DESPEDIDAS E REENCONTROS (PARTE 1)

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SENTADA NA VARANDA DE CASA, SÂMIA OBSERVAVA O AZUL DO CÉU. De onde estava, era possível ver a casa dos pais no fim da estrada e a correria de um grupo de crianças para cima e para baixo. A mulher sentiu um pesar: ciente das mudanças no clima de Arcéh, era uma pena vê-las tão felizes para, à meia noite do dia seguinte, tudo ser coberto pela neve. O branco tomaria as ruas e o céu e as brincadeiras fora de casa, tão comuns nas noites de verão, seriam interrompidas por cinco anos. Aquelas crianças, agora com sete, oito anos, seriam adolescentes quando tornassem a sentir o calor em suas peles. Era um pouco injusto viver daquele jeito, ela não podia negar. Por mais que a ilha já estivesse acostumada ao ciclo, era inevitável não refletir sobre aquilo ao ver os pequenos tão felizes.

Sem pensar, ela passou os dedos pela marca no braço direito, do cotovelo até o pulso.

Já faziam oito anos desde aquela terrível noite e muita coisa acontecera. Sâmia Sotein vivia agora outra vida, uma vida distante daquela da juventude. A rotina de trabalho para solucionar entraves comerciais entre Arcéh e o continente tomava-lhe boa parte do tempo e o restante era dedicado a cuidar da casa e fazer companhia à Phil. O rapaz trabalhava no estaleiro da cidade e era um dos encarregados pela construção dos barcos de pesca. Com a chegada de mais uma temporada de gelo, preparava-se para deixar a cidade e a esposa para trás e partir em uma caminhada pelo oceano congelado em busca de peixes.

Para quem perguntasse, ela poderia alegar que a partida de Phil era o motivo de sua melancolia. Seria quase a mesma desculpa da última vez e, é claro, muitos acreditariam. Sua posição de esposa dava a ela um aval ainda maior para preocupações. Porém, essa mesma desculpa também seria uma grande mentira: a apenas um dia para completar vinte e três anos, as lembranças do ataque, das perdas e mortes, enfim, de tudo o que a data significava, pareciam mais dolorosas.

Se havia um sentimento de medo e até de ansiedade em rever o deus e como ela reagiria ao ver-se diante dele após tanto tempo, havia também uma preocupação chamada Madame Lita. Por todo esse tempo, ela evitou pensar no assunto. Chegou até a falar com Phil sobre a possibilidade de quebrar a promessa e não entregar a avó ao Inverno, mas ele logo a fez desistir da ideia. Segundo o Voggi, se Sâmia estivesse certa sobre o tal urso ser o deus gelado, isso já seria uma prévia do que poderia acontecer à cidade caso o juramento não se cumprisse.

Mas de onde tiraria tanta frieza para entregar a avó à morte?

Madame Lita voltara à cidade a pouco mais de uma semana e, nossa!, como estava vigorosa...


SÂMIA RESOLVIA QUESTÕES NA QUINTA ESTUFA QUANDO UM RAPAZOTE ENTROU NO SALÃO DE REUNIÕES E, ESBAFORIDO, ANUNCIOU O ALVOROÇO NA ENTRADA DA CIDADE. Temerosos de algum problema, todos correram para a ponte, mas não precisaram se aproximar para entender o que acontecia: do alto da ladeira já era possível ver Lita Delgo sentada no teto da carruagem. A mulher acenava para as pessoas com um sorriso luminoso. No alto de seus oitenta e três anos, Madame Lita irradiava energia e vitalidade. Os cabelos podiam estar mais brancos, sim, e a pele com mais rugas, porém, cascas não revelam a beleza de coisa alguma: aquela mulher era tão ou mais jovem do que qualquer um com menos idade.

Sâmia largou tudo e correu para abraçar a avó. Seu coração sorria enquanto as duas giravam no meio da multidão. Lita admirou-se por ter deixado uma menina e reencontrá-la uma mulher; Sâmia alegrou-se por estar mais uma vez com a sua mentora.

— Oh, minha querida! Minha querida, Sâmia! Quanta saudade! Quanto tempo! - segurou o rosto da neta entre as mãos e tocou em cada canto dele, como se não acreditasse em sua visão. — Você está maravilhosa! Que orgulho, Sâmia! Que orgulho! Você seguiu em frente, minha querida!

— Por que a senhora não avisou que iria chegar hoje?

— Eu ainda sou uma grande atriz, garota! - apontou para a multidão de olhos arregalados para ela. — Eu gosto de entradas triunfais. Não passei todo esse tempo longe, vivendo tantas coisas, para voltar calada e sem chamar atenção. Eles me amam! - e jogou beijos para as pessoas. Na verdade, poucas sabiam ao certo quem era aquela mulher, mas, quando viram um aglomerado se formar em torno dela, correram para fazer o mesmo.

— E eu tenho uma surpresa para você!

Sâmia estranhou quando Madame Lita deu duas batidas na porta da carruagem. Quando esta se abriu, a Sotein sentiu-se explodir por dentro (ela e boa parte daquela multidão de curiosos): de barba, cabelo curto, feições diferentes, Oiv Ó Midhir saiu e surgiu à luz do sol. O olhar dele abarcou toda a cidade, passeou pela ponte e pelo rosto de cada uma daquelas pessoas e parou em Sâmia.

#pratodosverem | Descrição da imagem: montagem com fases da vida do Unagor Oiv, indo desde ele de cabelo comprido e cavanhaque, passando por um cabelo mais curto e chegando até à fase de barba completa e cabelo curto penteado para trás

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#pratodosverem | Descrição da imagem: montagem com fases da vida do Unagor Oiv, indo desde ele de cabelo comprido e cavanhaque, passando por um cabelo mais curto e chegando até à fase de barba completa e cabelo curto penteado para trás.

***

— Ainda posso tratá-la por "criança", senhorita Sotein? Certos hábitos são difíceis de serem deixados para trás. - ele sorriu e Sâmia chorou de alegria. O Unagor encontrara sua "jaula" como dissera anos antes. A felicidade do homem irradiava por sua pele. Ele se encontrara, enfim; encontrara a própria completude. As pessoas ao redor tinham as bocas abertas, mas não pela surpresa perante aquele homem.

Elas viam diante delas alguém que não abaixara a cabeça.

Oiv Ó Midhir, o tão comentado Unagor, uma das lendas exóticas da ilha, estava ali, de pé.

Primeiro, foram poucos; depois, mais alguns. E, de repente, para a surpresa de Lita, Oiv e Sâmia, as pessoas aplaudiam e se aproximavam do Unagor para abraçá-lo. No começo, quem via de longe pensava ser uma forma de pedir perdão pelos anos de humilhação, mas não: naquele momento, havia orgulho no rosto dos arcéh. Orgulho por terem a oportunidade de se redimirem, orgulho por estarem na presença de um homem corajoso; orgulho por apresentarem aos filhos um exemplo.

E, cada um ao seu modo, agradeciam ao universo por terem a oportunidade de corrigir seu erro. O nome Oiv Ó Midhir não passou a ser apenas o nome de um homem. Passou a ser o nome de alguém que era o que queria ser e lutou para sê-lo.

Aquele fora um dia muito especial, Sâmia recordava. Mas, enquanto todos aplaudiam Madame Lita e abraçavam o Unagor Ó Midhir, ali ao lado a Sotein sentia o coração apertar e apenas uma conclusão alcançar sua mente: em pouco tempo, todo o vigor de Lita Delgo se perderia no gelo.

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O Bailarino de ArcéhOnde histórias criam vida. Descubra agora