Capítulo 23

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Emma fechou a mão e a chama se apagou, e todos nos viramos para ver um homem parado à porta com uma lanterna apontada em nossa direção, na outra mão trazendo uma pistola. Enoch rapidamente puxou seu braço do gelo, se colocou a minha frente de modo a me proteger enquanto Emma e Bronwyn se juntaram no meio da aglomeração para encobrir a visão de Martin.

— Não queríamos invadir — disse Bronwyn. — Já estávamos saindo, é sério.

— Fiquem onde estão! — gritou o homem. A voz dele era dura, sem sotaque. Não conseguia ver seu rosto por trás do facho de luz, mas os muitos casacos que usava em camada o identificavam no ato: era o ornitólogo.

— Moço, a gente não comeu nada o dia inteiro — gemeu Enoch, pela primeira vez parecendo um garoto de dezesseis anos. — Só viemos ver se pegávamos um ou dois peixinhos.

— É isso mesmo? — disse o homem. — Parece que vocês já escolheram um. Vamos ver de que espécie. — Ele agitou a lanterna de um lado para o outro como se quisesse nos separar com seu facho de luz. — Afastem-se!

Jogou a luz sobre o corpo de Martin, uma extravagante paisagem devastada.

— Meu Deus, que peixe esquisito, hein? — disse ele, sem qualquer emoção. — Deve ser fresco, ainda está se mexendo! — A luz da lanterna se deteve sobre o rosto de Martin. Seus olhos viraram para trás e seus lábios se moveram sem som em uma paródia medonha de fala, apenas um vislumbre, enquanto a vida que Enoch lhe dera se esvaía.

— Quem é você? — perguntou Bronwyn.

— Isso depende de para quem você está perguntando — retrucou o homem.

— E não é nem de perto tão importante quanto o fato de que eu sei quem são vocês. — Ele apontou a lanterna para cada um de nós e falou como se citasse um dossiê secreto. — Emma Bloom, uma centelha, abandonada num circo quando seus pais não conseguiram vendê-la para um. Bronwyn Bruntley, uma fúria, bebedora de sangue, não conhecia a própria força até a noite em que quebrou o pescoço de seu padrasto canalha. Enoch O'Connor, nascido em uma família de agentes funerários que não conseguiam entender por que seus clientes insistiam em fugir. — Vi cada um deles empalidecer um pouco. Depois ele jogou a luz sobre mim. — Luana garota que não sabe usar as peculiaridades por que o avô era medroso demais para deixar e Jacob. Em que companhia peculiar vocês tem andado esses dias!

— Como sabe meu nome?

Ele pigarreou e, quando tornou a falar, sua voz tinha mudado tão radicalmente que parecia a de outra pessoa.

— Já me esqueceu tão rápido assim? — disse ele com sotaque da Nova Inglaterra. — Só um pobre motorista de ônibus, acho que não se lembra. Parecia impossível, mas de algum modo aquele homem estava fazendo uma imitação muito boa do motorista do meu ônibus escolar, o sr. Barron, um homem tão desprezível, tão mal-humorado, tão roboticamente inflexível que no último dia de aula da oitava série nós arrancamos seu retrato no livro do ano da escola e o prendemos com grampos, como uma efígie, no encosto de sua cadeira. Estava me lembrando do que ele costumava falar sempre que eu descia do ônibus à tarde, quando o homem diante de mim disse o que eu pensava:

— Fim da linha, Portman!

— Senhor Barron? — disse eu, desconfiada, esforçando-me para conseguir ver seu rosto por trás da luz da lanterna. O homem riu, então pigarreou e tornou a mudar de sotaque.

— Ou ele ou o jardineiro — disse com um forte sotaque da Flórida. — Suas árvores precisam de uma poda. Cobro baratinho!

Era a voz, idêntica em cada sílaba, do homem que cuidou do jardim e da piscina da minha família por anos.

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