"O primeiro pedaço é pro papai Biel..."

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Eu e Gustavo resolvemos então levar em consideração as palavras de Samuel e passamos dias conversando sobre uma possível mudança pra Nova York, onde eu estaria mais perto da editora e ele poderia vender suas obras pra grandes galerias.

O tempo corria tão rápido que já nos aproximávamos do aniversário de Théo, e nós batemos o martelo de que nos mudaríamos dali alguns dias após a festa.

Informamos aos nossos amigos sobre nossa decisão e Gustavo resolveu conversar com a família. Ele não conversava com a mãe desde a separação. Ela foi completamente contra a decisão dele.

Gustavo então foi com Théo até a casa da família. Eu não quis ir com eles, essa era uma conversa que ele precisava enfrentar sozinho.

Já passava da meia noite enquanto eu sentado no sofá, procurava um tema pra festa de Théo. Uma chuva fina caía do lado de fora enquanto na tv passava um filme em preto e branco qualquer. Quando de repente vejo Lana se levantar e ficar em frente a janela como se visse alguma coisa.
Ela então começou a latir e rosnar. Fui até a janela ver oque porque da agitação dela, mas ao olhar não consegui ver nada além das árvores balançando com o vento que soprava.
Mas Lana não parava de latir, e latia como se estivesse vendo ou visto algo que eu não conseguia ver.
Tentei acalma-la e ao ver que não estava conseguindo, resolvi levar aquele sinal em consideração.
Fechei a cortina enquanto Lana ainda rosnava pra janela, e no meu quarto, na prateleira mais alta, peguei o revolver que estava guardado ha anos numa caixinha.

Por um segundo pensei em ligar para Gustavo, mas como eu bem sabia, era capaz dele largar tudo oque foi resolver pra voltar pra casa.

Naquela noite, eu e Lana não dormimos muito bem.

Na manhã seguinte Gustavo ligou dizendo que já estava voltando pra casa.
A conversa entre ele e sua mãe foi boa, era a conversa que eles precisavam ter tido ha anos atrás. Oque teria impedido muita coisa ruim de acontecer.

Ao chegar ele veio com Théo que dormia em seu colo após a viagem de carro.

- Nós conversamos bastante e ela me "perdoou" e concordou com nossa mudança. Eu estou tão feliz meu amor, que nada poderia abalar minha felicidade! - Gustavo me deu um beijo com Théo ainda no colo.- Eu estou com o cara mais gato do mundo, o cara que eu amo e que me ama, estou prestes a me mudar pra Nova York, meu filho vai fazer aniversário, nada pode estragar minha felicidade agora...

Gustavo ficou falando sobre as coisas que o estavam deixando feliz naquele dia, e eu não queria atrapalhar a felicidade dele com algo que estava me incomodando desde a noite passada. Na minha cabeça Lana não estava latindo a toa, ela latia pra alguém, e esse alguém só podia ser Claudia.

Ele então subiu pra colocar Théo no quarto enquanto eu fui para o escritório escrever.

- Oque essa arma estava fazendo do lado da cama Gabriel? - Gustavo desceu com o revólver na mão.

Decidi só falar a parte em que Lana estava latindo demais e eu resolvi pegar a arma pra me sentir mais seguro.

- Porque você não me ligou? Eu dava um jeito de voltar. - Ele disse confirmando oque eu havia pensado na noite anterior.

- Não foi nada demais. Eu só fiquei com um pouco de medo, depois dos últimos acontecimentos. Agora vai e guarda isso, não quero que o Théo veja.

...

Chegou o dia do aniversário de Théo.
O tema escolhido foi Peter Pan, filme que eu amava e acabei fazendo com que ele também se identificasse com o menino que não queria crescer.

Fizemos a festa no jardim em frente a nossa casa.
Haviam balões por todas as partes, cama elástica, algodão doce, e Théo vestido de Peter correndo por todos os lados junto dos poucos amigos que puderam vir. Ele nos perguntou por diversas vezes o porquê de alguns amigos não terem vindo, e sempre dávamos uma desculpa.

Nós sabíamos o motivo de vários não terem aparecido, mas não queríamos deixar nada estragar aquele dia.
E nada estragou. Brincamos a tarde toda, comemos todos os doces possíveis, e nos divertimos juntos dos que amávamos.

