Capítulo 28

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O singelo beijo que ela me deu na testa antes de sair foi mágico, inerente à suspensão da dor que sentia entornar na cabeça. Pertinente para selar uma das conversas expositivas mais difíceis e esclarecedoras dos últimos anos. Ela saiu para que ambos pudessem respirar e continuar a normatividade fragmentada em alguns minutos. Ainda sentado, tento refletir e juntar peças de um quebra-cabeça incompleto, dessa forma cada imagem que surge como memórias daquelas violências, acabam sendo deturpadas ou mesmo substituídas pelos discursos daquela garota ainda misteriosa. Além das dúvidas que me proporcionara quando saímos da Estufa, sei que eu podia saber mais. Talvez possa ter algumas conclusões futuras se ao menos pudesse vê-la sob qualquer circunstância. Sara se fez presente e importante para que eu estivesse aqui, tentado entender a si mesmo e no que, para o melhor de mim, tudo isso me demonstrou.

Sigo em direção à janela, desagrupo as persianas e vejo a luz alaranjada, ímpar e passageira do sol se pondo atrás na casa da minha amiga. Acontece divagar, sem parar, desenhando as sombras de cada residência no asfalto. Destravo e subo escorregando a vidraça inferior na tentativa de respirar melhor com a entrada do crepúsculo. Percebo um carro escuro parar frente à porta de Susan, imediatamente sua mãe abre e sai com pressa procurando algo dentro da bolsa despojada em seu ombro. Com o semblante neutro, entra no veículo. Seu "oi" para a pessoa é tímido, assim como as reações físicas que impõe. A porta do carro é fechada com calma. Um minuto depois, dão a partida.

- Não consigo mais olhar assim. - percebo junto a ela o quão pesado foi o susto que levei. - Calma, sou eu. Vi que estava aberta.

"Como entrou aqui?"
"Alguém esqueceu de fechar a porta."

É como se fosse agora. Como se fosse uma real ilusão. O susto, a forma como ela proferiu, soou intensamente análogo. Pisco algumas vezes.

- Acho que dessa vez é pra valer. - ela pensa alto enquanto olha para o carro indo embora sem pressa.

- O quê?

- Você sabe, o último com quem esteve mais tempo foi meu pai. Algo que ocorreu há doze anos. - ela denota um inconformismo vertiginoso. - Não vejo a hora de estar numa república, por mais maluco que seja isso!

- Eu entendo... Há uma semana, eu apenas pensava em independência cívica e social. Só que, na verdade, estava me aprisionando.

Ela emudece por um instante. Não percebo que falei baixo, focado no piso do quarto até ela tocar na minha nuca e com o polegar, depois acariciar meu rosto, o levantando.

- Teve um dia que senti como se não fosse mais te ver. - ela retira a mão para gesticular. - Quando todos soubemos que você desapareceu e a polícia estava fazendo buscas, ficamos duvidosos e não acreditamos até seu pai nos contar quando estavam se arranjando para irem.

- Se eu contar, vocês não acreditariam.

- Sei disso. Theo com certeza iria surtar. - ela procura a vinda de afirmações. - Mas não vim aqui para saber de toda história. Apenas queria estar com você depois da tamanha apreensão que absorvi.

- Quer me abraçar? - interpelo ironicamente com um singelo sorriso concordando com sua vontade implícita. Ela, então, faz com rapidez enquanto diz:

- Bobo! - assim que desencostamos ela murmura sorrindo em curta escala. - Que bom te ter aqui.


