45

108 18 0
                                    


A aula de botânica mágica estava mais cheia do que o normal. Alunos que não estavam inscritos na matéria se espremiam nas bancadas de madeira e tornavam a estufa um lugar muito mais abafado.
Will estava grudado em Helena para a primeira aula desde que a protetora recebeu alta. O protetor pôs a mão em seu joelho por debaixo da bancada.

― Para, por favor. ― Ela pediu aos sussurros. ― As pessoas estão começando a notar.

― Isso tem que ser um segredo para você?

Ela desviou os olhos da turma e focou em Will. Aqueles olhos escuros e desafiadores. Então, com um sorriso, voltou a prestar a atenção na matéria.

― Hoje turma eu trouxe algumas espécies raras da Amazônia. ― A turma arquejou. ― Senhorita Crawley, pode me ajudar?

Helena assentiu e se levantou. Era parte da sua detenção. Com cuidado ela pegou os cinco vasos de planta e colocou na bancada à frente. A primeira era uma flor rosa com tentáculos azuis que se mexiam preguiçosamente. O seu perfume era adocicado e enjoativo.

― A Flor da Meia-Noite cresce próximo aos lagos ou em lugares úmidos da floreta. Não se enganem pela sua beleza, pois ela carrega um dom venenos mais perigosos de Brascard.

Phineas fez cuidadosamente uma incisão no caule da flor e pôs uma única gota num frasco pequeno. A liquido amarelo e viscoso chamou a atenção da turma, que arquejou.

― Apenas uma única gota e pode ser fatal. Alguém tem ideia do que essa belezinha é capaz de fazer?

Susan levantou a mão antes do professor Phineas terminar a frase.

― O veneno da Flor da Meia-Noite não é listado entre os venenos letais, mas é perigoso e por isso proibido pelo Ministério do Protetorado porque é capaz de controlar por um período de tempo as ações de outra pessoa.

― Como isso é possível? ― Helena soltou.

― Digamos que o veneno torna a pessoa suscetível à coisas ruins. ― Ele respondeu em sua voz sibilante característica. ― Agora, meninos cuidados, pois o que eu tenho aqui é muito interessante.

A flor mais feia que Helena já vira na vida era capaz de fazer uma poção extremamente comercializada atualmente: a Poção do Amor. Cordélia e Olivia se cutucaram e até Susan ficou mais interessada na aula. Helena tentou não rir, mas foi impossível.


― Senhorita Helena. ― Phineas chamou no fim da aula. ― Plantei algumas sementes nativas da Amazônia na encosta da floresta. Gostaria de ir verificar se já pegaram?

Helena olhou para Will que deu de ombros.

― Vejo você mais tarde. ― Ele disse e pôs algo em suas mãos. ― Eu trancei para você.

A pedra de cristal azul estava envolvida em pequenas linhas, que formavam uma espécie de cesta. Helena pôs o cordão e foi até a floresta.

A floresta estava úmida e fria, quase nenhum raio de sol entrava por aquelas árvores. Ela agradeceu mentalmente o toque quente da pedra de cristal azul sob o corpo e caminhou até o canteiro de Phineas.

― Você é uma cataclista.

Ela assentiu, apesar de não ter sido uma pergunta.

― Você já conheceu algum?

― Havia uma garota na minha turma, mas isso foi há muito tempo. Antes da guerra.

― Ela morreu? ― Helena perguntou sem pensar.

― Junto com tantos outros. ― Phineas respondeu.

― Eu sinto muito, ela parecia ser importante para você.

― Para mim? Não, não desse jeito. Ela era capaz de cativar qualquer um, mas eu já estava cativado por alguém.

Helena assentiu e a pedra ficou ainda mais quente sob a sua pele.

― Eu soube também que você morou no Brasil. ― Ele mudou de assunto. ― Estive por dezessete anos na Amazônia estudando a fauna e a flora mágica de lá. 

― Eu morei no Rio de Janeiro, mas isso é praticamente informação de domínio público agora. 

― O Pergaminho de Brascard consegue ser bastante determinado. Eu me lembro da editora-chefe deles Penélope Lightstar. Sempre deixada de fora de tudo por ser pequena e frágil demais, mas ela encontrou um jeito de contar as histórias que não fazia parte.  

