A TERCEIRA ESTUFA (PARTE 2)

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NOS TEMPOS DAS QUATRO ESTAÇÕES, ARCÉH CHEGOU A TER MAIS DE DUZENTAS ESTUFAS ESPALHADAS PELO TERRITÓRIO DA ILHA. Cada família tinha sua própria e era raro haver qualquer tipo de comércio entre elas. Com as estações bem definidas, os alimentos vinham em fartura e não havia necessidade de estocagem ou de preocupações com o futuro. Porém, após uma série de problemas e a intensificação dos períodos de inverno e de verão (ao ponto de suprimirem a primavera e o outono), os proprietários se viram em uma situação de desespero, incapazes de prosseguir em seus projetos individuais. Para obter resultados mais promissores e fazer frente à concorrência dos produtos do continente, uniram-se e começaram a moldar estruturas cada vez maiores, muitas capazes de comportar fazendas inteiras se assim fosse necessário.

Contudo, não bastasse a questão com os deuses e suas intempéries, a inveja dos produtores de outras cidades cresceu a um ponto de ataques às plantações dos arcéh se tornar uma constante. De um dia para o outro, as pessoas se encontravam sem nada, com as construções destruídas e a fome à porta, pronta para entrar nas casas do povo. Face ao perigo, cada dono de estufa viu-se obrigado a recorrer à métodos de segurança ditos "incomuns", além de restringir o acesso das pessoas às plantações. Poderes foram dados aos proprietários das estufas e logo os mesmos começaram a ser chamados de "Unagor" (Senhor de terras, em língua atual).

Com a justificativa de "salvaguardar a sobrevivência dos arcéh", as estufas viraram locais com leis próprias, inacessíveis até mesmo aos governantes da cidade. Assim, o Registro de Leis de Arcéh (destinado a todos os habitantes e visitantes) passou a conviver com as leis de cada uma das dezessete estufas ainda de pé na ilha.

Impedidos de entrar nas construções e sem informações sobre as atividades ocorridas no interior delas, os boatos espalharam-se como praga e a excitação ante os segredos guardados pelos Unagor tornou-se o combustível para incitar teorias. Dentre todos os mistérios, as entranhas da Terceira Estufa eram as mais visadas pelo falatório. Não só por ser a maior estrutura ou pela complexidade de suas plantações, não apenas pelas procissões de carroças que saiam e entravam pelos seus portões ou por ter as frutas mais vistosas e os legumes com o dobro do tamanho usual.

Nada disso.

O assunto de preferência dos arcéh afoitos por conspirações eram os cães protetores da Terceira Estufa. Soltos ao anoitecer e escondidos aos primeiros raios do sol, uivos eram ouvidos, pegadas vistas aqui e ali, vislumbres de vultos atrás das cercas. Alguns poucos faziam descrições nunca confirmadas, outros preferiam o silêncio, temerosos pelas origens de tais criaturas. Mas, passassem-se quantas gerações fossem, a magia em torno dos cães permanecia viva, pronta para novos relatos e para dar mais sustos nas crianças.

— Por que essas maçãs não poderiam ser cultivadas em outra estufa? Por que logo aqui? - Phil teimava contra o tremor das mãos na tentativa de abrir o portão. Mesmo no frio, uma gota de suor podia ser vista em sua testa.

— Olha só: o valente Voggi tem medo! Quem diria... Um coração ainda bate nesse peito...

— Rá, rá, rá! Muito engraçado. Sua avó está melhor do que a gente, sabia disso? Deitada, flutuando na cama, brincando de voar...

— ... e prestes a morrer, Phil.

— Ah, não tenha inveja dela... - deu um tranco na fechadura e o portão da estufa se abriu. — Já, já, nós também estaremos prestes a morrer.

— Obrigada pelo incentivo, Phil Voggi.

— Disponha! Estamos aqui para isso!

Entraram e fecharam o portão.

A paisagem outrora verde das árvores fora substituída pelo artístico do inverno. O cascalho da estrada ainda era visível em alguns pontos e graças a isso conseguiram manter-se na trilha terreno acima. Seguiam em silêncio, a audição atenta a qualquer ruído "diferente" e as pernas prontas para correr.

O Bailarino de ArcéhOnde histórias criam vida. Descubra agora