PRATA E OURO

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A NOITE CAIA EM UMA VILA DISTANTE NO INTERIOR DE UM CONTINENTE DO OUTRO LADO DO OCEANO. Ali, como em quase todas as cidades acostumadas ao gelo, também era costume os moradores dormirem à espera da chegada do inverno. Ou nem todos: libertos dos pais, dois irmãos escondidos em uma árvore tinham a expectativa de olhar a Nyrill tão famosa. A milhares de quilômetros de Arcéh, a fama daquele ser fantástico também gerava curiosidade, apesar de não despertar em sua população os mesmos desejos mórbidos. Naquela vila não havia poemas, quadros ou promessas de milagres. Respeitavam e aceitavam o inverno como era e isso bastava para eles.

Da copa de um jequitibá, os irmãos deslumbravam-se com o espetáculo da mudança de cores no ceu. Àquela época, rajadas de verde, violeta e azul formavam caminhos por entre as estrelas e transformavam a noite em obras de arte. Só por isso, já valia a pena para a dupla ter ficado acordado. Estavam felizes por poderem presenciar algo tão belo. Pensavam se já não seria o suficiente por uma noite de aventuras e se prepararam para ir embora quando viram uma grande estrela brilhar como fogo ao ponto de dissipar a aurora e depois cair no meio da plantação.

Os irmãos se empolgaram: seja lá o que fosse aquilo, teriam histórias suficientes para contar no dia seguinte e pelo restante de suas vidas. Desceram da árvore e correram para o local.

O impacto levantara uma nuvem de poeira, mas os olhos dos dois, a capacidade de visão aumentada pelo excesso de curiosidade e de empolgação, logo se acostumaram à interferência. O queixo de ambos despencou. Parado sobre um monte de terra, um homem de vestes brancas e longos cabelos da mesma cor parecia esperar por alguém. Seu corpo irradiava uma luz dourada, mas a luminosidade não parecia nada reconfortante. Pelo contrário, havia algo de rebelde e traiçoeiro ali; algo capaz de destruir ao menor toque. Em contraste com essa energia violenta, tudo ao seu redor parecia mais vívido, sem nenhum sinal de gelo.

O ser olhava para o ceu com a atenção fixa em um ponto. Só ousava se mexer para ajustar o arco dourado em suas costas e a aljava cheia de flechas pretas. Momentos depois, quando o conhecido vento frio correu pelo campo, ele se armou, apontou para a escuridão celestial e disparou.

Houve um som de impacto, forte o suficiente para ser ouvido pelos garotos. Após isso, seguiu-se a queda de uma estrela azulada a poucos metros de onde o outro estava. Envolto pela luz, ergueu-se um homem, o rosto idêntico ao do primeiro guerreiro, a roupa branca manchada do sangue que escorria do seu ombro.

— Ladel, o que está fazendo? – protestou o ferido. Retirou a flecha sem maiores esforços e a jogou para longe. — Você quase me matou!

— Oh, Gyen, mil perdões. Sou muito descuidado, você sabe. Eu não mirei direito... – e disparou de novo. A flecha passou a poucos centímetros do alvo. Sem dar tempo a um contra-ataque, Ladel desfechou mais uma vez, porém, com um golpe rápido, Gyen congelou a flecha no ar e a despedaçou.

— AFINAL, O QUE HÁ COM VOCÊ? ENLOUQUECEU?

Aquela voz não parecia acostumada a gritar. Soava trêmula, acovardada. A do outro, por sua vez, tinha o vigor dos acostumados a um bom embate. Ele não precisava gritar para se fazer ouvir.

— Não se faça de tolo. Não depois de tudo. Uma filha, Gyen!? Você, sempre tão decente, tão respeitoso, tão sério. E eu tive que me livrar de Eve? Eu tive de me sacrificar para você retomar o erro?

— EU NÃO SEI DO QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO!

— Ah, não sabe? Pois eu vou fazer você se lembrar. – o tom ameaçador fez as árvores estralarem e o vento soprar com mais força. Impaciente, largou o arco, desembainhou a espada e partiu para cima do irmão.

O Bailarino de ArcéhOnde histórias criam vida. Descubra agora