XXVIII. Das injúrias

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     As injúrias pessoais, contrárias à honra, isto é, a essa justa porção de estima que todo homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos, devem ser punidas pela infâmia.
Há uma contradição notória entre as leis, ocupadas sobretudo com a proteção da fortuna e da vida de cada cidadão, e as leis do que se chama a honra, que preferem a .opinião a tudo.

     A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os mais brilhantes raciocínios, sem ligar-se a nenhuma idéia fixa e precisa. Tal é a triste condição do espírito humano, que conhece melhor as revoluções dos corpos celestes do que as verdades que o tocam de perto e que importam em sua felicidade. As noções morais que mais o interessam lhe são incertas; só as entrevê cercadas de trevas e flutuando ao sabor do turbilhão das paixões.

     Esse fenômeno deixará de causar espanto quando se considerar que, semelhantes aos objetos que se confundem aos nossos olhos, porque estão próximos demais, as idéias morais, perdem a clareza por estarem demasiado ao nosso alcance.

     Apesar de sua simplicidade, discernimos com dificuldade os diversos princípios de moral e julgamos, muitas vezes sem conhecê-los, os sentimentos do coração humano.

     Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens, não se admirará de todas essas coisas; pensará que, para ser feliz e tranqüilo, o homem talvez não tenha necessidade de tantas leis, nem de tão grande aparato moral.

     A idéia da honra é uma idéia complexa, formada não somente de várias idéias simples, mas também de várias idéias complexas por si mesma. Segundo os diferentes aspectos sob os quais a idéia da honra se apresenta ao espírito, algumas vezes ela encerra e outras exclui certos elementos que a compõem, só conservando nessas diferentes situações um pequeno número de elementos comuns, como várias quantidades algébricas admitindo um divisor comum. Para achar esse divisor comum das diferentes idéias que os homens fazem da honra, lancemos um rápido olhar sobre a formação das sociedades.

     As primeiras leis e os primeiros magistrados originaram-se da necessidade de impedir os abusos que teria ocasionado o despotismo natural de todo homem mais robusto do que o vizinho. Foi esse o objeto do estabelecimento das sociedades e essa a base real ou aparente de todas as leis, mesmo as que encerram princípios de destruição.

     Mas, a aproximação dos homens e os progressos dos seus conhecimentos fizeram nascer em seguida uma infinidade de necessidades e ligações recíprocas entre os membros da sociedade. Nem todas essas necessidades tinham sido previstas pela lei, e os meios atuais de cada cidadão não lhe bastavam para satisfazê-las. Começou então a estabelecer-se o poder da opinião, por meio da qual podem obter-se certas vantagens que as leis não podiam proporcionar, e evitar males de que elas não podiam preservar.

     É a opinião que constitui, muitas vezes, o suplício do sábio e do medíocre. E ela que concede às aparências da virtude o respeito que recusa à própria virtude. É a opinião que de um vil celerado faz um missionário ardente, quando esconde seu interesse nessa hipocrisia.

     Sob o reinado da opinião, a estima dos outros homens não é somente útil, mas indispensável a quem permanecer ao nível dos seus concidadãos. O ambicioso procura os sufrágios da opinião que lhe serve os projetos; o homem vão mendiga-os, como um testemunho do próprio mérito; o homem de honra exige-os, porque não pode dispensá-los.

     Essa honra, que muita gente prefere à própria existência, só foi conhecida depois que os homens se reuniram em sociedade; não pode ser posta no depósito comum. O sentimento que nos liga à honra não é outra coisa senão uma volta momentânea ao estado de natureza, um movimento que nos subtrai por um instante a leis cuja proteção é insuficiente em certas ocasiões.

     Segue-se daí que, na extrema liberdade política, como na extrema dependência, as idéias de honra desaparecem ou se confundem com outras idéias.

     Num estado de liberdade ilimitada, as leis protegem tão fortemente que não se tem necessidade de buscar os sufrágios da opinião pública.

     No estado de escravidão absoluta, o despotismo, que anula a existência civil, só deixa a cada indivíduo uma personalidade precária e momentânea.

     A honra só é, pois, um princípio fundamental nas monarquias temperadas, onde o despotismo do senhor é limitado pelas leis. A honra produz quase, numa monarquia, o efeito que produz a revolta nos Estados despóticos. O súdito entra por um momento no estado de natureza e o soberano tem a recordação da antiga igualdade.

Dos Delitos e Das PenasOnde histórias criam vida. Descubra agora