Alguns fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador, complicados por ordem de um príncipe que reinou há doze séculos em Constantinopla, combinados em seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de comentários obscuros, constituem o velho acervo de opiniões que uma grande parte da Europa honrou com o nome de
leis; e, mesmo hoje, o preconceito da rotina, tão funesto quanto generalizado, faz que uma opinião de
Carpozow (1), uma velha prática indicada por Claro (2), um suplício imaginado com bárbara complacência por Francisco (3), sejam as regras que friamente seguem esses homens, que deveriam tremer quando decidem da vida e fortuna dos seus concidadãos
É esse código informe, que não passa de produção monstruosa dos séculos mais bárbaros, que eu quero examinar nesta obra. Limitar-me-ei, porém, ao sistema criminal, cujos abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade pública, sem preocupação de dar ao meu estilo o encanto que seduz a impaciência dos leitores vulgares.
Se pude investigar livremente a verdade, se me elevei acima das opiniões comuns, devo tal independência à indulgência e às luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de viver. Os grandes reis e príncipes que querem a felicidade dos homens que governam são amigos da verdade, quando esta lhes é revelada por um filósofo que, do fundo do seu retiro, mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em combater com as armas da razão as empresas da violência e da intriga.
De resto, examinando-se os abusos de que vamos falar, verificar-se-á que os mesmos constituem a sátira e a vergonha dos séculos passados, mas não do nosso século e dos seus legisladores.
Se alguém quiser dar-me a honra de criticar meu livro, trate antes de apreender bem o fim que me propus. Longe de pensar em diminuir a autoridade legítima, ver-se-á que todos os meus esforços só visam a engrandecê-la e esta se engrandecerá, de fato, quando a opinião pública for mais poderosa do que a força, quando a indulgência e a humanidade fizerem que se perdoe aos príncipes o seu poder.
Críticos houve, cujas intenções não podiam ser honestas, que atacaram esta obra alterando-a (4). Devo interromper-me um instante, para impor silêncio à mentira azoinada, aos furores do fanatismo, às calúnias covardes do ódio.
Os princípios de moral e de política, aceitos entre os homens, derivam em geral de três fontes: a revelação, a lei natural e as convenções sociais. Não se pode estabelecer comparação entre a primeira e as duas últimas, do ponto-de-vista dos seus fins principais; completam-se, porém, ao tenderem igualmente para tornar os homens felizes na terra. Discutir as relações das convenções sociais não significa atacar as relações que podem encontrar-se entre a revelação e a lei natural.
Uma vez que esses princípios divinos, embora imutáveis, foram de mil modos desnaturados nos espíritos corruptos, ou pela maldade humana, ou pelas falsas religiões, ou pelas idéias arbitrárias da virtude e do vício, deve parecer necessário examinar (pondo de lado quaisquer considerações estranhas) os resultados das simples convenções humanas, quer essas convenções tenham sido feitas realmente, quer se suponham vantajosas para todos. Todas as opiniões, todos os sistemas de moral devem reunir-se necessariamente nesse ponto, e nunca se louvariam bastante os louváveis esforços tendentes a reconduzir os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios que levam os homens a viver em sociedade.
Podem, pois, distinguir-se três espécies de virtudes e de vícios, cuja fonte está igualmente na religião, na lei natural e nas convenções políticas. Jamais devem essas três espécies estar em contradição entre si; não alcançam, contudo, os mesmos resultados e não obrigam aos mesmos deveres. A lei natural exige menos que a revelação, e as convenções sociais menos que a lei natural. Assim, é muito importante distinguir bem os efeitos dessas convenções, isto é, dos pactos expressos ou tácitos que os homens se impuseram, porque nisso deve residir o exercício legítimo da força, nessas relações de homem a homem, que não exigem a missão especial do Ser supremo.
Pode dizer-se, portanto, com razão, que as idéias da virtude política são variáveis. As da virtude natural seriam sempre claras e precisas se as fraquezas e as paixões humanas não empanassem a sua pureza. As idéias da virtude religiosa são imutáveis e constantes, porque foram imediatamente reveladas pelo próprio Deus, que as conserva inalteráveis.
Pode, pois, aquele que fala das convenções sociais e dos seus resultados ser acusado de mostrar princípios contrários, à lei natural ou à revelação, por nada dizer a respeito?... Se diz que o estado de guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade, é o caso de compará-lo a Hobbes (5), que não
supõe para o homem isolado nenhum dever, nenhuma obrigação natural?... Não se pode ao - contrário, considerar o que ele diz como um fato, que foi tão somente a conseqüência da corrupção humana e da ausência das leis? Enfim, não é um erro censurar um escritor, que examina os efeitos das convenções sociais, por não admitir antes de tudo a existência mesma dessas convenções?.
A justiça divina e a justiça natural são, por sua essência, constantes e invariáveis, porque as relações existentes entre dois objetos da mesma natureza não podem mudar nunca. Mas, a justiça humana, ou, se se quiser, a justiça política, não sendo mais do que uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade, também pode variar, à medida que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social. Só se pode determinar bem a natureza dessa justiça examinando com atenção as relações complicadas das inconstantes combinações que governam os homens.
Se todos esses princípios, essencialmente distintos, chegam a confundir-se, já não é possível raciocinar com clareza sobre os assuntos políticos.
Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do injusto, segundo a maldade ou a bondade interiores da ação. Ao publicista cabe determinar tais limites em política, isto é, sob as relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade.
Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao outro, porque todos sabem quanto a virtude política está abaixo das virtudes inalteráveis que emanam da Divindade.
Repito, pois, que, se quiserem dar ao meu livro a honra de uma crítica, não comecem por me atribuir princípios contrários à virtude ou à religião, pois tais princípios não são os meus; em lugar de me assinalar como um ímpio ou um sedicioso, contentem-se em mostrar que sou mau lógico ou ignorante político; não tremam a cada proposição em que defendo os interesses da humanidade; verifiquem a inutilidade de minhas máximas e os perigos que podem ter minhas opiniões; façam-me ver as vantagens das práticas recebidas.
Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da minha submissão ao soberano, ao responder às Notas e Observações que se publicaram contra minha obra. Devo guardar silêncio em relação aos escritores que doravante só me opuserem as mesmas objeções. Mas, aquele que puser em sua crítica a decência e o respeito que os homens honestos se devem entre si, e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a demonstrar-lhe os princípios mais simples, de qualquer natureza que sejam, encontrará em mim um homem menos apressado a defender suas opiniões particulares do que um tranqüilo amigo da verdade, pronto a confessar os seus erros.
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Dos Delitos e Das Penas
Non-Fiction"Dos delitos e das penas" é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros. Na época havia...