¤ Falta de amor, talvez? ¤

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Visconde de Mauá, 22 de agosto de 2018

🎧 The scientist - Coldplay 🎧

Ao fim do dia de ontem minha irmã mais nova, Buh, recebeu uma ligação por meio da nossa irmã do meio, a mãe do Sasa. Era alguém muito importante para nós, mas ela, a Buh, já dormia e não pôde atender, o que levou a pessoa a querer falar comigo. Eu que não sou muito chegada a atender ligações, fiz um esforço. Peguei o celular estendido para mim e olhei o nome do contato, pensei em rejeitar, mas ele já sabia que eu estava disponível para falar, respirei fundo e disse um pequeno e tímido "alô", a voz do outro lado da linha, que deixou de ser tão familiar quanto deveria, soou um tanto envergonhada, talvez pela falta que sabe fazer ou por, tanto quanto eu, não saber lidar com a situação. "Oi filha", foi o que ouvi em resposta do outro lado, essas duas palavras me abalaram tão profundamente que tive de respirar fundo mais uma vez para respondê-las, com todo meu falso autocontrole eu disse "Oi pai". Sim, meu coração se partiu ali, sem motivos plausíveis, talvez, para quem não conhece essa parte da minha vida, mas creio que de todas as decepções, essa seja a pior e a que sinto até hoje tal como o primeiro dia.

🎧 Minha triste imperfeição - Rosa de Saron 🎧

Quando eu tinha onze anos a convivência entre meu pai e minha mãe se tornou indelicada, nossa casa um campo de guerra, eu e minhas irmãs os civis no meio do caos. O que nos deixou uma marca para toda vida, porém alguns civis saem mais machucados que outros, não dá para se medir a dor nem compara-la, mas da para se calcular a profundidade da ferida. Fazia dois meses que eu tinha completado doze anos quando meu pai convocou minhas irmãs e eu para uma conversa séria, eu tinha pavor de conversas sérias, tanto com ela quanto com minha mamãe. Fomos a sala e ele começou seu discurso quase que fúnebre sobre como o relacionamento com a mamãe ia de mal a pior, enquanto ele decorria as palavras que eram como tiros ao alvo, nosso coração, eu só tentava me concentrar em algo que não fosse a voz de meu pai. Aproveitei que a TV estava ligada e me foquei nela. Não, não era real aquela cena e eu só queria acordar. Alguém me belisca por favor! Percebi que o discurso tinha acabado quando a irmã do meio começou a chorar, eu preferi não olhar para ela, manteiga derretida que só eu, não queria chorar para não tornar a cena realidade. Após promessas falsas de consolo feitas por meu pai a nós, voltamos ao que estávamos fazendo, talvez por não crer que havia de fato acontecido ou por puro descaso com a situação. Não me lembro se meu pai partiu no mesmo dia ou se esperou o próximo que viria, prefiro acreditar que ele foi no próximo para poder rever sua decisão e quem sabe levar a família que ele formou com minha mãe até o fim da vida. Mas ele se foi e levou todo meu coração, toda a minha fantasia de familia perfeita, todo o resto da minha criação com meus pais, toda a felicidade da nossa família. Minha mãe ficou com depressão, a irmã do meio chorava todos os dias no banheiro, a mais nova quase não demonstrava sentimento, de certo que por não entender, eu só levava os dias achando que ele toda tarde voltaria para casa depois de um dia longo no trabalho para jogar videogame com a gente. O tempo foi passando e a ficha foi caindo cada vez mais, a cada ida dele lá em casa para nos ver era um pouco de água para o meu jardim de esperança, mesmo que meu pai estivesse ocupado demais com a nova namorada para ficar mais que uma hora conosco. Com o tempo as visitas foram ficando raras e o tempo de afeto menor ainda, o pior eram as desculpas/motivos para tais atitudes. "Não posso fazer isso com a 'vaca gorda' (como a gente chamava a nova namorada do papai)" "Não posso por o pé pra dentro do portão de vocês pra não magoar a 'vaca gorda' " "Vocês também não procuram o pai" "As atitudes só o pai que toma" "É errado com a 'vaca gorda' ". As falsas promessas foram deixadas de lado e se tornaram de fato falsas. Fiz então uma promessa a mim mesma, eu iria seguir em frente e se meu papai quisesse me amar eu estaria esperando ele onde ele mesmo me deixou, ainda espero esse dia chegar. Passei então a regar meu jardim com lágrimas. Complicado era e ainda é ter que lidar com o afeto maior que minhas irmãs recebiam dele, sempre me senti deixada de lado, sempre senti mais a falta que ele faz. Apenas desejo, todos os dias, que ele se lembre de mim e me dê, uma migalha que seja, do amor de pai que a muito ele me priva de ter. Enquanto uns só querem demonstrações de afeto por meio de presentes, dinheiro, favores, o que sobrou do meu coração deseja o mais simples, amor, presença, um abraço verdadeiro. Parecem coisas tão mais difíceis de receber sendo que não demanda nenhum recurso financeiro e alguns preferem tapar a falta que fazem com bens materiais. Essa falta enorme, saudade que sufoca, vazio no peito por saber da falta de alguém tão necessária, me atormenta tanto quanto um filme macabro de terror. Passou-se tanto tempo e minha ferida continua aberta, viva como nunca, não cicatriza. Apesar de tudo, tenho tanta coisa para dar a ele, tanto amor guardado esperando só uma oportunidade para ser dado, tantas risadas entre pai e filha, tantos momentos alegres para fotografar e por num porta retrato para dar de presente no dia dos pais e tornar inesquecível, tantos abraços apertados que esmagam os ossinhos, tanto "te amo papai" não dito por não ter como dizer. É tanto dia dos pais sem a presença de um pai que dá até pra esquecer que existe tal dia no ano. Será que sou errada por querer tanto de uma pessoa que aparenta não ter nada para mim? Por que simplesmente não paro de ligar tanto pra tudo isso e finjo que está tudo bem como minhas irmãs? Por que só aparenta ter algo de errado comigo? O que fiz que não está certo? O erro sou eu? Eu só queria entender o porquê.

🎧 Ninguém mais -
Rosa de Saron 🎧

A Complexidade Que Há Em MimOnde histórias criam vida. Descubra agora