A CASA DOS VOGGI (PARTE 4)

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— SABE, SÂMIA, VOVÓ MEDEBEW TEM MUITAS HISTÓRIAS. Dezenas delas. – Phil meneou a cabeça. — Não, eu estou errado. Talvez se eu dissesse "milhares" poderia me aproximar um pouco de tudo o que ela já passou (ou, ao menos, o que ela quis me contar). O fato é que a maioria das coisas que você ouviu sobre a juventude e sobre as viagens dela, as brigas, como ela ganhou todas essas coisas aqui... São verdade. Tudo verdade.

Tudo? Há histórias sobre monstros e bruxas, Phil! Histórias sobre dragões! Você quer dizer que...

— O mundo é muito grande, Sâmia. Como eu posso dizer que a vovó só está exagerando quando nós vivemos nessa bolha chamada Arcéh? Você nunca saiu daqui, estou certo? – a garota confirmou. — Eu também nunca. O máximo que fiz de "diferente" foi me afastar por algum tempo caminhando pelo gelo. Mas nada, nada disso é suficiente para julgarmos o que é ou não verdade. Você acredita na Nyrill, não acredita?

— S-Sim.

— Você já a viu alguma vez?

Sâmia negou. O coração nas mãos.

— É-É c-claro que não! Quem viu a Nyrill está na ponte, morto.

— Mas, mesmo sem ver, você crê na Nyrill. Esse é o ponto. Eu acredito na vovó, Sâmia. Acredito porque... – Sâmia notou a apreensão no semblante dele. O garoto apontou o olhar para a entrada da sala. Não havia sinal de movimento de alguém no corredor. — Porque a maior das aventuras dela, a mais fantástica e inacreditável, aconteceu aqui, nesta ilha. Eu sou a prova disso. Ela mesma diz que é a maior e a última dessas histórias, mas, como você verá, essa história nem pertence a ela. Ao invés de atriz principal, Madame Voggi ficou só nos bastidores...

"Ela me disse que já estava cansada. Era perseguida por muitas pessoas, alvo de grupos de ladrões, jurada de morte por gente grande e poderosa. Para resumir, junto com a fama ela também conquistou inimigos. Vários deles. É difícil para os homens aceitarem uma mulher capaz de falar tão alto quanto eles; uma mulher capaz de seguir a regra de ser jovem, bonita e meiga, mas também rebelde, livre e forte. A vovó era isso tudo - e é exatamente onde começa a nossa história."

"Vovó fugiu de longe, muito longe. Nem ela mesma sabe precisar o local exato. Ela buscava uma vida nova em terras onde ninguém a conhecesse, ou talvez a conhecessem pouco. Procurou, procurou e acabou em Arcéh. Pelo que ela me contou, ela até chegou a fazer contato com algumas pessoas daqui, mas nada muito próximo. Ela sempre teve receio de se aproximar das pessoas e depois ser traída, sabe?" – Sâmia fez menção de interromper para perguntar algo, mas calou-se diante dos gestos de Phil para ela não fazer perguntar por enquanto.

— Bom... No começo, essa estratégia se mostrou correta com os arcéh (você sabe muito bem o quanto nossos conterrâneos gostam de se envolver com a vida alheia), mas depois, mostrou-se um erro que ela se arrepende até hoje: ela deveria ter confiado nas pessoas daqui."

"Com medo, antes de vir ela enviou um informante para comprar esta casa, mandou as coisas aos poucos para não chamar atenção, observou de longe a rotina da ilha e, três meses depois, quando se sentiu segura, entrou na cidade às escondidas, atravessando o mar na calada da noite..."

— Eu não vejo erro nisso! – Sâmia interrompeu ignorando o pedido para deixá-lo falar até o final. — Se eu estivesse na mesma situação faria a mesma coisa. Ela estava só com medo de ter alguém esperando por ela aqui, algum inimigo...

Uma nota de tristeza pingou no rosto de Phil.

— Mas esse é o problema: ela me confessou que, antes de conviver com o povo daqui, odiava cidades pequenas, interioranas; achava que as pessoas não eram confiáveis, se encantavam muito fácil e eram idiotas ao ponto de a denunciarem para o primeiro que oferecesse um punhado de ouro.

— Nossa... A sra. Voggi sempre me pareceu tão feliz aqui em Arcéh...

— Hoje em dia ela é feliz. Antes, não. Às vezes, o erro é o melhor professor, Sâmia. Um professor cruel e eficiente. Foi assim que vovó Medebew aprendeu. Se naquela época ela fosse um pouco menos arrogante, saberia da Nyrill antes de mandar o restante da família vir pra Arcéh...

— Espera: a história da Nyrill de Arcéh é famosa. Todo mundo sabe o que acontece na chegada do inverno. Se não fosse assim, pessoas de outras cidades não viriam para a ponte naquela noite...

— É exatamente o que conversávamos a pouco sobre as bolhas. A gente pensa que o mundo é como a vida que acontece ao nosso redor. E não é; nunca será. Além disso, pessoas de vidas tranquilas com tempo para ouvir histórias sabem da Nyrill. Mas alguém que precisa fugir todos os dias e vive à espera de um ataque... Não! Ela não podia perder tempo com esses detalhes sobre as lendas daqui; a urgência de vovó em se ver segura era tão grande que ela se instalou e, no mesmo dia, mandou um recado para o restante da família, escondidos na Floresta de Thera. Eles festejaram, arrumaram tudo e chegaram aqui três dias depois...

Phil observou o quadro e passou as mãos pelos ombros. Fechou os olhos e pareceu ponderar sobre suas futuras palavras antes de concluir.

— Eles chegaram na ilha exatamente no último badalar dos sinos na Noite da Nyrill de Arcéh. O resto da história você já deve saber.

Sâmia estremeceu sem saber o que dizer. "Perder a família toda de uma só vez...", avaliou. Tinha alguns problemas com certas pessoas e, de vez em quando, desejava com todas as forças o sumiço delas. Porém, jamais se imaginou sozinha no mundo. Sua raiva não alcançava tais patamares.

— Phil, eu... Eu não consigo imaginar o sofrimento dela... Deve ser horrível carregar uma culpa dessas... Mas, onde você entra nessa história? Pelas minhas contas não sobrou nenhum Voggi além da sua avó.

O rapaz tomou fôlego e olhou para a namorada. Passou a mão pelo cabelo e soltou o ar. Talvez fosse apenas impressão da garota, mas a pele de Phil parecia se contrair como se também prendesse a respiração à espera daquelas palavras. Ele se levantou, aproximou-se do quadro e tocou o rosto na tela.

— Minha mãe estava grávida, Sâmia. Quando a vovó soube da Nyrill e correu para a ponte... A única coisa viva no meio daquela morte toda era um bebê: eu.

***

#pratodosverem | Descrição da imagem: em meio a uma nevasca, há um bebê nu deixado no chão. A criança chora enquanto o vento frio assola seu corpo.

 A criança chora enquanto o vento frio assola seu corpo

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