― Um jornal estudantil?

― Ela chamava de... Carta da Verdade. ― Phineas riu.

― A verdade dela.

Os dois caminharam em silêncio. Mal dava para ver as torres da Academia por entre as copas das árvores naquele momento. 

― Espere aqui. ― Phineas pediu. ― Essa nova espécie pode ser muito perigosa e ainda não estou certo quanto os seus efeitos.

Ele vestiu um par de luvas grossas de jardineiro e óculos engraçados, então sumiu por entre as árvores próximas. Phineas podia ser mais habilidoso e carismático do que Godofredo, mas ela sentiu saudades do professor desastrado.

A pedra de cristal queimou sob a sua pele e ela tirou o pingente de dentro da blusa. Era quente até mesmo para ela.

― O que você está querendo me dizer? ― Ela sussurrou.

― Uma herança dos qilins algo muito raro. ― Disse a voz desconhecida atrás dela.

Helena se virou e viu o centauro parado em sua frente. A sua pele era branca feito leite e os seus cabelos prateados como estrelas da noite. Havia nele um ar de nobreza e quando ele fez a reverência impecável, Helena o imitou.

O centauro usava uma coroa feita de gravetos e folhas e não estava armado. Era tão diferente de Éfero e tão diferente de Uhro.

― Você é Círon. ― Ela adivinhou.

Ele assentiu com a cabeça de um jeito solene e a protetora deu um passo instintivo para trás.

― Não tema, criança.

― O seu irmão tentou me matar.

― Você está certa. Tem todo o direito de temer a minha raça, assim como nós temos o direito de temer a sua. Mas eu estou pedindo, não tema a mim.

Helena notou o anel de prata em seu dedo anelar e semicerrou os olhos.

― Eu não sinto muito por Éfero, porque ele me feriu. Mas sei o que é perder alguém querido, portanto, os meus sentimentos à você.

― Isso é muito nobre da sua parte. ― Ele disse. ― Éfero fez a sua escolha há muito tempo. O meu irmão escolheu nos trair para servir alguém da sua raça.

― Você quer dizer o Príncipe?

O líder da Cavalgada assentiu como um rei.

― Porque ele fez isso? Porque virou as costas a vocês?

― Éfero sempre desejou poder e riqueza, mas nós centauros patrulhamos as florestas, vivemos de modo simples. Ele nunca entendeu isso, eu percebi o seu desejo e não o repreendi. O meu maior erro. 

Helena ouviu pacientemente. Círon tinha algo de cativante. Não era sua beleza peculiar, mas havia algo em sua voz comedida. Talvez fosse a sua calma e nobreza solene.

― Eu perdi o meu irmão há muito tempo.

― E agora está frente a frente à pessoa que foi responsável por tirar o seu irmão de você. Porque está aqui?

― Você não estava lá. ― Ele continuou. ― Mas os naturais naquelas casas podem testemunhar a briga de dois cavalos descontrolados na ruazinha de pedras. É assim que eles nos veem.

― A rua pedacinho do céu?

― Pedacinho de Céu, nome interessante. Alguns de nós podem cavalgar nas estrelas, não me parece um pedaço do céu para mim.

― Não parece para mim também. ― Helena concordou. ― Porque vocês estavam lá?

― Eu soube dos planos do meu irmão de viajar ao continente e decidi segui-lo. Eu o impedi de chegar até você mesmo sem saber.

Helena pensou naquela afirmação por um momento. Não fazia sentido. Leon só conseguiu fugir das prisões submersas meses depois.

― O que você quer? ― Ela perguntou com cautela.

― Trago um aviso. ― Ele disse. ― Você corre grande perigo, Helena.

― Sem ofensas, mas o seu irmão está morto e Leon não pode chegar até a Academia.

― Pobre criança, tão ingênua, não percebeu que há um traidor entre vocês?

A pedra esquentou ainda mais sob a sua pele e tomada por um impulso ela correu sem olhar para trás e sem ter a certeza do porque o fazia. Não esperou que o professor Phineas retornasse e deixou o líder da Cavalgada para trás, sem se importar se o tinha ofendido ou não.

