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Helena chegou atrasada para o jantar naquela sexta-feira de outubro. Os seus olhos procuraram por Will na multidão de aprendizes que se preparam para o feriado e quando o avistou não pode deixar de se surpreender. O rapaz sentado ao lado de Cordélia na mesa deles. Thomas acenou para ela, mas Will não se virou. O seu lugar de praxe entre Thomas e Will era ocupado pela loira, que deu uma piscadela quando ela contornou a mesa para se espremer entre Iadala e Jacob.

Althariel se levantou da mesa dos professores e gradualmente o silêncio se instalou entre os aprendizes. O diretor desamassou a sua túnica verde cintilante e pigarreou.

― Amanhã, nesse mesmo horário, completamos 18 anos da Guerra entre as Raças-Irmãs. A maioria de vocês estarão no desfile com as suas famílias comemorando a nossa maior vitória. Contudo, peço que não se esqueçam de que nesse dia milhares de vidas foram desperdiçadas. Milhares de sonhos se perderam, sejam eles de mentes protetoras ou de que qualquer outra raça. Hajam com sabedoria e respeito.

O peso daquele momento recaiu como ferro sob os ombros dos quatros protetores no epicentro daquela confusão. Helena e Will trocaram olhares por meio segundo e naqueles olhos escuros ela viu determinação e medo. O perfeito reflexo do que também havia nela.

O jantar transcorreu em silêncio e quando os alunos foram liberados Helena tentou se aproximar de Will, mas ele partiu tão depressa que a massa de aprendizes o engoliu.

― O que deu nele? ― Ela franziu o rosto para Thomas.

― É só estresse. ― Thomas deu de ombros. ― Vou falar com ele. Nos vemos amanhã? ― Helena assentiu e o protetor atravessou a multidão atrás do melhor amigo.

À meia distância Charlotte também o observava. Helena não quis encará-la, portanto deu meia volta e saiu da Academia. Inspirou o ar fresco da noite e observou o céu carregado de nuvens. A brisa balançou os seus cabelos para trás e ela se pôs a observar o lugar que fora o seu lar nos últimos meses.

Sob o píer de madeira a sombra de um rapaz chamou a sua atenção. Ela se aproximou em silêncio bem a tempo de vê-lo jogar uma pedra no lago.

― Treinando para amanhã? ― Ela provocou.

Vince se virou com um sorriso e ela não deixou de sorrir também.

― Eu nunca gostei dessa tradição. ― Ele respondeu e ela se sentou na beira do píer. ― Eu nunca vi muito sentido nessa comemoração. ― Ele foi sincero. ― Na verdade, eu sempre odiei. Quando eu era criança meu pai nunca parava em casa nas vésperas desse dia.

― Eu não tive o meu pai por muito tempo, mas posso imaginar o que você sentia.

O protetor olhou para o horizonte e Helena fez o mesmo.

― Milhares de pessoas morreram, os invocadores foram exilados ou mortos e nós comemoramos? ― Ele questionou a si mesmo.

Invocadores.

― Você disse o nome deles.

― Já passou da meia-noite. ― Ele observou. ― Hoje é único dia que a nossa Lei Maior Nº 1 não é aplicada. O único dia em que enfrentamos o nosso passado, e, então, nos silenciamos até o próximo ano.

Helena se levantou rapidamente e Vince a observou, surpreso.

― Preciso ir a um lugar, a gente se vê amanhã?

― Nós sempre temos que ir em algum lugar. ― Ele sussurrou, então deu um pesado suspiro e se virou para o lago com as suas pedrinhas planas.

Parte dela queria ir até ele, mas ela deu meia volta e partiu. Vince vai ficar bem, ela disse para si mesma, finalmente o dia chegou.

Helena correu para a Academia silenciosa e entrou na portinha lateral que dava para os aposentos dos desprovidos. Desceu os degraus de dois em dois e encontrou a Sra. Ryan tomando uma xícara de chá na cozinha, como se a esperasse.

― Pode me contar? Você prometeu!

― Faça todas as perguntas que quiser. ― A cozinheira lhe serviu uma xícara de chá para a protetora, que se acomodou.

― Os Algozes, quem eram eles?

― Os invocadores mais poderosos desse século. ― Ela contou. ― Angelina Jenkins era tão bonita quanto letal; Marius Jenkins, o seu irmão, era dotado de uma inteligência inigualável, que o tornava cruel. Edgar Blackwell fechava o cortejo. Edgar não era rico como os Jenkins ou inteligente como Marius, mas cativava as pessoas de uma forma que eu só vi uma vez na vida.

"Os Jenkins sempre foram uma família respeitável e imponente em meio aos Invocadores, mas Edgar, bem, ninguém sabia muito bem de aonde havia surgido. O pouco que se sabia sobre ele era de que fora resgatado aos oito anos por um protetor no meio da estrada, que ironia não?

― Mas... O que o fez mudar?

― Muitos diziam que esse fora o começo do ódio de Edgar, que o abandono corroeu toda a sua bondade. Outros que sempre fora uma criança maligna.

― Você fala como se o conhecesse. ― Helena observou.

― Ainda me lembro do menino invadindo a minha cozinha, mas ele teve de partir e você sabe bem porquê. Aqui não era o seu lugar.

"Muitos anos se passaram até que tivéssemos notícias dele. Era um jovem aspirante no Congresso Invocatório e braço-direito do atual magister. Aliado à força da família Jenkins, o poder do menino sujo e com olhar endiabrado cresceu tanto que ele se rebelou e criou um novo partido, chamado de Idealista. Foi o princípio do fim.

"Não demorou muito para que a sua força política incomodasse os protetores, mas até então nada havia acontecido para desencadear uma guerra. Aquele encontro político cheio de tensão foi bem diferente daquela mesma data no ano seguinte, pois o exército invocatório investia contra Lancastelo e Ponte Quebrada. O estopim da guerra mais sangrenta que tivemos.

― E então? ― Ela perguntou ansiosa.

― O seu chá vai esfriar. ― Helena bebeu tudo de um gole só. A cozinheira sorriu e continuou.

"Há dezoito anos os Algozes rumaram para o campo não muito longe daqui. O Elo lhe encontrou lá. Nesse mesmo instante, os protetores invadiam a cidade mais importante deles, Darked, e uma batalha sem proporções acontecia. Não restou nada da cidade a não ser ruínas. O Elo executou o feitiço e se sacrificou para que o Algozes pudessem ser destruídos e todos os Invocadores foram exilados. Na cidade espelho, conhecida como Arked, eles mantêm um lar sem oferecer perigo a ninguém".

A Sra. Ryan foi em direção a pia e lavou as canecas de chá, então, disse, com a voz embargada:

― Arked existe em lugar nenhum. Não há porta de saída ou porta de entrada. Os invocadores se foram.

― Você perdeu alguém? ― Helena perguntou com cautela.

A Sra. Ryan se virou com o olhar sério, que Helena nunca tinha visto nela.

― Eu não conheço alguém que não tenha perdido, criança. ― Ela se recuperou e sorriu. ― Você deveria dormir, amanhã será um longo dia.

Helena concordou e subiu as escadas, contudo parou no meio do caminho.

― Você acha que eles se arrependeram no exílio?

― A redenção lhes foi oferecida, não? ― A Sra. Ryan a desafiou com a pergunta.

Helena deu dois socos no umbral da porta, pensativa, quando disse:

― Não me parece redenção.

As Raças IrmãsOnde histórias criam vida. Descubra agora