Susan questiona sobre o quarto estar diferente de uma forma quase inacreditável, como se parecesse outro ambiente que não o meu. Explico de maneira leve. Depois que uma pressão se distanciar, nos acostumamos facilmente em verbalizar sobre a escola e a nova casa que o pai de Johnny financiou para fins de cortejo à vida acadêmica. Ainda que eu irreleve sem contestações, se torna um entrosamento benéfico e crucial, resultando num sentimento de gratidão ora por tê-la conhecido e criado uma linda união, ora por tê-la como amiga e irmã confidente. Dentre outras novidades que me conduz, diz que Theo estava um tanto incomum por temer minha reação quanto sua abordagem; ele estava introvertido e preocupado. Susan pega um livro de cabeceira que eu já não lembrava qual seria pelo estado de insônia há um mês. É Caixa de Pássaros, de Josh Malerman, logo, admito que é preciso de fôlego e senso lúdico para dissecá-lo, sendo assim, por qual razão escolheria esta obra quando não existia um Daniel disposto a pensar em nada além do que os próprios medos do amanhã invisual? Quando ela o deixa de lado, lembro sobre o seu futuro.

- O que a Raíssa acha da estadia na república?

- Ela não seguirá meus passos, mas sempre daremos um jeito para estarmos juntas. - Susan dá uma pausa. - Não vai ser como hoje, porque ela não sabe o que ainda pretende, apesar do pai a deixar livre para descobrir o que a faz mais feliz.

- Justo.

Ouvimos minha mãe bradar voluptuosamente nos chamando para descer e ver o noticiário. Vou antes para a janela agrupar as persianas enquanto Susan vai à porta. Já anoiteceu e as lâmpadas externas de cada casa amplificam a luminosidade se fazendo visível a rua central. Meu corpo começa a esquentar e meu coração acelerar, por evidentemente se tratar o que já espero introjetar. Não se acanhe Daniel, esteja são para o que vais assistir. Fugazes, descemos as escadas; Susan logo a questiona e não obtém respostas. Paro no último degrau, a mãe está bloqueando minha visão para a televisão com o corpo. Susan pega o controle sobreposto na braçada do sofá e aumenta o volume.

- ...um dos percursos explorados pelas autoridades nos interiores da floresta local, os fizeram encontrar, ao extremo leste, resquícios de sangue humano que demarcavam um caminho, sinalizando uma espécie de fuga pelos apuradores. - Me locomovo a passos curtos para perto da minha mãe que entrelaça os braços em si mesma. Agora, olho para as imagens gravadas, e elas me aterrorizam. - O corpo encontrado desacordado próximo a uma Estufa de vidro é de Miguel Fernandes Silva, identificado pela perícia ao investigar sua residência no Vilarejo em Juiz de Copas, suspeito de perseguir e sequestrar um jovem garoto de dezessete anos, seu irmão de seis, aprisionar um casal de idosos da mesma família no porão da própria casa, além de assassinar Frederico Guimarães de Oliveira frente sua solitária residência às margens do lago local, onde os dois garotos e uma garota desacordada foram encontrados. Nesse cenário, ele responderá aos questionamentos incitados pelas autoridades ao deterem as devidas condições. Seu quadro de saúde é grave, tem escoriações externas e internas por ter sido baleado no estômago. - As imagens não são ricas em detalhes, nem mesmo mostram seu rosto ou do Senhor Frederico ou de Sara sendo carregados por profissionais da saúde em macas. Me surpreende a frieza da jornalista em destacar minuciosidades com sensatez na voz, o que não diminui o fator incomodo descomunal que absorvo. Lembro da minha reação ao perceber a estonteante Estufa que parece menor do que é mostrado, em que não mais desconfiava do trajeto que fui compelido a contemplá-la. Ela narra a entrada do Vô Roberto para uma das ambulâncias presentes, enquanto a Vó Bette é auxiliada para se dirigir à mesma, de forma consciente. Ela estava visivelmente abalada. Voltam para o estúdio e a formal jornalista conclui: - Em nota, a Delegacia Municipal de Minerva afirmou que estes eram dois dos seis últimos moradores que ainda permaneceriam até o prazo determinado da compra final indenizada de todas as locações para a construção de um centro comercial. As residências que já foram desabitadas, estavam com as placas de aquisição escondidas atrás das mesmas. Mais informações a qualquer momento.

Permaneço embasbacado com pesar.

Até o Limite por VocêOnde histórias criam vida. Descubra agora