoráveis crianças. Três rapazes e um rapariga, a mais velha e a mais matura. Faz-me lembrar eu quando tinha a sua idade, reservada e com a cabeça bem assente nos ombros. Os três rapazes, esses, eram tais pestes como a mãe tinha sido sendo que por vezes, ela parecia exatamente igual a quando tinha dezassete. Darcy continuava amável e risonha como sempre fora. Só que agora eram as rugas que captavam a atenção, os seus cabelos encaracolados com pequenos cabelos brancos por aqui e por ali mas com as duas esmeraldas do pai, sempre presentes.

Em nossa casa, as coisas tinham mudado um pouco. Deixá-mos de querer ter empregadas pois fomos roubados várias vezes por elas, sendo que uma vez por semana vinha uma enfermeira de um lar vir-nos dar algum auxilio. Recordo-me de Sylvia como se fosse ontem. Faleceu já Darcy tinha dez anos, por velhice simplesmente. Em ambas as gravidezes ela foi-me uma primordial ajuda, por tudo o que fez tanto a mim como a Harry. Ele foi o que sofreu mais com a sua morte, recordo-me bem. Mr.Tabby, o meu adorável gatinho, chegou a conhecer Edward era este ainda pequeno. Fugiu de casa durante uma semana e acabou por voltar, em muito mau estado. Nada do que os médicos pudessem fazer haveria de o salvar, e por mais dinheiro que houvesse, não passariam de simples bocados de papel para a sua curta vida.

*

Naquela agradável tarde de terça feira, Harry e eu, reformados e enfiados em casa o tempo todo, decidimos regressar como fazíamos pelo menos uma vez por semana, ao parque uns quarteirões abaixo. O parque cujo íamos os dois antes de ter filhos, onde namorávamos debaixo de árvores, escondidos do guarda florestal que não autorizava a entrada de ninguém a partir das nove da noite. Das tardes de verão e inverno, fosse que estação fosse, em que levava Edward a andar de baloiço, em que ele fazia novas amizades num dia, sabendo que não voltaria a ver aquelas crianças novamente, onde passeáramos várias vezes o carrinho de Darcy. Quando deixara-mos completamente de lá ir por se ter tornado desinteressante ir lá quando eles eram já crescidos. E as vezes que eu ia lá, sozinha, sem dizer a ninguém, só mesmo para recordar tudo isto. Só mais uma vez.

"O que nós já vivemos até aqui Soph."

"Foi uma boa vida não?" virei-me para o encarar

"Não. Foi uma vida boa." -deu-me a mão- "Uma vida que não podia ter sido melhor sem ti ao meu lado."

"Até ao fim?" questionou

"Até ao fim o quê?"

"Vives isto até ao fim, comigo?" -sorrio-me- "A vida."

"Até ao fim." afirmei sorrindo-lhe em retorno

"Até ao fim." repetiu


Quero chorar por ter comprado chocolate e ter comido uma tablete e meia, quero chorar por as férias estarem a ser uma valente merda, quero chorar por me sentir gorda ao comer isto e quero chorar por Far Way estar a acabar.

Caroline.

Far Way ;; h.sOnde histórias criam vida. Descubra agora