Capítulo 30

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A dor pode passar, a opressão pode se afastar, quando passo a não internalizar o que quer que me faça tanto mal, ainda que pareça duro falar sobre isso à alguém. Será como se desprender, se compreender em outra perspectiva. De fato, é uma realidade. Fora o tipo de ensaio sobre hoje, o verossímil dia para falar, após outro de verdadeiros detalhes que exigiam de mim pura sensibilidade tátil, que esteve presente meio aos confusos sonhos desta noite passada. Anseio, mais do que nunca, ser consciente do que sairá da minha boca, do que sairá dos meus poros. Reflete no espelho uma pessoa receosa, com um sério semblante que costumava ter, com pitadas de dualidades que entram em conflito: descomplexificar ou integralizar?

Não posso fazer a primeira opção. Essa pode ser a única vez que pronunciarei abertamente - de maneira reservada - sobre tudo em absoluto. Apenas este "tudo" que me envolveu em todas as noites deitado naquela cama no Holver; se eu, enfim, evidenciar os detalhes, pode ser decisivo. Meu estado de espirito está eufórico, mas aliado às boas expectativas. Essa euforia causa negação, dúvida, ainda que eu esteja demasiadamente em luta. Forço os olhos para cima sob autorrejeição, solto o ar o comprimindo com as bochechas, a seguir, dobro as mangas da camiseta salmão sem estampa com uma mão. Vou pegar meu apoio para o braço engessado despojado em cima da cama, e estou de volta ao espelho. Visto um conjunto que pende à não-formalidade conceitual, com somente a calça preta inversamente a esse aspecto. Penteio os cabelos para trás salientando um leve topete. Solto o pente e paraliso para me contemplar. De repente, me vejo, sujo, com as ranhuras sobressalentes no rosto, através do espelho quebradiço do banheiro do Senhor Frederico. Ouço a voz de Thomas pulando de alegria ao me contar da viagem. Me oriento à porta do quarto no mesmo segundo, abaixo a cabeça e pressiono os olhos com os dedos. Grito pela minha mãe para que possamos ir. Ela ressoa que meu pai já está no carro a postos.

É chegada a hora.

Estamos numa manhã quente, com pouquíssimas nuvens ao céu, ligada a calmas aragens que refrescam e não deixam abafar ou se tornar estridente. Ainda que eu tente, estes sinais naturais não me entorpecem, me engano em achar que eu poderia ser menos saudosista. Mas o momento em questão requer este tipo de tendência.

Me pai dirige mais devagar que o normal, demasiadamente atento ao trânsito e suas peculiaridades que por vezes passariam despercebidas. Minha mãe está separando, agrupando, ou seria organizando alguns documentos que devem ser relevantes? Não sei. Somente este silêncio me causa uma inquietação ascendente. Tento me distrair com Leves Campos enquanto procuro ordenar os fatos na mente. Para cada lugar, praça, moradias ou conjunto de árvores, ela sobrepõe ilusoriamente. Ela será a protagonista de toda minha fala. Sara decodifica, percorre tudo e o todo agravante que demonstrarei nas revelações póstumas das minhas dúvidas, certezas e justificativas sob caráter circunstancial aos respectivos ouvintes. Um deles é a detetive Érica Menezes que pelo pouco conteúdo informativo que visualizei na noite passada, trabalha em casos isolados, salientando a busca por respostas evidenciando as investigações locais e relatos contribuintes. É jovem e conta com quinze casos publicamente solucionados e alguns sigilosos.

São muitas coisas que passam pelos meus neurônios que ativamente me enrijecem. Só que não há mais tempo. Nós chegamos no Edifício Alfa. Antes de entrarmos no estacionamento interno, percebo seus trinta andares, aproximadamente. Ele brilha pelo sol que reflete nas vidraças escuras e amarronzadas que completam sua integralidade com design arrojado e aspectos modernistas. Ele faz atrair os olhares, como sendo o mais chamativo dentre os inseridos neste bairro majoritariamente cívico em Flor-de-Lis. A luz some ao adentrarmos no primeiro piso do subsolo, com carros em toda a parte parados entre linhas brancas pintadas no chão. Minha mãe guarda os papéis numa pasta transparente e a despeja na bolsa, enquanto meu pai tenta encontrar uma vaga. Percebo minhas mãos suarem por espremerem os dedos fervorosamente. Quando, enfim, estacionamos no terceiro piso, ele nos instrui para o elevador sabendo onde estaremos em alguns segundos. Os olhando discretamente pelo espelho, parecem estar devidamente concentrados e puramente aflitos. Assim que as portas se abrem, tomamos um leve susto, ela alinha seu blazer verde-água levantando o queixo, ele toca nas minhas costas ao nos depararmos com um longo corredor em sessões subsequentes para entrada e saída.

Até o Limite por VocêOnde histórias criam vida. Descubra agora