A primeira semana de setembro chegou trazendo uma trégua para as noites de chuva e os dias nublados. Mas o frio daquele inverno preguiçoso ainda permanecia.
Charlotte com a sua túnica reforçada pela capa cor de noite foi a última a chegar no quarto de Will. Não se surpreendeu quando se deu conta de que o protetor dormia num quarto separado. Não era novidade para ninguém que Will era um aluno privilegiado, mas manter um quarto enorme numa das cúpulas era demais até para ela.
A protetora experiente em fugir das patrulhas dos professores no corredor se atrasou quando encontrou com Vince. Ele não estava nada feliz com a sua aproximação com Will e Thomas, mas Charlotte sabia que ela não era o real motivo do seu mal humor, então deixou passar.
― Finalmente. ― Will ironizou. ― Quase começamos sem você.
― Não seja exagerado, Will. ― Helena o repreendeu.
― É por isso que gosto tanto da Helena, ela é capaz de te manter na coleira. ― Charlotte alfinetou.
Thomas explodiu numa gargalhada e depois parou quando Will o encarou, enfezado.
― Para a sua informação...
― Will! ― Helena o interrompeu. ― Foco! Porque estamos aqui?
Charlotte lançou um olhar que significava: eu te avisei. Will a ignorou.
― Maximiliam entrou em contato comigo essa tarde. ― Ele contou. ― Mandou um corvo entregar uma mensagem.
― Que dramático. ― Disse Charlotte.
― Ele só pode contar pessoalmente, então pediu para que fossemos até o seu... estabelecimento.
― Outra festa? ― Charlotte se levantou. ― Estou fora dessa!
― Tenho que concordar com Charlotte dessa vez. Leon está a solta e eu não sei o que Althariel vai fazer conosco se ele descobrir. ― Thomas se posicionou. ― Além do mais, eu não consigo ajudar mais um dia Twyla na biblioteca.
― Então foi essa a detenção que você recebeu? ― Helena se entristeceu. ― Será que não podemos trocar? Prefiro mil vezes a biblioteca do que fazer adubo com Phineas.
― Foco, Srta. Crawley. ― Will provocou. ― Max tem informações, se vocês não querem ir, eu irei.
― Essa investigação é minha. ― Charlotte protestou. ― Além do mais, os qilins se foram. Não chegaremos em Brascard a tempo de voltar para as aulas de amanhã em cavalos comuns.
― Por isso que eu tenho uma ideia...
― Eu não vou invadir a Sala dos Portais! ― Charlotte deixou claro.
― Deixem ele falar. ― Helena se intrometeu. ― Você tem certeza? ― Acrescentou num sussurro.
Will sorriu e assentiu. Ele tirou do bolso de traz da calça um pergaminho dobrado e com ar de importância, disse:
― Amigos, eu vos apresento, o Manifesto do Clube dos Perdidos.
⸙
Helena não acreditou que havia dado certo. A decisão de dividir o Clube dos Perdidos com Charlotte e Thomas viera dela, mas fora Will quem deu um jeito. Foi difícil dividir o lugar que vinha sendo o refúgio dos dois com os amigos, mas manter aquele lugar em segredo de Thomas e Charlotte não era justo.
Os dois fizeram o juramento descrentes e parte de Helena também não acreditava que seria possível, mas foi. Graças aos Manifesto que Will encontrou no verso do quadro em que continha o pergaminho com as assinaturas.
Sem tempo para excursões, os quatro foram direto para o armário velho.
― Eu não acredito que manteve esse lugar por tanto tempo. ― Thomas disse.
― Estamos quebrando todas as regras da Academia. ― Charlotte comentou.
― Se serve de consolo é por uma boa causa. ― Helena riu. ― Ai, meu pé!
Eles se apertaram no armário e Will se concentrou em fazer o aparato funcionar. No segundo seguinte eles estavam num armário cheio de frufrus, fantasias e roupas intimas. Helena franziu a testa sem querer pensar no que ele fazia dentro de um armário daqueles.
― Finalmente. ― Max fez uma reverência. ― Minha bella signorina, cada dia mais encantadora. ― Ele beijou as mãos de Helena. ― Ora, ora, as minhas previsões se concretizaram. ― Ele notou o olhar de Will.
