O DESPERTAR DE LITA DELGO (PARTE 4)

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MARGARETH ENTROU NA CASA FEITO UM LOBO FAMINTO. Pegou as roupas de Sâmia e as levou ao nariz. Inspirou o cheiro ao ponto de sufocar. Mandou ninguém se mexer, despiu-se de um, dois, três, sete casacos e deu uma boa olhada ao redor.

— Onde está mamãe?

— D-Do-Dormindo.

— Até uma hora dessas? Estranho.

— Ela não passou a noite m-muito bem. - atentou para a xícara ainda em suas mãos. — Fiz um chá para ela...

— Chá de quê?

— Margareth, pra que isso tudo...? Nós já estamos aqui, está tudo bem; a Sâmia já cuidou de tudo, não foi, querida? Por que você não para com as perguntas e vai lá em cima ver a sra. Delgo?

Margareth sorriu para o marido com o fino da ironia e tomou a xícara das mãos da garota. Cheirou, passou o dedo nas sobras do líquido e levou à boca, estalou a língua. Seus olhos estreitaram-se:

— Isso aqui, por acaso, é Manon?

— Não! É claro que não! É... São... Ervas! Muitas ervas que eu achei na cozinha!

— Sâmia... - a sra. Sotein hiperventilou e pareceu prestes a estraçalhar a xícara nas mãos. Higor olhou para a filha e nada disse. A garota lançou um pedido de ajuda ao pai, mas ele olhava para o alto da escada, o cenho franzido ao escutar um barulho. Enquanto isso, Margareth já voltara a si com as pupilas dilatadas e a xícara estraçalhada na mão. A mulher não pareceu notar o sangue aos pingos pelos seus dedos. Quando falou, a voz estava a um passo do estridente.

— Sâmia... Sâmia... SÂMIA! Por... Favor... Não me diga que você e sua avó...

— Margareth, que absurdo!

— ... PASSARAM A NOITE FUMANDO MANON!

Talvez ainda fosse resquício do chá, Sâmia nunca soube. À menção de tamanha barbaridade, a garota caiu no chão de tanto rir. A imagem de Madame Lita Delgo, respeitada entre os arcéh, viúva de um dos administradores das estufas, sentada em um tapete junto à neta para enrolar folhas de Manon e fumar, era engraçada demais para passar incólume. Margareth não precisou de mais provas: o descontrole da filha já era o suficiente para comprovar tamanha vergonha.

Ignorou o próprio ferimento na mão e segurou a filha pelo braço. Em cidades pequenas como Arcéh, qualquer situação daquele tipo espalhava-se por todo canto como uma inundação. A possibilidade de ver o nome da família entre o falatório dos finais de tarde já a deixava com os nervos à flor da pele.

— CONFESSE!

— Mãe, eu não fumei Manon! - Sâmia até pensou em completar a frase com um "Na verdade, meu bem, eu cheirei Manon!", mas seria o estopim para Margareth lança-la janela afora. — Será possível?! Me solte.

— Você está com cheiro de quem fuma Manon, Sâmia! Não minta para mim!

— Ah, é?! E como a senhora sabe o cheiro de quem fuma Manon?

Margareth enrubesceu e chegou a gaguejar. Higor abafou um sorrisinho, mais uma vez olhou para o alto da escada e sentou-se em uma poltrona. Queria estar de camarote para assistir o início do espetáculo.

­— Por que ela já fumou mais Manon do que toda esta cidade junta! - a voz de Madame Lita desceu os degraus e pareceu jogar uma onda de energia contra a mulher. 

Margareth soltou Sâmia e encarou a mãe. Sua língua ficou paralisada. E não era para menos: Lita Delgo descia as escadas com um vestido de festa digno dos bailes de outrora de Arcéh e usava suas joias da época de atriz dos anfiteatros do continente.

O Bailarino de ArcéhOnde histórias criam vida. Descubra agora