Hora dos parabéns. Gustavo colocou Théo nas costas e correu pra trás do bolo, enquanto eu observava do outro lado da mesa.

- Está fazendo oque aí? Vem pra cá, seu lugar é aqui do nosso lado. - Gustavo disse esticando a mão.

Todos começaram a gritar e aplaudir o gesto do cara que eu amava. No fundo eu pensava que meu lugar poderia não ser ali, mas ele me fez enxergar de uma vez por todas que nós éramos uma família. Não uma família tradicional, mas uma família que se amava e que seria capaz de qualquer coisa um pelo outro.

Cantamos o parabéns, cortamos o bolo e veio a velha pergunta puxada por Madamme Samovar que fez questão de participar da festa: Pra quem é o primeiro pedaço Théo?

- O primeiro pedaço é pro papai Biel... - Ele disse esticando o bolo pra mim.

Como sempre, eu fiquei sem reação. Quando ouvi papai desliguei e pensei em Gustavo, mas ouvir meu nome em seguida me levou a outra dimensão. Eu amava aquele menino como a um filho, mas tinha a noção de que ele não era.

- Amor, pega o bolo! - Gustavo disse limpando uma lagrima que caiu.

- Você ta triste? - Théo perguntou.

- Não meu amor, eu tô muito feliz. Essa lagrima é de felicidade. Eu te amo ta? - Eu disse enquanto dava um abraço apertado no meu Peter Pan.

- Eu sei que você me ama Pai Biel, eu também te amo muito. Agora eu vou ali no pula pula tá?

Théo saiu correndo enquanto Gustavo me abraçava. Eu não consigo descrever como eu me senti naquele momento, só posso dizer que era um sentimento novo.

A festa continuou como planejada e já no final da festa eu fui surpreendido por um dos pais que estavam lá. Esse em especial, chegou com a cara meio fechada, como quem estava ali obrigado.
Se sentou, e ficou na mesa pelo resto da festa, enquanto sua esposa fazia amizades e se divertia com todos os outros convidados.

- Oi, boa noite! - Ele chegou meio sem graça.

- Boa noite, tudo bem?

- Tudo certo, eu só queria me desculpar pela forma como agi ao chegar aqui. Não cumprimentei vocês, fiquei ali com essa cara de idiota sentado. Mas é porque imaginei que fosse ser diferente. Meu preconceito me fez vir com o pé atrás, mas após ver o amor de vocês, a forma como vocês se respeitam e se amam me fez mudar minha concepção. Parabéns por tudo, eu espero que vocês sejam muito felizes.

Ele me deu um abraço meio sem jeito e saiu sem me dar tempo de responder.
Após aquela breve conversa eles foram embora.

A festa chegou ao fim, e eu dei graças a Deus por tudo ter dado certo.

Como "pai" em dia de festa, eu estava morto. Não consegui parar um segundo pra conversar. Quando não estava verificando oque seria servido, estava correndo atrás de Théo pra fazer ele comer alguma coisa, ou brigando com Gustavo por não me ajudar e ele corria pra resolver oque precisasse.

Todos foram embora e como havíamos contratado todos os serviços da festa. Nada ficou pra ser arrumado. A não ser o mar de brinquedos que se espalhava pela sala.

Sentamos os três na varanda, com Lana aos nossos pés.
Théo dormiu em cinco minutos, Gustavo encostou a cabeça em meu ombro e me agradeceu por tudo que eu havia feito.

Ficamos ali em silêncio, admirando uma de nossas ultimas noites naquela varanda.
Até que Lana se levantou e começou a rosnar olhando pras árvores atrás da casa de Gustavo.

- Você está vendo alguma coisa Gustavo?

- Não Gabriel, ela deve estar doida. Deita quieta Lana! - Gustavo ordenou.

- Eu conheço minha cadela Gustavo. Anda, entra com o Théo. - Pedi me levantando e puxando Lana pela coleira. - Vem pra dentro Lana.

Ela não me obedecia. Ela estava vendo algo que nós não víamos. Mas oque seria?


Até o fim...Onde histórias criam vida. Descubra agora