O grupo seguiu Max até o seu gabinete. Uma festa acontecia no interior do seu estabelecimento e Helena desviou dos bêbados que dançavam como estivessem sozinhos. As garotas cumprimentavam Will de modo exagerado e o chamavam quando ele as dispensava. Helena engoliu em seco e tentou manter a mente aberta, afinal, ela também teve uma vida no Rio de Janeiro.
Dois guardas guardavam a entrada do gabinete de Maximiliam e assim que entraram ele fechou a porta.
― O que você tinha de tão importante para dizer? ― Will perguntou, impaciente.
― Aceitam uma bebida? ― Ele ofereceu aos outros três.
— Max! ― Will chamou a sua atenção.
― Tudo bem, apressadinho. ― Ele sorriu. ― Os Profetas do Caos estão planejando algo grande.
― Isso é tudo? ― Charlotte perguntou, impaciente.
― As recentes atividades dos jovens aprendizes despertou a atenção do líder deles. Vocês estão sendo caçados.
Leon já a estava caçando há muito tempo. Aquilo não era novidade nenhuma para Helena.
― Isso já era previsível. ― Thomas falou. ― Como você sabe de tudo isso?
― Qualquer dono de estabelecimento como o meu tem estado preocupado com os Profetas e os seus discursos de purificação. Sabe como é, não é bom pros negócios. Muito se revela depois de umas canecas de cerveja.
― Pensei que eles não pudessem entrar aqui. ― Helena observou.
― E não podem, mas eu não impeço os meus funcionários de trabalharem... em outro lugar. Desde que falem tudo. ― Ele continuou. ― Não sei o que, mas eles planejam algo grande e sangrento para aniversário da batalha das Raças Irmãs.
― Mas isso é em menos de um mês! ― Charlotte se sobressaltou. ― Não temos nada de concreto para impedir.
― Não seja ingênua, bambina. O Ministério do Protetorado está mais preocupado com um possível ataque dos centauros do que com as atividades do Profetas. ― Max serviu-se um copo de uma bebida cor de caramelo.
― Devemos agradecer à Penélope por isso. ― Will lançou um olhar frio para Charlotte.
― O aniversário da batalha reúne milhares de protetores, famílias inteiras. Aquelas armas... ― Thomas ponderou.
Helena engoliu em seco. A pergunta pairou no ar. Os profetas do Caos possuíam o arsenal de um exército e se pegassem os protetores desprevenidos minutos preciosos seriam gastos até que os Guardiões agissem.
― Não podemos ficar sentados esperando ― Helena se levantou. ― Althariel precisa saber.
― Eles não acreditariam. ― Will a interrompeu. ― Estamos falando de uma milícia perigosa que tem contatos no jornal e talvez no governo, Helena.
― Ninguém vai acreditar. ― Charlotte concordou. ― Tem que ser a gente!
Os protetores se encararam, cientes do que estava em jogo se falhassem. Eles estavam longe de estarem prontos para algo como aquilo, mas não tinha outra opção. Algo precisava ser feito.
― Vamos nessa! ― Disse Thomas, determinado.
⸙
Nas noites seguintes o quarteto treinou até mais tarde no Clube dos Perdidos. Cada hematoma e dor pelo corpo era motivo de orgulho para Helena. Pela primeira vez ela conseguiu vencer Will numa luta, Thomas ficou boquiaberto e Charlotte bateu palmas. Will sorriu ao se levantar e tirou o cabelo do rosto. Então, a beijou.
― Você nasceu para isso. ― Ele disse. ― Tenho pena de quem a desafiar.
Em seu íntimo ela também contava com o estranho poder que existia dentro dela. Aquela fúria implacável que trucidou Éfero sem esforço e o mesmo poder que salvou Will do beijo da morte. Ela queria não precisar.
― Você devia dormir. ― Will entrou no Clube dos Perdidos.
― Tenho que treinar. ― Helena continuou com os movimentos.
Will a puxou para um abraço e sussurrou:
― Você está pronta, Helena.
― Não ainda, preciso consertar... ― Ele a silenciou com um beijo e quando se separaram ele estava sério. Will engoliu em seco e ele passou a mão pelos cabelos despenteados.
