XVII. Volar

105 20 4
                                    

Janeiro

O sol brilhava no lado de fora da casa, incentivando os pássaros a cantar os pulmões afora. O ar frio continuava a forçar o acúmulo de roupas no corpo, mas tornava-se suportável ao ar livre, na presença calorosa do sol.

Nathan chegara em Cherub Field cerca de nove horas da manhã, com o pensamento fixo na cabeça. Se Lucca ainda não estava preparado para ir até o centro da cidade, o levaria, então, para uma parte mais calma dela. Seus pais adoraram a ideia.

— Não se preocupa — dizia o médico, de costas para o quarto de Lucca. — Tudo irá correr bem. Só preciso que você coloque mais roupas do que está acostumado, e...

A porta entreaberta foi totalmente escancarada, revelando o cenho franzido do garoto esguio. Vestia o mesmo tipo de calça de moletom de sempre e havia um grande suéter cobrindo-lhe, ao menos, até metade das coxas. Nathan sorriu amarelo ao descer os olhos para seus pés descalços, como já era esperado.

— ... e calçados — completou de forma tardia, vendo a ruga entre as sobrancelhas de Lucca aumentar. — Eu sei, eu sei! Calçados são apertados, desconfortáveis e não permitem total movimento dos dedos, mas — acrescentou com um sorriso largo, tentando animá-lo —, com calçados, você pode dar um passeio comigo ao ar livre! Ao ar livre! — acrescentou, percebendo a mesma careta no rosto alheio. — Livre! — Aumentou o sorriso. — Vale a pena, não? — perguntou, com humor, fazendo uma careta engraçada.

— Tenho tarefas — optou por responder, querendo escapar dos calçados à todo custo.

— Hoje não — afirmou Nathan, empinando o queixo. — Hoje você tem um passeio comigo. E com meus pais — acrescentou, lembrando do casal no andar de baixo. — Hoje você não é um estudante, é um aventureiro — continuou, arqueando uma das sobrancelhas. — E como seu médico, recomendo ar livre e boa companhia!

— Está bem — resmungou Lucca, girando nos pés cobertos pelas meias largas.

Alcançou um chinelo de lã da cor azul e enfiou os pés neles com uma careta desgostosa ao encará-los. Nathan balançou a cabeça, divertido com o comportamento do mais novo.

Girou o rosto ao observar seu antigo quarto, praticamente do jeito que o deixara.

Os móveis estavam dispostos da mesma maneira. O lençol da cama era o mesmo de sua adolescência, e a cor das paredes continuava sendo levemente azulada. Nos porta-retratos, haviam as mesmas fotos e tinha certeza de que boa parte das roupas ali guardadas, continuavam sendo enormes, feita para si. No entanto, embora sutis, era possível perceber as diferenças.

Em junção dos livros didáticos novos, haviam os contos de fadas, recomendados pela própria Dr. Clark, para a criatividade de Lucca. Ao lado da cama, havia uma grande almofada com patinhas, onde ambos Lucca e Sassenach cabiam juntos para que não dormissem abraçados no chão, situação que ocorreu mais de uma vez. Na cômoda com seus carrinhos de infância, estava o globo de neve ao lado de uma estatueta, ambos presentes de natal.

Nathan sorriu, observando o presente que encontrara por um acaso em uma loja qualquer. A estatueta representava um menino que usava apenas um pedaço de pano, como Lucca ao aparecer, e um lobo ao seu lado, ambos correndo. Havia certa selvageria na figura, mesmo congelada no tempo, que o remetia à fuga de Lucca em seu primeiro mês na residência Walker. Nathaniel foi incapaz de deixar a estatueta na loja. E foi devidamente recompensado ao entregá-la à Lucca, pelo sorriso mínimo do garoto, divertido com a mesma lembrança compartilhada com o médico.

— Pronto? — perguntou, vendo que Lucca ainda encarava os próprios pés. Era visível que estava remexendo os dedos contra o tecido de lã, claramente desgostoso.

LuccaOnde histórias criam vida. Descubra agora