XXXVII. De uma espécie particular de delito

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     Os que lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano.

     Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras, em que homens vivos serviam de alimento às chamas, em a que multidão feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes, em que cidadãos corriam, como a um espetáculo agradável, a contemplar a morte dos seus irmãos, no meio dos turbilhões de negra fumaça, em que os lugares públicos ficavam cobertos de destroços palpitantes e de cinzas humanas.

     Os homens esclarecidos verão que o país onde habito, o século em que vivo e a matéria de que trato não me permitiram examinar a natureza desse delito. Seria, aliás, empresa demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto, querer provar, contra o exemplo de várias nações, a necessidade de uma inteira conformidade de opinião num Estado político; procurar demonstrar como certas crenças religiosas, entre as quais só podem achar-se diferenças sutis, obscuras e muito acima da capacidade humana, podem contudo perturbar a tranqüilidade pública, a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras proscritas.

     Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenças, tornando-se mais claras pela fermentações dos espíritos, podem fazer nascer do choque das opiniões a verdade, que então sobrenada depois de ter aniquilado o erro, ao passo que outras seitas, pouco firmes em suas bases; têm necessidade, para manter-se, de se apoiarem na força.

     Seria demasiado longo, igualmente, mostrar que, para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso tiranizar os espíritos e constrangê-los a vergar sob o jugo da força, embora essa violência se oponha à razão e à autoridade que mais respeitamos (21), que nos recomenda a doçura e o amor dos nossos irmãos, embora seja evidente que a força só faz hipócritas e, portanto, almas vis.

     Deve-se crer que todas essas coisas estarão demonstradas e conformes aos interesses da humanidade, se houver em alguma parte uma autoridade legítima e reconhecida que as ponha em prática.

     Quanto a mim, só falo aqui dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social; devo silenciar, porém, sobre os pecados cuja punição mesmo temporal deve ser determinada segundo outras regras que não as da filosofia.

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