― Eu... vou me afastar por uns dias. ― Ele disse.
Helena assentiu e voltou aos movimentos silenciosos com o bastão. Não era a primeira vez que Will desaparecia. Ela tinha os seus segredos e ele tinha os deles.
― Faça o que tiver que fazer. ― Ela disse.
Helena deixou o Clube dos Perdidos naquela noite muito tempo depois de Will partir. A morte de Éfero e o encontro com Leon assombravam os seus sonhos, enquanto os Profetas do Caos a mantinham acordada por muito tempo depois de ela deitar. Os treinos em excesso não eram só pelo que enfrentariam em breve, mas uma desculpa para manter a mente ocupada.
O vitral da janela no corredor refletiu um brilho azulado característico. Não a via desde o dia em que ele ajudou a salvar Will. Ela sorriu, enquanto o orbe a envolveu e continuou o seu caminho. A protetora desceu as escadas silenciosas naquela noite fria e seguiu o brilho fraco da luz pelos corredores iluminados num tom azulado da noite.
Helena atravessou o pátio e se escondeu atrás de um arbusto bem a tempo de ouvir duas vozes baixas discutindo.
― Não podia ter feito isso. ― Era Mora.
― Era preciso e você sabe muito bem porquê. ― Rufus respondeu.
― Você nunca me escuta!
Helena ficou envergonhada de escutar o casal brigar e engatinhou pelo arbusto até ficar longe o bastante dos dois. Circundou a estufa e desceu até o lago. A brisa gelada fez os seus cabelos cacheados dançarem pelas suas costas. Não havia nada ali.
― O que eu devo fazer aqui? ― Ela sussurrou quando chegou ao píer.
O orbe circulou o seu corpo novamente e tocou a água de cor escura. Helena franziu a testa e ficou embasbacada quando um barco de madeira imergiu da água. Ninguém entrava no lago há anos, nem mesmo nos dias mais ensolarados e era terminantemente proibido o fazer depois do incidente com um dos alunos há anos atrás.
― Estou quebrando todas as regras. ― Ela murmurou ao entrar no bote.
A pequena embarcação balançou e pequenas ondas se formaram. O orbe de luz parou bem a cima dela, no seu lado esquerdo e antes que ela pudesse perguntar alguma coisa, o barco se moveu sozinho. Sabia exatamente aonde ir. O medo acelerou o seu coração e ela olhou para trás. Longe demais para que pudesse nadar de volta e não fazia ideia de qual era a profundidade do lago, mas parecia bastante fundo.
O barco de madeira navegou próximo das enormes pedras na encosta da montanha. A protetora olhou para cima e engoliu em seco. Era uma altura e tanto. O orbe se agitou, então o barco parou. Helena avistou uma rocha plana coberta de lodo. Ela experimentou sair do barco e, apesar de bastante escorregadio, conseguiu subir.
Atrás de uma enorme pedra de pelo menos quatro metros a protetora viu uma abertura em formato de triangulo. Não conseguia ver nada além de uma cortina de escuridão.
― Você quer que eu entre aí? ― Ela perguntou.
O orbe zanzou para cima e para baixo. Ela olhou de volta para o lago, mas o bote tinha desaparecido. Não havia escolha, então ela se deixou ser engolida pela escuridão.Helena caminhou por quase cinco minutos por um corredor estreito e coberto por uma vegetação daninha. O barulho das botas encontrando o chão cortava o silêncio da caverna.
Ela avistou um brilho fraco, porém, constante. O corredor se abriu para uma caverna e ela viu o que provocava aquele brilho.Nas paredes centenas de milhares de nomes desconhecidos foram escritos numa espécie de tinta prateada que era refletida do lado oposto. A protetora olhou para o reflexo no espelho que revestia por completo a parede contrária da caverna.
Quando se aproximou espinhos de diferentes tamanhos investiram contra ela. Helena moveu a mão e os espinhos a seguiram como tentáculos. Buscavam reconhecimento, isso ela já sabia, mas a pergunta que circundava a sua mente era: o que havia atrás daquela parede?Numa das pontas dos espinhos algo chamou a sua atenção. O liquido vermelho viscoso e brilhante. Sangue. Alguém já havia tentado descobrir.
