As ruas da Academia de Brascard continuavam movimentada e Helena baixou o capuz ridículo da cabeça para admirar. Atrás dela Charlotte grunhiu.
― Não queremos que te reconheçam! ― Ela disse ao jogar a capaz preta e aveludada para Helena. ― Se vamos fazer isso tem que ser do meu jeito.
É claro que Helena só havia concordado porque queria explorar. Mas havia baixado o capuz dezenas de vezes. O trio andava pela rua principal lentamente, contrariando o fluxo intenso de pessoas que iam e viam de maneira apressada para os seus compromissos.
Helena pode observar de perto as lojas locais e se chateou por não ter nenhum dinheiro, afinal não era todo dia que se podia comprar filtros de sonhos, que realmente funcionavam, cristais de proteção e botas papa-léguas.
― São as melhores botas papa-léguas de todas Árcade. ― Bradava o comerciante gorducho e com um bigode sobressalente. ― A mocinha não quer experimentar?
Helena deu um passo em sua direção e pegou um exemplar. Era de couro, com fivelas de metal escuro e chegava até o tornozelo. Em cada lado da bota havia um par de asas douradas e brilhantes. Uma etiqueta estava afixada na bota e Helena franziu a testa para William.
― 50 douras? O que é isso?
O comerciante gorducho soltou uma gargalhada e Helena ergueu a sobrancelha em sua direção.
― Ela não pode, vamos! ― Charlotte devolveu as botas ao comerciante e conduziu Helena de volta para a rua. ― Não pode simplesmente perguntar tudo o que vem à sua cabeça. Quer que nos descubram?
― Douras são as moedas de Árcade, assim como os Obres e os Pens. ― Will explicou e acrescentou: ― Você vai pegar o jeito.
Helena continuou a caminhada e se encantou com uma pena que escreve sozinha e com o dicionário que prometia todas as respostas para as suas perguntas. Algumas crianças fervilhavam na loja e cutucavam os pais, que franziam a testa para a comerciante magricela e com olhos esbugalhado.
― São itens proibidos na Academia. ― Charlotte asseverou. ― Achei que você deveria saber.
A rua principal desembocava numa grande praça e no meio dela havia um prédio majestoso e enorme, cuja calçada as pessoas evitavam. As suas paredes eram feitas de mármore e colunas de granito branco decoravam a fachada, depois de uma grande escadaria. Todas as janelas eram pretas e estavam fechadas.
― O Ministério do Protetorado. ― Will explicou.
― Não deveríamos estar aqui! Não deveríamos estar aqui! ― Charlotte começou a repetir. ― Se a Chanceler descobrir por nós...
Um comício que se formava na praça chamou a atenção de Helena. O grupo de quinze pessoas, vestindo togas vermelhas e empunhando cartazes, começou a bradar para os passantes de maneira enlouquecida.
Contrariando a orientação de Charlotte, Helena caminhou mais à frente para poder ouvir melhor. Sem escolha os dois protetores a seguiram. O líder do grupo era um homem magro e de olhos cinzas sem vida, que falava de maneira enérgica ao ponto de uma veia em sua testa sobressair.
― Desgraça, meus irmãos. ― Bradou. ― Estamos afundados em desgraça e eu voz digo que essa desgraça fede. FEDE!
O grupo de toga vermelha silvou em concordância.
― Aonde já se viu! Anões agora podem manter armas em suas minas, Elfos circulam livremente por Brascard e as fadas disseminam histórias estapafúrdias para os nossos filhos. Os nossos filhos! ― O homem continuou. ― O que falta agora é permitir o casamento entre duas pessoas de raças diferentes.
― Balbúrdia. ― Gritou uma mulher alta e com feições arrogantes.
― Isso é uma violação! ― Berrou um dos homens.
― A pureza do nosso sangue está em jogo. ― Ele continuou. ― E se vocês me perguntarem de quem é a culpa eu vos digo com todas as letras. Deles! ― Ele apontou para o prédio suntuoso atrás. ― Primeiro quando permitiram mulheres na Academia e agora temos uma mulher como Chanceler. Uma mulher!
O grupo não bradou dessa vez e o homem rapidamente tratou de recuperar o seu público fiel com um sorriso forçado e baixando as mãos.
― Todos sabem que as mulheres são mais permissivas e essa permissividade está trazendo a ruina para os nossos portões. Essa permissividade e ausência de fibra moral pode permitir, por exemplo, que nossos filhos convivam com os filhos daqueles lá.
A plateia recuperou o fervor e continuou a bradar em desaprovação. Helena cerrou os punhos e uma chama em seu peito cresceu. A raiva conhecida se alastrou e ela tratou de abrandá-la antes que fosse tarde demais. O homem que bradava tão fervorosamente a encarou com desprezo no olhar.
― Você acha que a culpa da ruína de Brascard está nas mulheres? ― Ela perguntou em voz alta.
― O que você está fazendo? ― Will sussurrou ao seu lado.
O grupo se virou na direção do trio e o homem magro desceu do seu palanque improvisado e caminhou lentamente em sua direção.
― Vejam meus irmãos. ― Ele abriu os braços. ― Percebam como os jovens de hoje desafiam a nossa autoridade à público. Na minha época...
― A sua época acabou. ― Charlotte o interrompeu para orgulhos de Helena. ― O seu tempo passou e não adianta bradar para que o mundo volte a ser como era antes, porque ele não volta. Você acha... ― Charlotte gritou. ― Vocês acham que a culpa da nossa degradação é das mulheres protetoras, mas não conseguem enxergar os seus próprios defeitos. Aonde você estava Memphis quando a guerra eclodiu e nós estávamos lutando?
― Rezando à Mérope para que nos protegesse na batalha e deu certo. ― Memphis disse, orgulhoso.
― Enquanto centenas morriam. ― Will revirou os olhos.
― Mérope criou guerreiros. ― Charlotte falou.
― Estou lutando com as minhas palavras, conforme a nossa constituição permite e vocês não podem me impedir de fazer. ― Memphis recebeu palmas dos seus adeptos. ― Não podem me impedir de dizer e avisar a todos. ― Ele gritou ainda mais alto e a veia em sua testa sobressaiu ainda mais. ― Que fomos permissivos com eles no passado, tal como estamos sendo agora e eles se viraram contra nós!
Helena franziu a testa e um silêncio mortal recaiu sobre o grupo. O grupo devoto se recolheu visivelmente e até mesmo Charlotte arregalou os olhos. Não sabia dizer exatamente como, mas tinha a sensação de que Memphis estava prestes a dizer algo que não deveria.
― A nossa raça-irmã cresceu e achou que poderia ter mais poder que nós, mas eu digo que não. ― Memphis bradou. ― Não! Vencemos uma vez e venceremos contra essas criaturas se necessário. Assim como varremos a terra deles. ― Ele disse com desprezo. ― Invocadores!
***
Chegamos ao décimo capítulo e eu quero saber, o que vocês estão achando até agora? Capítulo duplo hoje <3
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As Raças Irmãs
FantasyNo país insular de Árcade, sob a égide dos Protetores, criaturas fantásticas convivem numa falsa paz. Após dezoito anos de uma guerra que culminou no exílio de todos os Invocadores, não há quem ouse desafiar a soberania dos Protetores e suas regras...