OIV Ó MIDHIR (PARTE 4)

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NÃO ERA UMA ESTUFA. Ao menos, não no sentido usual da palavra "estufa" no vocabulário dos arcéh. Ao sair do quarto, Sâmia se viu em um corredor com os quartos de um lado e, do outro, uma fileira de janelas abertas para o campo. As linhas de plantações estendiam-se de leste a oeste até os limites da floresta. Enquanto nas outras dezesseis estufas a produção era diversificada, indo de legumes à criação de animais, nas terras de Ó Midhir havia apenas frutas, grandes ao ponto da menina, mesmo naquela distância, conseguir distinguir cada uma delas. Os colhedores carregavam cestos nas costas e entoavam uma canção sobre as benesses da terra e os tesouros escondidos na mata. As plantas pareciam mover-se ao ritmo dos acordes e, para o encanto da garota, soltavam suas frutas dos galhos como se as entregassem de presente às pessoas. Depois, os galhos retornavam à posição normal e lançavam suas folhas ao alto, para receberem o banho de sol.

Sol...

Só nesse momento, Sâmia percebeu dois detalhes: estava quente e ela estava sem os casacos, trajava apenas suas roupas habituais.

Debruçou-se no parapeito e olhou para cima, em busca do céu. Qual não foi sua surpresa ao notar que não havia ceu: acima das plantações, onde deveriam haver nuvens ou tons azuis, havia uma cobertura de folhas, como se as plantas crescessem não apenas na terra como também no ar. Pensou ser uma espécie de "telhado de folhas", porém, aqui e ali a abóbada tinha aberturas para deixar a luz entrar e era possível enxergar o ceu de Arcéh através delas. Era um mistério como o inverno não entrava nos domínios de Ó Midhir.

— Mesmo no fim, a magia das matriarcas continua com seu encanto, não é?!

Por pouco Sâmia não gritou ao deparar-se com uma senhora de pé ao seu lado. Quando a mulher aparecera ali, ela não sabia. Apoiada em uma bengala, a idosa batia na altura dos ombros da menina Sotein. Os cabelos estavam pontilhados por pedaços de folhas e o sorriso em sua face parecia talhado, como se há anos ela não parasse de sorrir.

— Você está melhor, menina? – a voz da senhora saia como uma brisa, leve e delicada. Sâmia precisou redobrar a atenção para poder escutá-la.

— Sim, estou. Obrigada.

— Fico tranquila por isso. A árvore pode ser cruel com aqueles cujos fardos nas costas são pesados demais. Você tem pouca idade, mas já suporta uma grande responsabilidade. Seus olhos não conseguem esconder isso. Não desta velha, pelo menos.

— Eu tive... Um sonho, eu acho...

— Um sonho. Hum... Você quer acreditar nisso?

Sâmia mordeu os lábios sem esconder a apreensão.

— S-Sim... Por que eu não acreditaria?

— Porque aquele pinheiro expõe verdades, menina; não sonhos. Talvez, aquela árvore não mostre a realidade, mas, com certeza, faz com que certas dúvidas se tornem mais claras e a busca pelo verdadeiro seja menos penosa.

— Mas o Unagor me disse que são poucas as pessoas que passam por essa experiência. Em teoria, todos deveriam ter a mesma experiência que eu tive, não é? Todos carregam fardos.

— Sim, todos nós carregamos. E todos os que passam pela árvore têm as visões. Mas... – ergueu o dedo para a menina quando percebeu a ansiedade dela em falar. — Assim como os sonhos, as pessoas só lembram da visão trazida pelo pinheiro quando lhes é algo muito profundo, muito pesado; quando o fardo já se tornou quase insuportável. É assim, mesmo que a pessoa não reconheça isso.

Sâmia desviou-se do interesse da mulher e tornou a observar a plantação. Tentou fingir calma, mas a cena do deus estava pintada em sua mente: um deus de vestes brancas envolto pelo vermelho do sangue dos arcéh ou, talvez, do próprio sangue. Sentiu o toque áspero das mãos da senhora em seu braço e desabafou.

O Bailarino de ArcéhOnde histórias criam vida. Descubra agora