Ouviu passos no corredor e correu em direção às rochas no lado oposto, agachou-se bem a tempo de ver o ser encapuzado avistar o espelho com ar impaciente. Helena reconheceu em suas mãos o livro em branco. Ela se encolheu ao máximo junto à rocha, quando viu o outro corredor estreito. Ela se esgueirou por ele bem a tempo da forma encapuzada se virar.
O corredor dava para uma pequena e estreita escada. Helena subiu tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não estava desarmada, tinha o seu poder consigo, mas lutar com um desconhecido sem que ninguém soubesse o que estava fazendo era um risco que não gostaria de correr.A escada se entortava ainda mais pelo interior da montanha, ela subiu pelo o que pareceu uma eternidade. O suor já pingava em suas costas, mas se preocupou em manter um ritmo constante. Descer não era uma opção. Ela mal acreditou quando numa abertura viu a luz da lua depois de longas horas de subida.
Quando se levantou estava no topo da montanha plana e coberta de grama e formações rochosas. À esquerda estava o lago e a Academia de Protetores. Pouco mais à frente o vale com o rio perigoso que se estendia abaixo e à quilômetros de distância o mar. Do outro lado apenas a floresta beijada pelas sombras.
Por um instante ela se permitiu respirar. Absorver o ar noturno. Ciente de que teve sorte de encontrar uma saída. O orbe a deixou, como sempre fazia, e quando ela se virou para partir também, o viu.
O dragão deitado de bruços entre as rochas. As asas como velas de navio e o rabo cuja ponta era como lança afiada eram cobertos por escamas azuladas e prateadas que refletiam o brilho da noite. Na extensão do seu pescoço escamoso ela viu o corte profundo. O sangue fluía pelo ferimento e havia sangue em sua boca ensanguentada, mas ela suspeitava de que esse não o pertencia.
Helena se aproximou com cautela e o animal farejou. Ela calculou cada passo até se aproximar, mas o animal ou não se importava com a sua presença ou estava fraco demais para brigar. O arpão metálico estava partido no chão feito um graveto.A protetora estendeu as mãos para o seu corte, quando numa girada de pescoço ele rosnou tão alto que os seus cabelos ficaram completamente bagunçados.
― Por favor, me deixa ajudar. ― Ela pediu.
O animal a olhou como se realmente a visse. Aqueles olhos azuis prateados. O dragão deitou a cabeça enorme no chão e Helena tocou nas suas escamas geladas. Ele reclamou, mas não a devorou, o que era um bom sinal.
Helena se concentrou como fez quando salvou Will. A mulher espectral a ensinou a libertar a sua mente e deixar que o seu coração agisse. O poder que fluía dele não era de destruição, como ela julgava, mas de salvação. As suas mãos se revestiram de uma luz azul que a envolveu por completo e passou para a extensão da ferida do animal. Ela o tocou em cada parte que sangrava lentamente e a olho nu viu a ferida se fechar.
A cicatriz em suas costas queimou, mas ela ignorou e continuou o trabalho. Quando terminou e olhou para o lado o dragão a olhava novamente. Ele pode me reconhecer? Helena se perguntou.
― Obrigada pelo outro dia. ― Ela sussurrou. ― Você salvou a minha vida.
Ela ensaiou tocá-lo, mas a sua mão pendeu no ar. Como da primeira vez, ela sentiu as forças do seu corpo se esvaírem pouco a pouco e a sua visão ficou turva até que desmaiou. Curar exigia muito mais do que simplesmente destruir.
Àquela altura a chuva começou a cair como acontecia no fim daquele inverno e o dragão, contrariando a sua natureza feral, ajeitou o corpo e as asas e protegeu a garota, que o havia curado, da tempestade gelada.***
Esse é o fim da parte 2! A Terceira e última parte já está praticamente terminada, portanto logo logo as coisas vão ficar bem complicadas para Helena e seus amigos. Espero que gostem!
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As Raças Irmãs
FantasyNo país insular de Árcade, sob a égide dos Protetores, criaturas fantásticas convivem numa falsa paz. Após dezoito anos de uma guerra que culminou no exílio de todos os Invocadores, não há quem ouse desafiar a soberania dos Protetores e suas regras...