Alguém de dentro poderia ser capaz de deixar que Leon entrasse, mas quem? Quem se beneficiaria com sua ruína? Dezenas de nomes vieram a sua mente, mas faltaram as provas e Círon não era uma testemunha confiável. Afinal, como ele poderia saber de tanta coisa?

Ela correu até o Clube dos Perdidos. No meio do caminho trombou com Susan e Iadala, mas deixou as duas falando sozinha. Se pudesse encontrar respostas em algum lugar seria com o Oráculo. O livro disse que deveria seguir a luz e foi o orbe de luz azul que ajudou a salvar Will.

Helena foi direto para a tábua solta do assoalho e agradeceu por Will não estar ali, quando revolveu o esconderijo as suas mãos encontraram apenas teias de aranha e poeira acumulada.

O livro em branco não estava mais lá.



― Como eu posso notar que algo sumiu se você não me diz o que é? ― Will carregava os seus livros pelo corredor.

― Não é nada. ― Ela desconversou. ― Só um livro que eu estava lendo, devo ter deixado em algum lugar.

― Deixa eu adivinhar? Você perdeu o seu Oraculo. ― Ele disse num tom presunçoso.

― Está com você? ― Ela perguntou com cautela.

― Claro que não! Helena você é inteligente, não precisa disso e faltam meses para as provas finais. Posso te ajudar a estudar se quiser.

― Ah, com certeza pode. ― Helena riu.

― Estou falando sério, posso ajudar, sem segundas ou terceira intenções. ― Ele deu um riso torto que a desarmou totalmente de suas preocupações.

Os dois chegaram para o café da manhã e sentaram na mesa habitual. Do outro lado do salão de banquete, ela viu Vince conversando com Charlotte. Ele não a viu ou fingiu que não a viu. Não se falavam muito desde que ela e Will começaram o que quer que fosse aquilo que tinham.

― Você deveria ler isso. ― Susan estendeu o exemplar matinal do Pergaminho de Brascard.

― Confie em mim você não vai querer ler isso. ― Thomas acrescentou.

Helena puxou o jornal e leu em voz alta.

― Centauros ameaçam a segurança dos alunos nos arredores da Academia de Protetores de Brascard, mas existe uma ameaça implícita negligenciada? ― Ela leu a manchete. Ela continuou em voz baixa. ― Isso não faz sentido! Porque eu me aliaria aos centauros se um deles tentou me matar?

― Por isso que Penélope não diz o seu nome. ― Thomas observou. ― Ela acha que assim consegue convencer alguém.

― Ela distorceu a verdade por completo. ― Helena jogou o jornal na mesa. 

― Não é novidade alguma que o Pergaminho de Brascard faz isso. ― Will comentou. ― Você devia comer.

― Eles têm boas matérias às vezes. ― Iadala falou. ― Não me olhem com essas caras! Penélope não é a única jornalista. Eles têm feito boas coberturas sobre a perda da safra desse ano. O meu pai é fazendeiro e um animal destruiu a plantação vizinha inteira no mês passado.

Helena leu a pequena notinha no canto direito. Não era a primeira vez que isso acontecia.

― O meu dragão. ― Ela sussurrou.

Will trincou o maxilar e ele e Thomas se entreolharam. Nenhum deles acreditava nela, mas ela não se importava.

― Esse é o problema de aceitar qualquer um nessa Academia. ― Brandon gritou alto o bastante ao parar perto da mesa deles.

― Algum problema? ― Thomas se levantou.

― A conversa ainda não chegou na classe C. ― Ele disse. ― Mas toma aqui um trocado. ― Ele jogou uma moeda de ouro para Thomas.

Will se levantou e parou na frente de Brandon com os olhos em fúria e punhos cerrados.

― Quer outro soco na cara, Brandon?

― Você decaiu muito, Cardragon. Antes tinha algum sentido brigar com você, mas agora que está tão envolvido com a ralé prefiro não sujar as minhas mãos. Mas me diga, de homem para homem, as naturais são tão boas quanto as protetoras?

Helena engoliu em seco. Todos no salão estavam em silêncio e ouviram as palavras sujas de Brandon. A sua corja ria feito hiena. Will segurou a sua camisa pelo colarinho e apertou com força.

