Na terça-feira à noite, a maior parte do que eu acreditava ser o planejamento do meu futuro se revelou estar errada. Na manhã de domingo, meu pai, eu e Jake deveríamos fazer as malas e voltar para casa. Só restavam quatro dias para resolver o meu futuro. Como seria possível que eu ficasse aqui? Por outro lado, como poderia deixar Enoch?
Não tinha ideia do que fazer. Para piorar, não havia ninguém com quem eu pudesse conversar sobre o assunto. Meu pai estava fora de questão. Jake deveria estar tão indeciso quanto eu. Enoch expunha com muita frequência argumentos a favor de que eu ficasse, nenhum dos quais fazia referência à vida que eu estaria abandonando se o fizesse, ou como o súbito e inexplicável desaparecimento de seus filhos poderia afetar meus pais, ou a pressão sufocante que o próprio Enoch tinha admitido sentir dentro da fenda. Ele diria apenas:
— Com você aqui vai ficar mais suportável.
A srta. Peregrine ajudava ainda menos. Sua única resposta era que não podia tomar uma decisão como aquela por mim, apesar de eu apenas querer conversar sobre o assunto. Mas era óbvio que ela queria que nós ficássemos. Além e acima de minha segurança, minha presença ali deixaria todos os outros na fenda mais seguros. Porém não simpatizava com a ideia de passar a vida como cão de guarda deles. Começava a suspeitar de que meu avô tinha achado o mesmo e que essa era parte da razão de sua recusa em voltar depois da guerra. Juntar-me às crianças peculiares também significava não ir para a faculdade ou fazer coisas normais que as pessoas fazem enquanto crescem. Mesmo assim, precisava me lembrar sempre de que eu não era normal e que, enquanto os etéreos estivessem à minha caça, qualquer vida fora da fenda de tempo provavelmente seria arriscada.
Eu passaria o resto dos meus dias com medo,olhando para trás, atormentada por não ter mais meu avô pra me proteger, à espera do dia em que eles voltariam para finalmente acabar comigo. Isso parecia bem pior do que não ir para a faculdade.
Então pensei: Será que não há uma terceira opção? Será que eu não poderia ser como meu avô Portman, que por cinco décadas viveu, trabalhou e combateu os etéreos fora da fenda? Era aí que a voz autodepreciativa em minha cabeça começava a falar: Ele teve treinamento militar, sua idiota. Era um cara frio e durão. E tinha um armário cheio de escopetas de cano serrado. O homem era um Rambo em comparação a você. Você é só uma garotinha fraca, com peculiaridades legais, mas sem saber controlar direito não tem uso. E também, eu não ia aguentar envelhecer e ver o Enoch jovem sempre.
Minha parte otimista dizia que eu deveria me inscrever em aulas de tiro. Aprender caratê. Malhar. Está brincando? Você não conseguia se proteger nem no colégio! Não, eu não.
Você é fraca. É uma fracassada. É por isso que ele nunca lhe deu treinamento. Ele sabia que você não ia ser ninguém.
Cale a boca! Cale a boca!
Durante dias meus pensamentos iam e voltavam desse jeito. Ficar ou partir? Estava constantemente obcecada sem chegar a uma conclusão. Enquanto isso, meu pai perdeu completamente a empolgação com seu livro. Quanto menos trabalha, mais desanimado ficava e, quanto mais desanimado, mais tempo passava no bar. Nunca o tinha visto beber daquele jeito — seis, sete cervejas por noite — e não gostava de estar por perto quando ele fazia isso.
Comecei a evitá-lo. Não tenho certeza de se ele percebeu. Tornou-se fácil, de um modo deprimente, mentir sobre nossas idas e vindas. Na casa, a srta. Peregrine instituiu um isolamento praticamente completo. Era como se houvesse sido declarada lei marcial: as crianças menores não podiam ir a lugar nenhum sem companhia, os mais velhos andavam em duplas e a srta. Peregrine tinha de saber onde todos estavam o tempo inteiro. Só conseguir permissão para sair da fenda já era um sacrifício. Sentinelas eram convocadas e postas para trabalhar em turnos para vigiar a frente e os fundos da casa. Durante todo o dia e na maior parte da noite, era possível ver rostos entediados espiando das janelas. Se as crianças viam alguém chegando, tinham de puxar uma corrente que tocava um sino no quarto da srta. Peregrine, o que significa que sempre que nós chegavamos ela estaria à espera na porta para interrogar. O que estava acontecendo fora da fenda? Tínhamos visto algo estranho? Tinha certeza de que não havia sido seguida? Não foi surpresa as crianças terem ficado meio piradas. Os menores ficaram barulhentos, os mais velhos tornaram-se meio insensíveis, reclamando das novas regras em voz alta o bastante apenas para serem ouvidos por quem estava perto. Suspiros altos irrompiam no ar, normalmente a única pista de que Millard tinha entrado no aposento. Os insetos de Hugh voavam soltos e picaram várias pessoas até serem banidos da casa, depois do que Hugh começou a passar todo o tempo na janela, apenas vendo suas abelhas do outro lado do vidro. Olive, alegando ter perdido seus sapatos de chumbo, começou a se arrastar pelo teto como uma mosca, pregando peças nas pessoas, deixando cair grãos de arroz em suas cabeças até que olhassem para cima, quando então ela dava uma gargalhada tão forte que sua levitação vacilava e ela tinha de se agarrar a um lustre ou trilho de cortina para evitar cair. O mais estranho de todos era Enoch, que desapareceu em seu laboratório no porão para experimentar em seus soldadinhos de barro cirurgias que fariam corar o doutor Frankenstein — amputar os membros de dois para fazer um homem-aranha assustador, por exemplo, ou juntar o coração de quatro galinhas em uma única cavidade torácica numa
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Peculiar history
FanficUma historia sobre os livros do Orfanato da sta. Peregrine para crianças peculiares mas na visão da irmã mais velha de Jacob Portman, porém, mais focada em um romance um tanto quanto peculiar. Emoção, drama, romance, são algumas das sensações que vo...