― Essa camisa foi cara. ― Brandon disse em escárnio.

― Uma palavra sobre Helena e eu juro pelo Elo que eu mato você.

Ivan mancou em direção a confusão junto com a professora Christina e o professor Phineas.

― Acabou o show pessoal. ― Ela gritou. ― Para a aula, agora!

― William e Brandon na minha sala, AGORA!

Todos os aprendizes se dispersaram desapontados e Will deu uma última olhadela em Helena antes de partir com Ivan à tiracolo e um Brandon presunçoso. 

― Você está bem, Helena? ― Vince perguntou ao se aproximar.

Ela assentiu.

― Brandon é um estupido! Não sei como você consegue ser amigo dele. ― Ela comentou.

― Ele não é o meu amigo, pensa que é, mas não é. Isso é coisa do meu pai. Os nossos pais trabalham juntos no Ministério. ― Ele falou, sem graça.

― Está tudo bem. ― Helena assegurou. ― Eu não sabia que o seu pai trabalhava no Ministério.

― Pois é. Ele tem estado uma pilha desde o ataque dos centauros.

Os dois protetores cruzaram o pátio à caminho da aula. A fofoca da briga entre Brandon e Will já percorria os corredores para qualquer azarado que não tinha presenciado.

― Não foi bem um ataque. ― Helena discordou. ― Éfero agiu sozinho.

― Não é isso que eles acreditam.

Dois alunos menores discutiam aos gritos no corredor. O mais jovem estava prestes a receber um soco na cara. Vince franziu a testa e se afastou.

― Nos vemos mais tarde. ― Ele gritou. ― O dever chama!

― Boa sorte, monitor! ― Ela gritou de volta aos risos.

Ela virou a esquina em direção à aula da professora Ella, quando trombou com Cordélia e Olívia. A protetora não parecia nada feliz e Helena já podia imaginar o porquê.

― Então, é verdade? ― Cordélia impediu a sua passagem.

― Tenho muitos talentos, mas ainda não sei ler mentes. ― Helena respondeu com descaso.

― Não se finja de idiota, garota. Você e Will estão juntos, não? ― Cordélia insistiu.

― O seu bichinho de estimação não contou tudo o que aconteceu no café da manhã? ― Helena apontou para Olivia com o queixo. ― É verdade, agora, com licença.

― É patético. ― Cordelia balançou os cabelos loiros para trás. ― Você não faz o tipo dele.

― E qual seria o tipo dele? ― Helena riu. ― Magricela e loira com ar esnobe e preconceituosa, nossa, quase uma fiel descrição sua.

― Você é... ― Cordélia engoliu em seco e Helena ergueu as sobrancelhas. ― Olha para você e olha para ele. Will só quer se divertir com você como todos os garotos, no final são com garotas como eu que eles ficam.

Cordelia se afastou rebolando e exalando superioridade, mas Olivia permaneceu com o semblante preocupado por um segundo a mais até que seguiu a sua abelha-rainha.

Helena fitou as mãos negras. Podia estar à quilômetros de distância do país em que havia crescido, mas ainda assim mesmo cercada de magia num lugar em que o impossível se tornava possível, ainda assim não era aceita.

― Senhorita Crawley, você está bem? ― Era Rufus.

Helena disfarçou as lágrimas e se virou.

― Eu estou bem sim. ― Ela se perguntou quantas vezes havia mentido dessa forma. ― Eles são cruéis não são?

Rufus se aproximou e concordou com a cabeça, com ar submisso. As mãos estavam novamente enfaixadas.

― Não importa o quanto eu pareça uma protetora e o quão forte eu seja, eu nunca serei suficiente. Quando eles inventaram esse conto da protetora perdida para vender jornal, eles não imaginaram que por trás dela só existia uma garota normal.

― Se me permite dizer, a senhorita está bem longe de ser só uma garota normal. ― Ele disse. ― É por isso que pessoas como o Sr. Laurel e a Srta. Graham fazem o que fazem.

― Obrigada, Rufus. ― Helena agradeceu. ― Você deveria dar um jeito nessas mãos. ― Então, se afastou atrasada, como sempre, para a aula.

As Raças IrmãsOnde histórias criam vida. Descubra agora